13 Reasons Why, Big Little Lies e os Abusos que Podem Durar uma Vida Inteira
Hannah e Celeste são personagens muito diferentes entre si, mas sofrem diferentes abusos e mostram ao público a importância do acolhimento das vítimas.
*Texto com muitos spoilers mesmo, só leia se você já terminou as duas séries ou se não liga de saber o que acontece*
Pra mim, a violência contra a mulher choca muito. Vendo 13 Reasons Why, a primeira cena em que um personagem pega na bunda da Hannah (Katherine Langford) no meio da tarde, em um mercadinho, com um monte de gente em volta, me deixou de boca aberta, e eu quis jogar alguma coisa na TV de tanta raiva de pensar que aquilo era comum. Tive uma sensação bem parecida quando o marido da Celeste (Nicole Kidman) aperta sua garganta com os filhos no quarto ao lado.
Nós sabemos como essas cenas acontecem na vida real mais do que imaginamos, e que várias mulheres que conhecemos já sofreram algum tipo de abuso. E fiquei pensando como é importante quando as obras do cinema ou TV jogam essa verdade na nossa cara, porque nos faz pensar que essa é a realidade de muitas mulheres e nos mostra quais as consequências que a violência pode gerar na vida de alguém.
De maneira nenhuma esse texto pretende comparar essas duas séries ou os atos de suas personagens, mas sim entender como cada uma delas mostrou a violência contra a mulher em diferentes momentos da vida, e de diferentes maneiras. Além disso, como essas narrativas são comuns na vida real e como essas mulheres conseguiram (ou não) reagir ao que estava acontecendo com elas.
Na revista Claudia do mês de abril, em uma reportagem sobre estupro, o texto conta como o risco do crime (ou qualquer agressão e violência) acompanha toda a trajetória da vida de uma mulher. Na infância e adolescência, 32,2% dos casos tem como perfil do abusador amigos e conhecidos (assim como na história de Hannah em 13 razões); já na vida adulta, em um estudo feito com homens atendidos por um programa de responsabilização de autores de violência doméstica, 35% afirmaram já ter estuprado a própria esposa. Segundo o psicólogo responsável pelo programa consultado pela revista, esses crimes ficam entre os menos relatados, pois as esposas estão emocionalmente envolvidas (assim como Celeste, na série da HBO).
No caso de Hannah, a violência acontece na adolescência. Segundo o IPEA, 70% das vítimas que chegam aos serviços de saúde no Brasil são crianças e adolescentes. Nesse período vulnerável da vida, Hannah sofre assédio de seus colegas de escola, de maneira implícita e explícita. Depois, já em um processo depressivo, ela assiste outra mulher ser violentada e, mais adiante, o estupro acontece com ela. Hannah tenta compartilhar o que lhe aconteceu com alguns colegas, que não escutam o que ela tem a dizer. Ela, talvez ao contrário de outras garotas da sua idade, sabe a gravidade do que aconteceu, mas ou é ignorada ou desacreditada, até mesmo por um dos profissionais da escola (aqui, um homem).
Eu teria que contar para a polícia. Eu teria que contar para o meu pai. Eu acho que não consigo fazer isso. – 13 Reasons Why mostra como é difícil relatar o que aconteceu.
A falta de atenção e credibilidade concedida à personagem a levaram a consequências extremas, mas a falta de capacidade e até de empatia para lidar com casos de violência contra a mulher são extremamente comuns. Uma série de textos da escritora Clara Averbuck para a revista Carta Capital relata a dificuldade de denunciar um caso de abuso em uma Delegacia da Mulher. Falta de empatia, acolhimento e entendimento da gravidade de um crimes relacionados à violência contra a mulher podem ser comuns mesmo nos locais que dizem ter atendimento especializado, e mesmo quando o atendimento é realizado por profissionais do sexo feminino.
Em Big Little Lies, é possível entender a importância da compreensão do assédio e da violência contra a mulher como crime pelos profissionais da saúde. Celeste é agredida física e moralmente pelo marido, mas por conta de seu envolvimento emocional, a personagem é incapaz de aceitar a gravidade do que está sofrendo, mesmo tendo que conviver com as marcas físicas do abuso que sofre, escondendo com roupa e maquiagem as marcas roxas deixadas pelo marido. Big Little Lies retrata a vida de mulheres brancas, de classe alta, fora do mercado de trabalho e pode parecer uma realidade muito distante. Mas o caso de Celeste é parecido com o de muitas outras. Segundo uma pesquisa do Data Popular junto ao Instituto Patrícia Galvão, 7 em cada 10 entrevistados considera que as brasileiras sofrem mais violência dentro de casa do que em espaços públicos. Além disso, metade avalia que as mulheres se sentem de fato mais inseguras dentro da própria casa.
“Você adora quando eu sou mau.” – Maridos são responsáveis por grande parte dos casos de abuso.
Na série da HBO, só quando a sua psicóloga verbaliza repetidas vezes, e de maneira bastante explícita, que o que a personagem está passando é de fato um crime, e dá instruções bastante claras do que fazer, Celeste entende a gravidade dos atos do próprio marido. O medo crescente de uma figura próxima ao longo do desenrolar da série é assustador, na medida em que muitas mulheres já viram pais, namorados, maridos e outros homens próximos perderem o controle, ou já ouviram outras mulheres relatando casos do tipo. Celeste é advogada, e mesmo assim a série nunca mostra a possibilidade real de combater legalmente o comportamento criminoso, provavelmente para mostrar como esse tipo de relato ainda é marginalizado pelos processos formais de combate à violência.
É importante dizer também que nenhuma das séries romantiza, normaliza ou diminui o assédio. Muito pelo contrário, ambas deixam explícito que ao tentar esconder, aceitar ou minimizar esse comportamento, as consequências podem ser muito graves, seja para uma adolescente, para uma mulher madura, e até mesmo para as famílias de quem está envolvida.
Infelizmente, nem todas as mulheres (provavelmente a maioria) conseguem receber o atendimento psicológico ou instruções para se removerem de um ambiente em que estão sendo assediadas, abusadas ou violentadas. Mas o aumento de retratos de casos assim na ficção, quando bem feitos, facilita o diálogo entre mulheres e joga luz sobre um assunto que precisa ser trazido à tona.
Leia também A Diferença entre Retratar e Endossar Opressões em de Ficção (e como identificar cada caso); e Big Little Lies: Rivalidade x Solidariedade Feminina.