Eu Não Sou um Homem Fácil: Inversão de Papéis Faz Pensar, mas Poderia Ter Ido Mais Longe

Eu Não Sou um Homem Fácil é um prato cheio de verdades inconvenientes, mas deixou a desejar.

Imagem do filme Eu Não sou um Homem Fácil, de Éléonore Pourriat.

Eu Não Sou um Homem Fácil foi uma das produções originais da Netflix que mais deram o que falar no primeiro semestre desse ano. O longa francês conta a história de Damien, um machista inveterado que bate a cabeça e subitamente acorda em um universo paralelo em que as mulheres dominam sobre os homens.

Se a trama te parece familiar, você provavelmente conhece a obra que deu origem à produção: o curta Majorité Oprimée, da cineasta Éléonore Pourriat, que viralizou ao cair no YouTube com legendas em inglês em 2014. A produção retrata um mundo em que os papéis de gênero são invertidos, e o seu protagonista passa por experiências de opressão tradicionalmente femininas, desde assédio de rua até slut shaming depois de um estupro (aqui você assiste o curta com legendas em português). Em uma entrevista ao jornal The Guardian, Pourriat contou que só ficou sabendo da explosão quando sua caixa de entrada no YouTube encheu repentinamente. No entanto, como a maioria das mensagens eram agressivas, ela as deletou. Com exceção de uma:

“Mais baboseira feminista paternalista. Continuem choramingando, vagabundas!”.

Depois disso, a cineasta não teve dúvidas: tinha que continuar fazendo filmes. Mais tarde, a Netflix a abordou com a proposta de um longa nos mesmos moldes de Majorité Oprimée, que por fim se tornou o filme Eu Não Sou um Homem Fácil, lançado em abril desse ano.

Embora compartilhem da mesma premissa, no entanto, há uma grande diferença de tom entre as duas produções. Enquanto Majorité Oprimée é mais pesado e sombrio, Eu Não Sou um Homem Fácil está mais para comédia, e aposta no riso desconfortável para passar sua mensagem. Nesse ponto, o longa não decepciona, pois ao inverter papéis seguindo estereótipos de gênero à risca, Pourriat consegue entreter ao mesmo tempo que faz pensar no absurdo a que mulheres são submetidas diariamente. Com homens se comportando de forma estereotipicamente feminina e mulheres de forma estereotipicamente masculina, é impossível deixar de rir de um bom número de situações vividas pelo protagonista.

Cena do filme Eu Não Sou um Homem Fácil, de Éléonore Pourriat.

Pessoalmente, achei a proposta do filme interessante justamente por causa do estranhamento que causa no espectador. Não estamos acostumados a ver mulheres em posições de poder, por exemplo, e muito menos homens subjugados em papéis tradicionalmente femininos. A inversão pode ser cômica, mas provoca também mal estar e uma reflexão necessária ao escancarar o tratamento desigual destinado a homens e mulheres.

Com um roteiro consciente e cuidadoso, o filme acerta também ao mostrar a transformação que Damien vai sofrendo quanto mais tempo passa naquele mundo invertido. Embora venha de outra realidade, ele começa a corresponder às imposições e comportamentos esperados de homens para ser aceito e minimamente respeitado – algo com o que a maioria das mulheres deve conseguir se identificar com facilidade. Além disso, vivendo na pele o que ele próprio impunha às mulheres de seu mundo, o personagem vai aos poucos adquirindo consciência de quão nocivo e real é o machismo e a misoginia na nossa sociedade.

Pois bem, Eu Não Sou um Homem Fácil certamente faz pensar. Para homens, principalmente, a produção é um prato cheio de verdades inconvenientes e uma boa oportunidade de conscientização. No entanto, sinto que a escolha por uma inversão literal de gênero pode ter enfraquecido um pouco a sua mensagem. Isso porque os papéis de gênero impostos socialmente são ancorados em pré-concepções profundamente enraizadas sobre masculinidade e feminilidade, o que pode fazer com que uma simples troca pareça inverossímil – principalmente ao espectador homem desavisado. Para os de mente mais fechada, penso que deve ser muito fácil descartar o filme como uma “fantasia absurda”, simplesmente porque não faz sentido, dentro dos nossos rígidos padrões de gênero, um mundo onde homens são constantemente confrontados com a ameaça de estupro, por exemplo.

Minha sugestão para engajar esse tipo de espectador seria apresentar um mundo invertido onde a atribuição de ideais femininos e masculinos fosse exatamente igual ao que temos, com a diferença de que os femininos seriam privilegiados em detrimento dos masculinos. Isto é, nesse mundo os homens seriam cobrados a adotar a mesma masculinidade que já conhecem, mas seriam inferiorizados e marginalizados justamente por conta dela. Não seria divertido?

Alexandra, personagem do filme Eu Não Sou um Homem Fácil, de Éléonore Pourriat.Damien, homens são agressivos e descontrolados sexualmente, por isso ganham menos, não podem ocupar cargos de liderança e precisam ser controlados. Você são muito instáveis, pobrezinhos.

 

Outro problema do filme é que ele não gasta muito tempo apresentando uma alternativa entre os dois extremos. De um lado, temos o mundo do Damien, onde mulheres são oprimidas. Do outro, o mundo da Alexandra, onde homens são oprimidos. Ambas as realidades são péssimas, e embora o final do filme dê uma dica de que a igualdade entre os gêneros é a melhor solução possível, o longa não se aventura a trazer discussões feministas mais aprofundadas.

Em suma, Eu Não Sou um Homem Fácil propõe uma reflexão necessária, mas deve ser encarado apenas como uma porta de entrada para questionamentos sobre desigualdade de gênero. De qualquer forma, me agrada a proposta de repensar papéis, e fica a minha expectativa para outras histórias similares em um futuro próximo.


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