The Good Place: Uma Análise da Natureza Humana e uma Inovação para as Sitcoms

Ao longo de episódios bem amarrados, The Good Place encanta com uma história leve e engraçada que não se esquiva de levantar questões profundas sobre a existência humana.

Cena da série The Good Place.

Não contém spoilers.

Dia desses li algo interessante sobre a mania que crianças têm de assistir o mesmo filme ou desenho vezes sem conta. O artigo dizia que elas fazem isso porque a previsibilidade oferecida pela repetição faz com que se sintam seguras. Isto é, qualquer tipo de ansiedade é eliminada na reprise, porque já sabemos o que vai acontecer.

Na hora, lembrei com nostalgia das obras que fizeram rombos no meu cérebro de tanto que eu assisti quando criança, mas também pensei que esse sentimento reconfortante não é exclusividade nem dos pequenos e nem das reprises. Primeiro, porque tenho plena certeza que eu não passei os últimos vintes anos assistindo reprises de Friends por causa da hilaridade da série. E segundo, porque esse é o tipo de sentimento que eu reconheço em mim mesma quando assisto a produções de comédia em geral. Penso que elas não só nos fazem rir, como também geram um sentimento de conforto e segurança por sabermos que nunca poderiam nos trair com mudanças drásticas ou dramas sérios demais sem trair a sua própria natureza.

Isso é especialmente verdade no caso de séries de comédia, ou “sitcoms”, se preferir. O sentimento gerado por elas é o mesmo que sentimos ao ver uma reprise, porque a repetição faz parte da natureza da sitcom. Os cenários se repetem – um bar, um apartamento, um café, um escritório. E os personagens também. Não é raro passarmos anos vendo os personagens cometendo os mesmos erros de sempre. Com algumas exceções brilhantes, vemos muitas poucas mudanças acontecendo no mundo das sitcoms, seja de ordem interna ou externa. Assisti-las pode oferecer um respiro, sim, mas não dá para negar que a maioria dessas séries reflete muito pouco a vida real. E que existe uma linha tênue entre se sentir seguro e se sentir anestesiado, afinal.

Tem coisas que simplesmente precisam acabar.

 

Mas Lara, por que você está aí divagando sobre sitcoms em um texto sobre The Good Place?, você deve estar se perguntando. Pois bem, cara leitora, tudo isso foi para dizer que The Good Place é uma sitcom que faz tudo o que uma sitcom não deveria fazer. E é brilhante justamente por causa disso.

Criada por Michael Schur (a mesma boa alma que nos presenteou com Parks and Recreation, Brooklyn Nine-Nine e The Office), The Good Place abre com Eleanor Shellstrop acordando em uma espécie de além-vida após a sua morte precoce. Lá ela é recebida por Michael, algo como um “arquiteto celestial”, que explica que ela está no Lugar Bom, destinado a pessoas que foram boas em vida. Na sequência, ele lhe apresenta a vizinhança e a sua alma gêmea: Chidi Anagonye, um (ex) professor de Ética e Filosofia Moral também recém-chegado ao Lugar Bom.

Chidi e Eleanor, personagens da série The Good Place.Eleanor e Chidi.

 

Tudo muito bom, tudo muito bem, exceto por um pequeno detalhe: Eleanor não deveria estar no Lugar Bom. Por uma série de motivos, ela descobre que houve algum erro e que a confundiram com outra pessoa de mesmo nome. Na realidade, Eleanor foi um pessoa terrível em vida e deveria estar no Lugar Ruim – algo muito parecido com o inferno bíblico, cheio de demônios e torturas mil. Ela finge pertencer, mas confidencia a Chidi o seu problema, convencendo-o a lhe dar aulas de Ética para ensiná-la a se tornar uma boa pessoa. Enquanto isso, a vizinhança começa a sofrer consequências bizarras devido a sua presença, tornando a missão de Chidi e Eleanor ainda mais urgente.

Michael, Janet, Chidi, Tahani, Eleanor e Jyaniu, personagens da série The Good Place.Não posso deixar de mencionar também Tahani, Jyaniu e Janet, que terminam de compor o elenco principal. Representividade feminina e étnica (protagonistas femininas intratáveis ganham pontos extra comigo) a gente vê em The Good Place.

 

Pois bem, só nessa pequena sinopse já é possível identificar elementos realmente revolucionários para sitcoms. Para além do contexto surreal, ao longo de suas duas temporadas disponíveis vemos diferentes cenários, situações e, principalmente, importantes transformações nos personagens. De fato, a série depende dessa transformação, pois Eleanor precisa mudar se não quiser ser descoberta e enviada para o Lugar Ruim.

Ao longo de episódios bem amarrados que, contrariando o modelo das sitcoms, compõem uma trama muito maior, The Good Place encanta com uma história leve e engraçada que não se esquiva de levantar questões profundas sobre a existência humana. E de quebra, através de Chidi temos acesso a diversos conceitos filosóficos que enriquecem tanto os dilemas dos personagens, como os nossos próprios.

Dessa forma, somos confrontados com questões e reflexões que dificilmente vemos em uma série de comédia. O que são boas ações? O que são ações ruins? É possível mudar e se tornar uma pessoa boa? O que é ser uma pessoa boa, afinal? E o mais importante: como influenciamos a vida e o comportamento uns dos outros?

Essa é uma questão central em The Good Place: nas condições certas e em contato com pessoas que podem fazer aflorar o que temos de melhor, todos pendemos para o bem. Vemos isso na relação entre os quatro personagens principais que, navegando situações absurdas, crescem juntos e se transformam diante dos nossos olhos.

A série consegue refletir até mesmo sobre vida artificial com a personagem da Janet, uma das melhores coisas da série. Tradução: Não sou uma garota. Também não sou mais somente uma Janet. 

 

É interessante notar, além disso, que apesar de a série se passar em um contexto de além-vida, não há qualquer tipo de referência a religiões. Schur afirma que chegou a fazer pesquisa para incluí-las na série, mas que preferiu se fiar em um conceito livre de visões religiosas. De acordo com ele:

“Eu parei as minhas pesquisas porque percebi que se trata de versões de comportamento ético, não de salvação religiosa.”

Com isso, The Good Place é essencialmente uma deliciosa análise da natureza humana, que além de nos oferecer muitas risadas, consegue manter aquela sensação de bem-estar e segurança das sitcoms mesmo subvertendo todos os seus elementos principais. E o melhor: com um plot twist lindamente executado no fim da primeira temporada que, sinceramente, todo mundo precisa ver.

E então, o que está esperando?


As temporadas 1 e 2 de The Good Place estão disponíveis na Netflix e a temporada 3 já está encomendada (fork yeah!).


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