4 Verdades sobre Violência contra a Mulher que a Cultura Pop Precisa Aprender

Ao optar por não abordar a violência contra a mulher com a devida profundidade e sensibilidade, a cultura pop acaba simplificando o problema e dificultando o seu combate na vida real.

violência

Ver cenas de violência em filmes e séries é hoje algo tão comum como foram as cansativas trilhas de risadas em sitcoms americanas por boa parte dos últimos cinquenta anos.

Coincidentemente, assim como as trilhas de risadas, as cenas de violência são usadas muitas vezes para nos dar uma deixa emotiva; para fazer com que a público sinta algo em determinado momento – seja choque, empolgação ou desolação. Ao contrário das trilhas de risadas, no entanto – que quando se tornaram antiquadas e obsoletas foram sendo substituídas por piadas mais inteligentes -, quanto mais nos tornamos dessensibilizados ao horror e realismo das violências praticadas nas telas, mais frequentes, variadas e horripilantes elas vão se tornando.  

Agora, violência nas telas não faz distinção de gênero, certo? Tanto homens como mulheres sofrem agressões e mortes terríveis em prol da nossa sede de sangue e horror, e seria um absurdo ‘reclamar’ de um sem ‘reclamar’ do outro. Não é?

Bem, não exatamente.

Assim como existe diferença entre objetificação feminina e objetificação masculina, existe também muita diferença nas violências praticadas contra personagens femininas e personagens masculinos. E muitas dessas diferenças se baseiam em estereótipos de gênero e em mitos relacionados à violência contra a mulher, o que acaba por tornar ainda mais difícil a sua conscientização e combate.

Por isso, achei por bem trazer à tona alguns dos principais problemas na forma como ela é retratada na cultura pop. Porque é preciso que esse meio entenda que…

Violência contra a mulher não é sempre sexualizada

Uma das maiores diferenças entre as violências que personagens masculinos e femininos sofrem é que as violências contra personagens femininas são quase sempre de cunho sexual. Ou ela é estuprada, ou a ameaça de estupro está sempre presente.

Isso-é-problemático.

Sério, parem com isso.

 

Em primeiro lugar, fazer com que violência sexual seja quase que exclusivamente destinada a personagens femininas é mais uma vez reduzir mulheres aos seus corpos – mais especificamente, às suas vaginas – colocando-as, novamente, no papel de objeto sexual à mercê de personagens masculinos (sejam eles os mocinhos ou os vilões).

violênciaEstou falando com você, Jamie.

 

Essa objetificação da personagem feminina é ainda mais acentuada tanto pela inépcia, como pelo próprio machismo dos roteiristas e cineastas, que muitas vezes sentem a necessidade de erotizar e objetificar o corpo feminino em prol do público masculino até mesmo em cenas de estupro. 

Além disso, essa tendência faz com que as personagens femininas recebam uma violência indissociável de gênero, o que as coloca eternamente na condição de vítimas. Simplesmente por serem mulheres, elas estão sempre vulneráveis a um estupro. E embora esse seja um medo que nós também somos obrigadas a administrar na vida real (homens também correm riscos, mas mulheres são 89% das vítimas de estupro), a causa dessa vulnerabilidade feminina predominante (machismo e misoginia) quase nunca é investigada ou explorada na cultura pop. Ao invés disso, a violência que as mulheres sofrem nas telas costuma servir apenas como recurso narrativo, ou como uma forma preguiçosa de dar profundidade às personagens.

O que nos leva aos próximos tópicos.

A violência não define a mulher

Outra diferença marcante entre as violências sofridas por homens e mulheres na cultura pop está no desenvolvimento dos personagens. Na grande maioria das vezes, quando um personagem masculino sofre uma violência, ele permanece firme nos seus objetivos, ideais e competências – o que, aliás, serve para reafirmar a sua força e masculinidade. Ele aguenta a violência “como um homem”.

Caras, quando é que vocês vão começar a questionar essa babaquice?

 

Esse conceito tóxico de masculinidade tem suas próprias consequências negativas para o público masculino, como eu mesma já escrevi antes aqui e aqui.

Já quando uma personagem feminina sofre uma violência (que, como já foi dito, é quase sempre de cunho sexual) ela se torna irremediavelmente definida por isso. Toda a sua personalidade, objetivos e momentos de triunfo são moldados e motivados a partir do que ela sofreu. Dessa forma, a violência acaba sequestrando o arco da personagem para sempre, se tornando parte indissociável dela própria e planificando a sua existência.

Essa ideia, aliás, é o que motiva a criação de muitas personagens femininas com uma personalidade desviante em dramas. Seja ela fria e durona, ou frágil e emocionalmente instável, é quase certo que em algum momento veremos algum flashback de um estupro no seu passado, que a moldou desse jeito.

violênciaClaire Underwood – apenas um exemplo entre muitos de personagens femininas que definitivamente não precisavam de um estupro no seu passado.

 

Isso é problemático não porque não é verdadeiro – violência (de todos os tipos) tem, sim, efeitos devastadores nas vítimas, tanto físicos como psicológicos -, mas sim porque vem acompanhado de uma falta gritante de personagens femininas bem desenvolvidas que não tem a sua complexidade atrelada a uma violência sexual sofrida no passado. A impressão que dá é que os roteiristas veem na violência (sexual) a única forma de fazer uma personagem feminina mais ‘identificável’ e compreensível para o público. Ou seja, numa tentativa de criar personagens complexas, muitos deles ainda assim as reduzem às suas vaginas.

É como Karen Valby, da Entertainment Weekly, bem disse:

“Aqui vai algo diferente de se imaginar: a ideia de que existem histórias para contar sobre a origem da raiva de uma mulher, de suas ambições e medos, suas vulnerabilidades e resoluções, que não envolvem prensá-la debaixo do peito arfante de algum homem”.

Violência contra a mulher não deve ser usada como recurso de roteiro para motivar personagens masculinos

Quando a violência não engole a vida e complexidade das personagens femininas, ela é muitas vezes usada apenas para impulsionar a história de outros personagens (99% das vezes, masculinos). Nesses casos, a personagem em si nem chega a ser realmente explorada. Sua presença física na trama se limita, na maioria das vezes, à cena em que ela sofre a violência, incluída para causar choque e compreensão em relação às ações do homem protagonista que inevitavelmente buscará vingança em seu lugar.

Nesse sentido, uma personagem se torna vítima de uma violência apenas para servir de recurso narrativo, ora avançando a história, ora informando o público sobre o caráter dos personagens masculinos. Essa prática é tão usada que tem até nome e um texto inteirinho sobre ela aqui no Nó de Oito: Mulheres na Geladeira.

violênciaO termo veio do mundo das HQs e refere-se à história do Lanterna Verde #54 (1994), em que Kyle Rayner volta para casa um belo dia e encontra a namorada, Alexandra Dewitt, morta e enfiada dentro da geladeira. Ele surta de dor e ódio, e vai atrás do responsável.

 

Através dela, mais uma vez vemos como a violência contra a mulher é explorada gratuitamente sem trazer nenhum tipo de conscientização, questionamento ou desconstrução que possa contribuir para o combate à esse tipo de violência na vida real.

O que nos leva ao próximo e último tópico.

É preciso muito cuidado para que a violência retratada não reforce mitos da vida real

Muitos são os mitos reforçados pela maneira superficial que a violência contra a mulher é retratada na cultura pop; principalmente a violência sexual.

Existe, na vida real, uma grande falta de entendimento sobre o que constitui estupro e quais são as suas causas. Muita gente não sabe, por exemplo, que estupro é qualquer ato libidinoso sem consentimento, e que sexo entre adultos e menores de 14 anos é sempre estupro, mesmo com consentimento. Também há quem não saiba (ou não queira saber) que não importa a roupa que a vítima estava usando, ou se ela estava bebendo, ou sozinha, ou se já era tarde. A culpa nunca é da vítima.  

Anota aí.

 

Porque a sociedade se recusa a discutir a violência contra a mulher com seriedade, essa falta de entendimento persiste. Como resultado, a menos que um estupro seja considerado “de verdade”, ele não é considerado um estupro. E o que seria considerado um estupro “de verdade”? Um crime praticado por um estranho, em lugares desertos, contra uma vítima “bela, recatada e do lar” que apanha violentamente de alguma forma. Ignora-se, assim, que 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos e acontecem dentro de casa – muitas vezes sem outras agressões físicas além do estupro em si.

Infelizmente, a cultura pop contribui, e muito, para manter o estereótipo do estupro “de verdade”. Lembremos apenas de Game of Thrones, que na sua quarta temporada filmou um episódio em que Jamie estupra Cersei, mas cujo diretor depois argumentou que aquilo não foi um estupro “de verdade”. Que apesar de Cersei falar “não” e “pára” o tempo todo, ela consente no final.

Quão irresponsável pode ser uma produção para filmar uma cena de estupro sem nem mesmo perceber que está filmando uma cena de estupro? Ou pior: perceber, mas tentar convencer o público de que aquilo não é estupro? Tivemos aí o reforço de um mito: a ideia de que força e coerção excitam a mulher.

Além desse, outros mitos do estupro “de verdade” se repetem vezes sem conta em filmes e séries. Ao retratar os estupradores como vilões demoníacos, reforça-se o mito de que o estupro só é cometido por doentes e maníacos. Da mesma forma, ao tratar o estupro dessa forma, elimina-se toda a problemática social por trás do crime. O fato de que ele é resultado de uma série de opressões estruturais nunca chega a ser discutido.  

——-

A violência contra a mulher – seja ela sexual, física, psicológica, patrimonial ou moral –  é uma realidade que precisa ser discutida e combatida e, portanto, não pode ser omitida da arte.

No entanto, ao usá-la apenas como recurso narrativo, oportunidade de erotização ou tentativa preguiçosa de tornar personagens femininas mais complexas, a cultura pop como um todo joga fora todo o seu potencial de produzir mudanças positivas na sociedade. E pior: ao optar por não abordar o tema com sensibilidade e com foco tanto em suas causas sistêmicas, como em soluções, ela acaba retratando uma versão muito simplificada do problema, fortalecendo mitos que dificultam o combate à violência na vida real.

Como público, podemos até entender os mecanismos que fazem com que o machismo e a misoginia prevaleçam nos bastidores da cultura pop. O que não podemos fazer é aceitar.  


Este texto fez parte da Ação Nerd Feminista para o Dia Internacional Luta pelo Fim da Violência contra a Mulher, em novembro de 2o16:

Durante os 16 dias de ativismo na luta contra a violência à mulher, blogs envoltos pelo #feminismonerd se propuseram a discutir as problemáticas em torno da representação de mulheres como uma matriz que reitera os discursos de violência e ódio, quanto veículos que visibilizam a discussão. Sabemos que apenas a exposição e discussões possibilitam o combate direto, a resolução e identificação do problema. Como reitera a escritora e teórica feminista Audre Lorde: “é preciso transformar o silêncio em linguagem e ação”.

BLOGS QUE PARTICIPAM DESSA INICIATIVA:

Nó de Oito
Collant Sem Decote
Momentum Saga
Ideias em Roxo
Preta, Nerd & Burning Hell
Delirium Nerd
Vanilla Tree
Prosa Livre
Kaol Porfírio
Psicologia&CulturaPop
Valkirias
Minas Nerds
Pac Mãe
Iluminerds


Leia também Violência Midiática – O Papel da Imprensa na Manutenção da Cultura do Estupro.

Comentários do Facebook