Brooklyn Nine-Nine: Discretamente Progressiva, Gritantemente Necessária

Brooklyn Nine-Nine prova que dá para fazer comédia passando longe não só dos estereótipos, como também dos tokenismos.

Imagem promocional da série Brooklyn Nine-Nine

Brooklyn Nine-Nine é uma série de comédia estilo sitcom que já está na sua quinta temporada e é uma das melhores coisas que eu tive o prazer de assistir nos últimos meses. Confesso, no entanto, que não foi esse o caso desde o início. Quando comecei a série, não fiquei muito animada com o clássico protagonista branco cuja rival no trabalho obviamente se tornará seu interesse romântico no futuro. Felizmente, todos os meus receios se dispersaram logo nos primeiros episódios.

Vencedor de dois Globos de Ouro (Melhor Série de Comédia e Melhor Ator de Comédia) e indicada a vários Emmys (Melhor Ator para o meu favorito, Andre Braugher), Brooklyn Nine-Nine acompanha o dia a dia de uma delegacia fictícia em Nova York. A premissa é simples e nada inovadora: uma sitcom baseada em ambiente de trabalho, com personagens carismáticos (e por vezes bizarros) na medida certa. O que a série faz de diferente, no entanto, chama muita atenção: a composição e construção dos personagens, as relações entre eles e o humor inteligente e engajado, que faz rir pelos motivos certos.

Representatividade para além do tokenismo

É verdade que Brooklyn Nine-Nine traz Jake Peralta como um detetive branco no papel do protagonista, mas o que fica claro logo no início é que Peralta é apenas um entre vários personagens tão importantes quanto. Além dele, a equipe central da Nine-Nine é formada por mais duas mulheres latinas (as detetives Amy e Rosa), um homem branco (o detetive Boyle), dois homens negros (o sargento Terry Jeffords e o capitão Holt) e uma mulher branca (a assistente administrativa Gina). Em posição secundária, temos também dois detetives brancos, Scully e Hitchcock.

Bandeira LGBT decorando a mesa do capitão Holt, na série Brooklyn Nine-NineImportante notar também que Holt é gay e Rosa é bissexual. Na imagem, uma das minhas coisas preferidas do cenário: a bandeira LGBT enfeitando a mesa do capitão Holt.

 

O que é especialmente inovador nessa composição de personagens é que a série passa longe não só dos estereótipos, como também dos tokenismos – isto é, a prática de incluir apenas um representante de uma minoria como padrão para todo um grupo. Rosa e Amy são duas mulheres latinas drasticamente diferentes entre si, e ambas são também drasticamente diferentes de Gina. Da mesma forma, Holt e Terry são dois homens negros com personalidades e perspectivas também profundamente distintas – e não só porque Terry é hetero e Holt é gay.

Entrevista com Stephanie Beatriz sobre a seleção de atores para a série Brooklyn Nine-Nine. Em entrevista, Stephanie Beatriz (Rosa) contou como foi o seu processo de seleção: “Melissa Fumero foi chamada antes de mim. E eu fiquei sabendo e chorei, porque pensei ‘estou tão feliz por ela, mas eu também sei que não tem jeito de chamarem duas mulheres latinas. Isso simplesmente não acontece, tem sempre somente uma de nós, sabe? E aí dois dias depois meus agentes disseram ‘adivinha só!’. Foi incrível.”

 

Isso é representatividade feita do jeito certo: realista e, acima de tudo, sem alarde. Pois um dos maiores méritos de Brooklyn Nine-Nine é o de ter construído esses personagens para além de seus gêneros, etnias ou orientação sexual. Para cada um deles é possível dar uma descrição detalhada de suas personalidades sem nunca mencionar essas características, ou mesmo sem que seja possível adivinhá-las logo de cara.

Ao mesmo tempo, a série não se esquiva de refletir sobre o que significa ser membro de uma minoria. De diversas formas – sutis ou não – sempre somos lembrados dos obstáculos que Holt teve que enfrentar como um homem negro e gay para chegar a capitão de uma delegacia, por exemplo. Em outros momentos, a série faz questão de nos lembrar que Amy e Rosa estão em posição de desvantagem simplesmente por serem mulheres em uma ocupação tradicionalmente masculina. Mais recentemente, a série foi aclamada por abordar o tema da brutalidade policial contra pessoas negras de maneira sensível e multifacetada, assim como se tornou um marco ao fazer com que Rosa se declarasse bissexual – uma orientação sexual ainda rodeada de mitos e estereótipos.

Gif do capitão Holt falando com Rosa, na série Brooklyn Nine-Nine.Toda vez que alguém se apresenta e se assume como é, o mundo se torna um lugar melhor e mais interessante. 

 

Isso sem contar os inúmeros comentários sobre temas complexos da vida real, desde a legalização de armas de fogo nos EUA até corrupção e transfobia. Tudo isso sem perder o tom leve e hilário que acompanha toda a série, e fazendo questão de quebrar o maior número de estereótipos no caminho.

Um adeus aos estereótipos

Um dos efeitos de se construir personagens para além de seus gêneros, etnias e orientação sexual é que os estereótipos e clichês simplesmente desaparecem. É interessante notar, no entanto, que os roteiristas de Brooklyn Nine-Nine buscaram ativamente destruí-los ao brincar com as expectativas do público em relação aos personagens.

Terry Jeffords, por exemplo, é um homem negro feito de músculos que começa a série tendo que lidar com ataques de pânico por ter medo de ser morto em ação e deixar suas bebês gêmeas sem pai. Terry quebra todas as expectativas e pré-conceitos que o público possa ter sobre ele em um primeiro olhar: ele é sensível, um ótimo pai, leitor voraz de fantasia, foi intercambista no Japão na faculdade, ama iogurte e é a principal figura materna para os detetives dentro da Nine-Nine.

Gif do sargento Terry Jeffords, da série Brooklyn Nine-Nine. Escola é da hora. Por isso que rima. 

 

Da mesma forma, Holt é a autoridade máxima dentro da delegacia e se distancia léguas de qualquer estereótipo associado a homens negros ou a homens gays: é um homem culto, correto e ambicioso, casado com um professor universitário e avesso a demonstrações públicas de sentimentos e emoções. Se Jeffords é a figura materna para os detetives dentro da Nine-Nine, Holt é definitivamente a figura paterna.

Entre as mulheres também temos um trabalho impecável por parte dos roteiristas. Rosa é uma mulher durona e badass que quase nunca sorri, mas que já foi bailarina e ginasta no passado e cujos filmes favoritos são comédias românticas da Nancy Meyers. Amy é quase uma Hermione Granger latina: ambiciosa, competente, amante das regras e dos livros, péssima na cozinha, mas que tem seus momentos de descontração irresponsável e é um deleite de assistir quando bêbada. Já Gina…bem, não dá para descrever a Gina, você vai ter que assistir.

Gif de Gina Linetti dançando, na série Brooklyn Nine-Nine.

É importante notar também que não é só em relação às minorias que Brooklyn Nine-Nine se esforça para quebrar estereótipos. Os dois homens brancos principais – Boyle e Peralta – também não correspondem exatamente ao que esperaríamos, já que ambos desafiam constantemente normas rígidas e tóxicas de masculinidade.

Boyle é um Cara Legal que é de fato um cara legal: um homem sensível que não vê problema algum em ser chamado para ser dama de honra em um casamento e não tem medo de expor seus sentimentos. Na primeira temporada, ele é apaixonado por Rosa, mas a série faz um ótimo trabalho ao não endossar o seu comportamento obsessivo por ela. Não contentes, os roteiristas também fazem com que ele aceite o fato de ela não querer nada romanticamente e se torne um dos seus melhores amigos, sem qualquer segunda intenção. Um belo dedo do meio para o famigerado conceito de “friendzone”.

Já Peralta é outro ótimo personagem: imaturo, porém muito competente e profundamente sensível. Seu melhor amigo é o Boyle, mas ele possui uma relação de amizade diferente com cada um dos membros da delegacia e valoriza cada uma delas igualmente (homens e mulheres). Suas brincadeiras podem ser meio bestas e infantis, mas ele nunca ri às custas de minorias e a série faz questão de fazer com que ele repudie todo tipo de comportamento ou comentário machista, homofóbico ou racista.

Ted Mosby, da série How I Met Your Mother. Outros personagens famosos teriam muito a aprender com Jake Peralta.

 

Seu relacionamento com Amy é outro ponto alto para o personagem, na medida em que Jake a respeita e a apoia em todas as suas ambições. É verdade que ele às vezes dá uma ou outra escorregada, mas é notável como o personagem está sempre aberto a correções e disposto a ouvir e aprender.

Gif de Jake Peralta em Brooklyn Nine-Nine Não posso sair falando pros cara não chamarem a Amy pra sair porque eu gosto dela e sou burro demais pra tomar uma atitude. 
Gif de Jake Peralta em Brooklyn Nine-Nine Não posso fazer as escolhas de uma mulher por ela. 

Uma mudança inovadora nas clássicas histórias de romance em sitcoms.

Para encerrar, uma palavra: assista

Uma crítica que poderia ser feita a Brooklyn Nine-Nine é que a série mostra uma força policial bastante doce e cor-de-rosa na maior parte do tempo. De fato, a equipe dentro da Nine-Nine é um grupo dos sonhos, muito distante do que vemos por parte da polícia na vida real. Essa representação, no entanto, é intencional. De acordo com o roteirista e showrunner Dan Goor:

“Nossa equipe – nossos heróis – nós sempre fizemos questão de serem bons policiais e que fossem um exemplo do tipo de comportamento e técnicas que esperamos de policiais na vida real. Eles estão em algum lugar entre o nosso universo e uma versão levemente idealizada do nosso universo”.

Ao mesmo tempo, a série faz questão de mostrar que esse não é o caso em toda a força policial. E apesar de ter levado algum tempo para abordar determinados assuntos, quando o fez, o fez com consciência, sensibilidade e ainda mantendo o tom leve e bem-humorado da produção.

Em suma, se você está atrás de uma comédia de qualidade para assistir, não precisa mais procurar: Brooklyn Nine-Nine está à sua espera.


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