Mulheres Misteriosas e as Armadilhas do Machismo Benevolente na Cultura Pop

A ideia de que mulheres são criaturas misteriosas e incompreensíveis é um tipo de machismo elogioso, conhecido como machismo benevolente.

Há pouco mais de um ano, Stephen Hawking resolveu ser espirituoso em uma entrevista e, ao ser perguntado sobre qual seria o maior mistério do universo, respondeu simplesmente: “As mulheres. Elas são um mistério completo”.

Turum-tzz.

Previsivelmente, a frase do cientista mais consagrado da atualidade virou notícia e se alastrou como a peste, povoando as mais diversas redes sociais e publicações online, desde jornais ditos sérios, até os portais mais esdrúxulos. Eu digo “previsivelmente” não só porque o jornalismo está nas últimas já faz uns anos, mas porque a resposta de Hawking ecoa um sentimento bastante difundido na sociedade, de que as mulheres são criaturas misteriosas e incompreensíveis, com seus “segredos femininos”, hormônios malucos, TPMs descontroladas e sangramentos mensais que não levam à morte.

É.

 

Pensando nisso, a piadinha de Hawking forneceu uma espécie de validação à esse sentimento porque, bem, se nem um dos homens mais inteligentes do mundo consegue desvendar as mulheres, é porque não tem jeito mesmo, né?

À primeira vista, esse tipo de fala pode parecer um elogio – e na maioria das vezes ela é dita justamente com o objetivo mal ajambrado de elogiar mesmo. É como se dissesse: veja, mulheres são tão difíceis de entender, tão mais complexas do que os homens. Mas na prática o que ela faz é reforçar a ideia da mulher como o Outro, como um ser quase alienígena, desviante do padrão humano (posição preenchida pelo homem). Você pode estar pensando: “ah, mas mesmo assim, é um Outro superior ao homem, não é?”, mas está enganado. É como um Outro inferior ao homem, porque essa suposta complexidade feminina foge à lógica e à racionalidade (é incompreensível, afinal), e portanto não é merecedora de crédito e confiança.

misteriosasH: Mulheres são tão difíceis de entender / M: Bem, na verdade, nós só querem…/ H: Criaturas tão complexas / M: Se você me ouvi… / H: Tão misteriosas

 

Com isso, dá pra ver que a ideia de que mulheres são seres misteriosos e incompreensíveis casa muito bem com o machismo à moda antiga, que não confiava nelas para votar, estudar, trabalhar fora ou adquirir bens e propriedades, e as trancava em manicômios ao menor sinal de desvio daquilo que é considerado do “instinto feminino” – a maternidade e o lar. A diferença é que enquanto antigamente essa desconfiança era explícita e hostil, hoje em dia ela é revestida de um tom elogioso, o que a enquadra no que ficou conhecido como machismo benevolente.

Isso mesmo, senta que lá vem textão.

 

Pois bem, de acordo com os psicólogos sociais Peter Glick e Susan Fiske, o machismo benevolente se baseia em pré-concepções sobre gênero que parecem positivas à primeira vista, mas que reforçam a desigualdade de maneira mais ampla, e muitas vezes dão munição ao machismo hostil. É o caso, por exemplo:

  1. Do cavalheirismo, que se baseia na ideia de que mulheres são frágeis ou mais dignas de proteção (tem um texto inteiro sobre isso aqui no Nó de Oito);
  2. Da ideia de que mulheres são mais amorosas, compassivas e intuitivas, o que alimenta estereótipos e pune quem não se encaixa neles;
  3. Da crença de que mulheres são melhores em cuidar dos outros e da casa, o que restringe a sua atuação ao ambiente doméstico e livra os homens da responsabilidade pela criação dos filhos, do cuidado com os idosos e das tarefas domésticas (veja nossos textos sobre pais trapalhões; e sobre estereótipos de mães);
  4. Ou mesmo da ideia de que o corpo feminino é usado para vender produtos porque seria mais belo, o que justifica a objetificação de mulheres na mídia (lembrando que o corpo feminino só é considerado mais belo se estiver dentro do padrão cis, magro, branco).

Vale notar que o machismo benevolente atinge negativamente os homens também, estereotipando-os como pessoas mais resistentes (tanto física, como emocionalmente) e menos carentes e capazes de compaixão, gentileza e sensibilidade, o que pode acarretar muitos problemas de ordem social e psicológica. No entanto, num cenário mais amplo o machismo concede aos homens inúmeros privilégios, o que atenua as desvantagens para eles.

Resumindo então: reproduzir a crença de que mulheres são criaturas incompreensíveis e misteriosas fortalece todo um sistema de opressão que se baseia justamente na ideia de que somos fundamentalmente diferentes. Infelizmente, essa é uma noção reforçada continuamente na cultura pop de diversas formas.

Em primeiro lugar, temos a maneira como processos biológicos femininos costumam ser retratados em filmes e séries. Na maioria das vezes, menstruação, gravidez e menopausa são eventos que tiram as personagens femininas do eixo, desestabilizando-as e trazendo caos e loucura ao mundo em volta delas.

“Cérebro de grávida”: um fenômeno recorrente em séries de comédia que consiste em personagens grávidas ultra esquecidas, incoerentes ou malucas.  

 

De fato, em 2012, a cientista política Lauren Rosewarne, da Universidade de Melbourne, pesquisou mais de duzentas cenas de menstruação do cinema e da televisão desde a década de 1970, e constatou academicamente que existem pouquíssimos retratos positivos da famigerada na cultura pop. De acordo com ela, na maioria dos casos a menstruação é vista como uma situação traumática, constrangedora, ofensiva, catastrófica, hilária ou desesperadora. Quase sempre para os caras, diga-se de passagem.

911? Minha amiga está sangrando pela vagina!

 

De qualquer forma, seja positiva ou negativa, a representação desses processos quase sempre é feita do ponto de vista masculino, e o estranhamento que resulta disso contribui para reforçar a mensagem de que mulheres são criaturas outras.

Relacionado a isso, temos o chichê recorrente das tramas ou piadas que envolvem “mistérios femininos” – isto é, histórias, rituais, segredos e tradições que somente mulheres sabem ou podem saber, e que podem ou não ter alguma relação com magia. Na maioria das vezes, no entanto, esses mistérios têm a ver com coisas completamente corriqueiras, como por exemplo: como inserimos um absorvente interno; por que sempre vamos ao banheiro em grupo; ou como tiramos o sutiã por baixo da blusa. A diferença desse tipo de narrativa daquelas que falam sobre segredos masculinos (que normalmente tratam de ritos de passagem relacionados a guerra, caça, perda de virgindade etc) é que o segredo sempre permanece um segredo no caso feminino, enquanto no masculino ele é normalmente desvendado – o que também é resultado do fato de que a maioria das histórias é contada do ponto de vista de homens.

Na maioria das vezes, os personagens masculinos não querem realmente desvendar o mistério e se retiram da conversa, fortalecendo a crença de que meninos não precisam ter empatia ou conhecer a experiência feminina

 

Há os casos, no entanto, em que o caras querem sim saber mais, mas para benefício pessoal. Temos aí o clichê que felizmente está caindo em desuso, que é o das tramas que giram em torno de um personagem masculino que tenta entender o que as mulheres querem, como elas pensam e onde vivem, com o objetivo de conseguir uma namorada/trepada.

O que é bastante objetificador, porque é como se a mulher fosse uma máquina com um manual de instruções em outra língua a ser traduzido.  

 

Vale notar que existem filmes em que isso é invertido e são mulheres tentando entender os homens. Isso porque muito das narrativas românticas se baseiam naquela velha máxima de que “homens são marte, mulheres são de vênus”, que pressupõe que homens e mulheres são um mistério uns para os outros. Mas, de novo, como grande parte das produções são encabeçadas por homens, o ponto de vista masculino se sobressai, e as histórias em que somos aquelas que precisam ser desvendadas são a esmagadora maioria.

E por último, outro exemplo comum acontece quando a cultura pop opta por tratar as personagens femininas de forma diferenciada e como representantes de todas as mulheres, ao invés de indivíduos complexos e bem desenvolvidos. Nesses casos, das duas uma: ou ela é aquela única personagem feminina no meio de um monte de caras (um fenômeno conhecido como Princípio Smurfette), ou ela é uma Ms Male Character –uma versão feminina de um personagem masculino que é basicamente um estereótipo feminino ambulante.  

Muito comum em desenhos animados e videogames.

 

É importante notar que em todos esses casos, mesmo naqueles em que não há nada de misterioso nas personagens, fica a mensagem de que mulheres são como que criaturas derivadas de homens – o padrão de ser humano -, mas aberrantes, e por isso absolutamente diferentes e incompreensíveis.

Isso pode parecer pequeno ou insignificante, mas essas imagens e representações (que não são os únicos exemplos, aliás) sustentam nossas crenças machistas e permitem que elas continuem sendo reproduzidas. Infelizmente, é também nos detalhes que mora o machismo.


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