Objetificação Masculina NÃO é a Mesma Coisa que Objetificação Feminina. Entenda

Não procede usar a objetificação masculina para desqualificar a crítica contra a objetificação feminina. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. 

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Ontem eu li uma notícia deveras interessante. Dizia ela que as marcas de cerveja querem se distanciar da objetificação feminina em suas propagandas, enfatizando que a gigante Ambev se tornou signatária dos Princípios de Empoderamento das Mulheres da ONU neste ano.

Está aí uma notícia que me deixou muito feliz e que vai fazer com que eu preste atenção extra nas propagandas das marcas daqui em diante. Afinal, comerciais de cerveja objetificam mulheres há décadas, não só nos ignorando como consumidoras, como promovendo a nossa desumanização.

Infelizmente, não sei o que me deu quando vi essa notícia que resolvi cometer o erro amador de ler os comentários. E sem falta, lá estava o clássico discurso que diz que “homens também são objetificados!” – discurso esse turbinado pelo advento recente do “hipster da federal”, cujo coque (inicialmente) causou furor entre as internautas.

Gifs de Magic Mike e propagandas da Calvin Klein também costumam surgir nesse tipo de discussão.

 

Agora, esse tipo de comentário é inevitável e deprimente em partes iguais, porque ele está apenas parcialmente correto. Homens também são objetificados? Sim. Objetificação sexual masculina é a mesma coisa que objetificação sexual feminina? Claro que não, mil vezes não, não chega nem perto, nem aqui nem na China.

Não, sério, não.

 

Mas como assim?!, você pergunta.

Bem, antes de qualquer coisa, há de se reconhecer que existe uma diferença gritante entre o volume de imagens objetificadoras de homens e de mulheres. De acordo com Caroline Heldman, doutora em Ciências Políticas e uma das maiores vozes contra a objetificação feminina na mídia nos EUA, 96% das imagens que trazem objetificação sexual são de mulheres.

Além disso, mulheres figuram em todas as variedades de objetificação sexual na mídia diariamente, enquanto o mesmo não acontece com homens. Que variedades são essas? Bem, Heldman desenvolveu um teste com sete perguntas para determinar se uma imagem traz uma pessoa objetificada ou não. São elas:

  1. A imagem mostra apenas partes sexualizadas do corpo de alguém?
  2. A imagem apresenta uma pessoa sexualizada como um objeto inanimado?
  3. A imagem mostra pessoas sexualizadas como intercambiáveis? Ou seja, como um item que se pode trocar por outro.
  4. A imagem afirma a ideia de violação da integridade corporal de uma pessoa sexualizada, sem que a pessoa possa consentir?
  5. A imagem sugere que a disponibilidade sexual dessa pessoa é a principal característica que a define?
  6. A imagem mostra uma pessoa sexualizada como algo que pode ser comprado e vendido?
  7. A imagem trata o corpo sexualizado de alguém como uma tela?

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Essas variações na forma de retratar as mulheres na mídia é o que estou chamando de “variedades de objetificação” – isto é, formas diferentes de fazer passar a mensagem de que aquela pessoa é menos do que uma pessoa. Para todas elas é muito fácil encontrar exemplos com mulheres. O mesmo não acontece com homens.

objetificaçãoDificilmente vemos homens sem cabeça ou desempoderados.

 

(OBS: não confundir objetificação sexual com hiper-masculinização, que apresenta homens musculosos como um ideal de masculinidade que empodera os homens, ao invés de diminuí-los.

Certo, então concordamos que mulheres são muito mais objetificadas, e de formas muito mais variadas e degradantes do que homens. Mas mesmo assim, isso não significa que tudo bem objetificar homens. Afinal, os efeitos nefastos causados por essas imagens são os mesmos, certo?

Pois é, aí que está o cerne da questão. Não, não são os mesmos. E não são por causa de uma coisa muito simples: contexto.

Explico.

Por causa do machismo e da misoginia, homens e mulheres habitam mundos bem diferentes. Desde crianças, mulheres são ensinadas (em casa e/ou fora dela, direta e/ou indiretamente) que não podem ser completas sozinhas, e que por isso seu maior objetivo deve ser se tornar desejável e agradável ao olhar masculino. Para isso, elas devem ser delicadas, cordatas, submissas, agradáveis e, principalmente, belas. Quanto mais passiva e decorativa a mulher, melhor.

Ou seja, aquelas mulheres objetificadas na mídia são um retrato exato do que a sociedade machista e misógina entende por mulher ideal. Tem um motivo, afinal, por que 96% das imagens sexualmente objetificadas são de mulheres. A objetificação feminina (e a consequente desumanização da mulher) faz parte do modus operandi da misoginia, e é em grande parte o que motiva as diversas violências que sofremos, desde assédio de rua, até estupro coletivo, violência obstétrica e feminicídio.

objetificaçãoDigite “inconformado com o fim do relacionamento” no Google para ver o resultado do sentimento de posse que muitos homens têm em relação a mulheres.
objetificaçãoA desumanização das mulheres também explica por que temos nossos direitos reprodutivos restritos e ainda somos tratadas como incubadoras de bebês.

 

Além disso, como objetos, aprendemos desde muito cedo que nosso maior valor reside em nossa aparência – o que gera uma série de outros problemas. Pesquise quem movimenta a indústria de cosméticos, quem mais sofre com distúrbios alimentares e quem mais morre em mesa de cirurgia plástica e você descobrirá que embora também exista um padrão de beleza para homens, a diferença de cobranças e do que significa não se conformar a esse padrão é monumental entre homens e mulheres.

objetificaçãoFonte: Brasil Post.

 

Por outro lado, a realidade dos homens é bem diferente. Ao contrário da objetificação feminina, a objetificação masculina não reduz ou ameaça o status do homem na sociedade. Na verdade, porque ele já se encontra em posição de poder, ela funciona como um adendo, uma forma a mais de homens serem valorizados – no caso, por seus atributos físicos. Aliás, não é à toa que quando falamos sobre isso algum homem sempre aparece para dizer que adoraria ser usado como objeto sexual. Como ele não tem a existência reduzida ao seu corpo e não precisa lidar com as violências decorrentes disso, objetificação é para ele algo completamente inócuo.

Além disso, vale lembrar que o contexto machista e misógino em que vivemos faz com que o nosso entendimento de imagens objetificadas seja diferente para homens e mulheres. Lembre-se que em 96% dos casos é a mulher que é retratada como objeto – isto é, algo que sofre ações -, enquanto o homem é entendido como o sujeito – aquilo que age sobre o objeto. Porque isso já está tão profundamente entranhado no nosso psicológico, nas 4% das vezes que vemos homens sendo hipersexualizados, dificilmente os vemos como menos do que sujeitos. Um exemplo literal é o filme Magic Mike, que traz um stripper que não só um personagem complexo, como também é o protagonista do filme.

objetificaçãoBem diferente do que acontece com mulheres no cinema, que muitas vezes são usadas apenas como objetos de cena, não têm nenhuma profundidade, ou são definidas completamente por suas relações com os homens da história.

 

Resumidamente: a objetificação feminina perpetua a desumanização das mulheres, ponto-chave do machismo e da misoginia. Já a objetificação masculina pode não ser lá muito legal, mas é praticamente irrelevante para a visibilidade e o status do homem como ser humano. Na verdade, dado que ela não chega a ter efeitos objetificadores de fato, acho que não dá nem pra usar a palavra “objetificação”.

Que fique claro que não estou falando aqui que pressões estéticas não existem para homens ou que eles não podem se sentir incomodados quando alguma marca usa o corpo masculino para vender produtos. Estou dizendo que quando um homem minimiza o problema da objetificação feminina com uma falsa simetria de que “homens também são objetificados”, ele está ignorando todo um contexto de desumanização e violência contra a mulher que se perpetua em grande parte através dessa objetificação. Contexto é a chave.


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