Hey, Lolita, Hey: Entendendo a Ninfeta das Canções de Lana Del Rey
De vítima de abuso a ícone sexual, a trajetória de Lolita na cultura pop diz muito sobre como mulheres vivem o amor romântico.
Logo no início do seu estrelato internacional, em 2011, Lana Del Rey ganhou as manchetes com a alcunha de “Lolita perdida na periferia“. As reportagens sobre a cantora pop frequentemente eram ilustradas por fotos em que ela aparecia usando óculos em formato de coração, semelhantes aos da atriz Sue Lyon na adaptação para o cinema de Lolita feita por Stanley Kubrick.
Algumas canções do primeiro álbum de Del Rey, Born to die, também fazem referência à personagem, como Off to the races, Diet mountain dew, e, é claro, Lolita. Muito da imagem de Del Rey está associada à ideia de namorar caras mais velhos (“Eu tenho preferência por homens mais velhos”, Cola).
E se formos analisar o catálogo de músicas não-lançadas, que parecem mais anúncios em sites para encontrar sugar daddies (Daddy Issues, Be my daddy), podemos passar o dia todo aqui e não esgotar o assunto. Para não gastar a paciência dos leitores, vou me ater apenas às músicas e aos videoclipes lançados oficialmente.
Quem é, afinal, Lolita? A Lolita original está bem longe de ser a que aparece nas canções da Lana. Publicado em 1955 pelo escritor russo-americano Vladimir Nabokov, Lolita é o relato em primeira pessoa de um pedófilo branco, Humbert Humbert, que assume a paternidade de Dolores Haze, uma orfã branca de 12 anos, para molestá-la enquanto viajam de carro pelos Estados Unidos. É uma história nada romântica, certo? Pois foi assim que Lolita entrou para o cânone literário e para a cultura pop: uma história de amor.
Uma série de fatores contribuíram para isso. Em primeiro lugar, Lolita é um livro conduzido por um narrador infiel, que está escrevendo uma petição para convencer o júri de um tribunal. É mais espontâneo se deixar levar pelos delírios de Humbert do que questioná-lo. Além disso, a literatura de sexologia da época estava repleta de material que culpava vítimas de abuso sexual, colocando-as como sedutoras ou capazes de consentir ao sexo. Isso sem contar o próprio Sigmund Freud. O pai da psicanálise deixou um legado que incluía interpretar relatos de abuso sexual das suas pacientes como meras fantasias. A origem do “delírio” seria a repressão de um desejo pelo próprio pai (eeeurgh!).
Para completar, as adaptações para o cinema de Stanley Kubrick e Adrian Lyne também não tocaram no tema da pedofilia. O enredo é distorcido e se transforma em um caso acidental de amor entre um homem mais velho e uma adolescente cruel que o seduz para depois abandoná-lo. No Brasil, a minissérie Presença de Anita, baseada em um livro de mesmo nome, também deve ter tido um papel importante para reforçar essa figura da jovem sedutora.
O que Lana Del Rey faz com Lolita é repetir essa longa tradição de emprestar elementos do livro de Nabokov e revestí-los com um novo significado, mais romântico e menos perturbador. Em Off to the races, Del Rey canta “me dê as moedas douradas”. É uma referência às cenas em que Dolores passa a pedir dinheiro para Humbert em troca de “favores sexuais”, com o fim de juntar grana o suficiente para conseguir fugir dele. Humbert descobre o plano e pega todo o dinheiro de volta.
Mas na canção de Lana Del Rey, o significado é outro: trata-se de uma mulher pedindo dinheiro para o amado como uma prova de amor. É aquela associação capitalista entre amor e prosperidade financeira, como a gente já viu no clipe de National Anthem.
Outro exemplo: a estrada no imaginário dos EUA remete à ideia de mobilidade social, liberdade, expressar a sua própria identidade (lembrou de On the road?). Pois bem, a estrada em Lolita é uma sátira a essa ideia. Como argumenta Graham Vickers em Chasing Lolita, tanto Humbert quanto Dolores estão “presos” à estrada. Ela, por estar sob o jugo do pedófilo. Ele, porque tem medo de ser descoberto por outros adultos ou de que Dolores fuja se a dupla se estabelecer em algum lugar.
Mas no clipe de Ride, a estrada aparece com o seu significado original: “Você está em contato com suas fantasias mais profundas? Você criou uma vida para si mesmo onde você pode vivê-las? Eu criei”, diz Del Rey, no final do vídeo. Neste clipe, a cantora vive uma mistura de prostituta, cantora e Lolita, andando com Hell’s Angels e caras mais velhos e brancos. Gestos paternais como pentear os cabelos da filha, colocá-la sob o colo ou dançar com ela são encenados entre Del Rey e os atores.
Ao contrário da narrativa monogâmica que vemos na maioria das canções de Del Rey, nesta ela não está apaixonada por um só homem, mas sim pela masculinidade em cada um deles. Os símbolos da hipermasculinidade são armas, motocicletas, álcool e… a diferença de idade.
O que é tão atraente na ideia de ser uma Lolita e ter um “papai”? Lana Del Rey costuma retratar os homens desejados como figuras hipermasculinas, modeladas a partir de ícones do passado como James Dean e John F. Kennedy. São homens frios, agressivos, distantes, impulsivos, mulherengos, carismáticos e poderosos. Homens de negócios ricos, criminosos, presidentes. A diferença de idade é só mais um elemento a reforçar o que torna esses caras tão atraentes: o desequilíbrio de poder entre eles e Del Rey.
Esse modelo do cara mais velho que se apaixona pela novinha não é nada novo, como Uma linda mulher, Cinquenta tons de cinza e qualquer romance de banca podem te provar. Mas por que essa representação é tão comum? Meu argumento é de que o modelo do amor romântico nada mais é do que a celebração da diferença de poder entre homens e mulheres.
É o que a historiadora Tânia Navarro Swain chama de “dispositivo amoroso”, uma ferramenta que serve para convencer mulheres a adotar a feminilidade. Precisamos lembrar que feminilidade não diz respeito só à aparência física. É também uma condição psicológica, que envolve agir de uma forma passiva, codependente e disponível. Os resultados são graves tanto para o corpo quanto para a mente. Complicações decorrentes de cirurgias plásticas, problemas de coluna causados por uso de salto alto, transtornos alimentares e depressão são só algumas das consequências.
Para a socióloga Eva Illouz, o amor romântico e heterossexual nos vende a ilusão de uma fusão entre um casal. Mas o problema é que ele exige que homens sejam masculinos e mulheres, femininas – ou seja, que se mantenha a diferença de poder entre eles. O resultado é frustração e distância emocional, como vemos na canção Shades of cool, em que Del Rey se lamenta por não poder consertar um cara que vive “em tons de frios” e tem um coração “impartível”.
Illouz acredita que esse modelo desigual de relacionamento ainda tem apelo hoje porque, num período em que os vínculos se tornam mais flexíveis, mulheres acabam sentindo saudosismo em relação à cola emocional presente em relações desiguais. É como se fosse possível separar o forte vínculo emocional existente em relacionamentos abusivos das consequências de estar nesse tipo de relação.
Sheila Jeffreys também argumenta que conforme a autonomia financeira das mulheres aumenta, o patriarcado passa enfatizar o sexo – e, na minha opinião, o amor romântico também – como forma de mantê-las em busca da aprovação masculina. Embora Jeffreys não faça recorte racial em Anticlimax, acredito que essa constatação se aplique mais à realidade de brancas, como a própria Del Rey, do que negras, que tradicionalmente foram as responsáveis por sustentar as próprias famílias.
Assumir a figura de Lolita também permite que mulheres mesclem dois modelos de feminilidade contraditórios: os das mulheres agradável e completa, conceito elaborado pela psicóloga Lynn Phillips. A primeira é dócil, modesta e se sacrifica por todos; a segunda é assertiva, sofisticada e sexualmente ativa. Ao entrevistar jovens universitárias, Phillips percebeu que elas esperavam assimilar os dois modelos ao mesmo tempo, embora eles fossem opostos entre si.
A imagem de Lolita evoca tanto inocência (agradável) quanto malícia (completa), inexperiência (agradável) quanto curiosidade (completa), pureza (agradável) quanto sexo (completa). Lana enfatiza esses contrastes na canção Lolita ao colocar lado a lado elementos que remetem a infância e a sexo: lábios com gosto de ponche de fruta, deixar de pular corda para ficar com o namorado.
Outra estratégia utilizada pela artista é racial: contrastar a inocência branca de Lolita com o perigo e a violência atribuídos às comunidades negras. Com a alcunha “Lolita perdida na periferia”, Del Rey está “devorando o outro”, conforme define bell hooks. A prática de “devorar o outro” ocorre quando brancos se associam a elementos de outras raças para se envolverem em um ar de sexualidade, prazer e perigo. Pense em Miley Cyrus na fase Bangerz, ou na desconfortável tentativa do ex-One Direction Liam Payne de parecer descolado no videoclipe do seu primeiro single, Strip that down.
A representação que Del Rey faz de Lolita nos mostra uma das faces mais tristes do patriarcado: como nós internalizamos as expectativas masculinas sobre o que é ser uma mulher. E como podemos até sentir prazer com isso.
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Vanessa Mesquita
July 11, 2017 @ 11:54 pm
EU compreendo a intenção do texto e concordo com algumas partes, especialmente em relação a romantização que a Lana faz desses relacionamentos abusivos, mas tem dois pontos que eu gostaria de destacar: o primeiro é em relação ao meu próprio entedimento sobre relacionamentos entre homens mais velhos e mulheres mais novas (não falo de pedofilia e sim de uma grande diferença de idade); sempre entendi mulheres que gostam de homens mais velhos como pessoas que gostam de ser “dominadas”, especialmente em um sentido sexual. CUlturalmente – e veja bem nao digo que está certo – é normal o homem ter essa alcunha de “provedor” ou “protetor”, e há mulheres que se sintam bem em relações em que elas serão as “protegidas”, em que podem depender emocionalmente e financeiramente de um homem. Particularmente, eu não vejo isso como algo errado, acho perigoso, entretanto – é muito dificil ter uma mente saudavel dependendo tanto de alguem, a linha que pode transformar o relacionamento em uma situação abusiva é tênue e quase sempre atravessada. mas não julgaria automaticamente uma relação assim sem conhecimento de causa. a quantidade de livros com o tema é grande por um motivo e muitos deles são escritos por mulheres, o que pode ser assustador dependendo de como é levado, mas se feito do jeito correto é facil de compreender o apelo.
okay, o segundo ponto é que o texto fala apenas da Lana do born to die, com uma pequena citação da era ultraviolence. não que isso seja um problema, foi lançado e ta aí para ser discutido, mas eu, que acompanho a carreira da lana desde essa epoca, vejo uma grande evolução dela em relação ao tema. em uma entrevista recente ela mesma disse que hoje em dia não tem a mesma visão de antes sobre relacionamentos e homens ideais, e isso se reflete na musica que ela faz hoje em dia.
no mais, eu gostei bastante da sua problematização, sempre é bom trazer certos assuntos a tona para nos fazer pensar. mesmo fã, não sou cega e surda e a própria música “ultraviolence” ainda não me desce muito bem. só não sei muito bem se a questão racial tem realmente um lugar aqui.
Deixa de banca
July 12, 2017 @ 4:56 pm
Vanessa, objetivo do texto é analisar a representação de Lolita na obra da Lana Del Rey, por isso analisei só a era Born to die, e a canção Shades of Cool acabou entrando na análise pela questão da masculinidade e da diferença de idade entre protagonistas do clipe. Não encontrei referência de Lolita em Honeymoon, por isso não mencionei o disco. mas A masculinidade dos pares românticos é presente em todas as eras, inclusive no terceiro CD. A diferença principal que notei é que em Honeymoon e Ultraviolence aparecem algumas canções que são mais críticas à masculinidade, como Is this happiness, High by the beach e 24, mas elas ainda estão intercaladas com outras que celebram esse modelo (Ultraviolence, Honeymoon).
Dani
December 26, 2017 @ 6:20 pm
É inadmissível uma leitura tao equivocada e leviana da psicanalise. estudo psicanalise ha 15 anos, e digo que sua interpretação de freud é absurda. Por favor, procure compreender mais antes de dizer isso! Leia freud e lacan na integra. Nao reproduza coisas absurdas ditas por ai na internet, e converse com quem realmente entenda do assunto. Colocar freud como um misogeno é um absurdo imenso.
Ariane
April 3, 2020 @ 3:33 pm
“esse modelo do cara mais velho que se apaixona pela novinha não é nada novo…” caras namorarem mulheres 5 anos mais novas ok pra sociedade, Eu namorar um cara 3 ou 4 anos mais novo “nossa, você é papa anjo, né?” me senti namorando um menor de idade nessa hora, e eu me senti uma mulher bem mais velha de sei lá, 30 anos, e ele bem mais novo, sei lá, 15 anos… Até parece que ambos não estão em seus 20 e poucos anos. como se ele não pudesse responder pelos seus atos e eu estivesse me aproveitando da inocência, sendo que nossa maturidade emocional é praticamente igual (também pudera, né, as idades não são muito diferentes, não é como 10 anos de diferença). essa história aconteceu há um bom tempo, mas até hoje lembro como se fosse ontem. Aliás, foi no ginecologista e, eu por ser mulher jovem ainda indo ao ginecologista sozinha (eu vou sozinha desde meus 19 anos e ele inclusive já me acompanhou em exames, consultas e até já me levou ao hospital quando eu precisei), sempre fui muito mal tratada por profissionais assim, sejam homens, mulheres, de convênio particular ou do SUS, é como se eu não pudesse procurar um médico, sendo que mamãe sempre me ensinou, vá ao médico, veja se está tudo bem, faça todos os exames de rotina, se proteja, engravide só quando quiser. mas eu sinto que eles têm um preconceito com uma menina jovem procurando ajuda médica, como se eu fosse só ao médico porque quero transar, como se meu órgão sexual não precisasse de cuidados médicos… É como se eu fosse reduzida ao meu prazer sexual e veja bem, se tem uma coisa que eu sou bem resolvida é com a minha sexualidade, meu próprio corpo, meus limites e limitações e eu converso abertamente com quem for sobre sexo ou sexualidade. é muito importante eu entender meu corpo, até porque é muito comum casos de câncer de mama na família. mas todos esses profissionais resumem à “olha lá, a novinha quer transar”.
Ariane
April 3, 2020 @ 3:46 pm
Pois é, ele tem 22 e eu 25. Mas nossa, colocam as nossas diferenças como se ele tivesse 12 anos e eu tivesse 40 (nada contra quem namora pessoas muito mais novas ou mais velhas, mas veja o absurdo dessa alegação das pessoas pra uma diferença de 3 anos). Como se um homem não pudesse ser realmente alguém maduro emocionalmente ou o que for, é como a música nova da Dua Lipa, “Boys will be boys, but girls will be women” (garotos sempre serão garotos, mas garotas serão mulheres)… Culturalmente as pessoas acham que homens são imaturos, infantis e que sempre serão assim e veja só, isso se chama machismo. Ele sempre teve uma maturidade diferente, imagina uma criança que queria ser padre e só mudou de ideia porque queria ser pai (ter filhos)… Ele sofre muito do machismo, porque é mais sensível, não tem medo de chorar na frente das pessoas, não tem medo de homem gay (vocês sabem o quão comum é homem com medo de homem gay, coisa louca)… Claro que isso não faz dele uma pessoa sábia, mas alguém simplesmente sensato…