Baile de Estereótipos: A Misoginia nos Romances Históricos de Banca

Romances históricos de banca são vendidos como grandes histórias de amor, mas possuem tramas recheadas de violência contra a mulher. 

Romances históricos de banca

Li recentemente a notícia de que a atriz Keira Knighley proibiu a filha de três anos de idade de assistir filmes de princesas da Disney. A justificativa que ela apresentou foi a de não querer que a filha tenha a ilusão de que um homem rico um dia irá resgatá-la. Ao invés disso, a menina deve compreender que sempre deve “resgatar a si mesma”.

Embora, como já apresentado no blog, as princesas da Disney venham apresentando evolução no que tange à independência, inteligência e personalidade, não há como negar que grande parte delas encontra sua “redenção salvadora” no momento em que podem permanecer junto ao “verdadeiro amor”. A imagem repassada é que estavam incompletas, e que somente junto à figura masculina dos sonhos são capazes de encontrar completude.

Essa fala da atriz fez com que eu me recordasse de toda a reprodução na mídia de estereótipos que inferiorizam a mulher e a retratam como um ser incompleto e dócil, que um dia deverá ser “resgatado” por uma pessoa com superioridade intelectual e moral – ou seja, por um homem. Sim, já vi esse estereótipo em praticamente todos os meios midiáticos à minha volta: nos filmes de princesas, nos comerciais televisivos, nas músicas populares, e é claro, nos livros.

Embora haja um grande número de livros misóginos – ontem e hoje – quero dar enfoque à um tipo de publicação que costuma ter alto número de vendas mundialmente e que possui um público, sobretudo, feminino: os romances históricos de banca. É nessa modalidade – em que brilham escritoras como Julia Quinn, Sarah Maclean, Suzanne Enoch e Lisa Kleypas – que pude perceber um nicho secreto de manutenção de estereótipos misóginos.

Titulos famosos de romances históricos de banca.Alguns títulos famosos.

 

Pessoalmente, amo leituras de ficção que se passam em períodos históricos distantes, o que fez com que eu adentrasse o mundo dos romances históricos de banca. A princípio, achei as tramas lindas, doces e emocionantes. Porém, conforme fui lendo mais e mais livros da categoria, percebi que quase todas as estórias tinham o mesmo enredo:

1) Um rapaz sexualmente experiente, bem-sucedido e com uma fama de “canalha” encontra uma mocinha virgem, empobrecida e com ideais elevados;

2) Há uma atração imediata assim que ambos se conhecem;

3) Depois de muita resistência e alguma intriga, o mocinho e a mocinha se casam;

4) o mocinho revela à mocinha uma vida sexual interessante e ela faz com que ele passe a ter sentimentos nobres;

5) ambos se percebem felizes juntos e provavelmente o livro termina com o anúncio de gravidez da mocinha.

Analisar como quase todos os livros de romances históricos de banca que li possuem o mesmo enredo fez com que eu olhasse o gênero com olhar crítico pela primeira vez. Infelizmente vi ali muitas, muitas coisas mesmo que denotam inferioridade feminina.

Inicialmente, a construção do personagem masculino está, muitas vezes, alicerçada no arquétipo de “Don Juan”: ou seja, alguém jovem e rico que prova sua masculinidade com o maior número de casos amorosos possível. O “mocinho” tem o papel ativo de mudar sua vida quando quiser – ele possui vitalidade, dinheiro e segurança emocional o suficiente.

Foto de Henrique VIII na série The TudorsExemplo arquétipo de Don Juan: a forma como Henrique VIII foi retratado na série The Tudors. Ele possui riqueza, vitalidade, segurança emocional e coleciona casos amorosos.

 

Por sua vez, a mocinha não poderia ser mais passiva: ela não possui tanta vitalidade quanto o mocinho, nem segurança emocional ou financeira. Ela não “coleciona casos amorosos”, pelo contrário, se mantém virgem – associando tal ideia à de pureza virtuosa. A mocinha não possui condições de fazer escolhas, de traçar os rumos de sua vida. Seu destino é direcionado de acordo com as escolhas do patriarcado.

Bela, recatada e do lar.A personagem feminina protagonista é descrita como Bela, Recatada e do Lar. Um mero enfeite e instrumento de troca. Nada mais, nada menos.

 

Um dos primeiros passos para que os personagens se aproximem é a primeira relação sexual de ambos. Esta geralmente advém de uma prévia atitude abusiva – como um casamento forçado – e se desdobra em outras, como um estupro disfarçado (afinal, para muitas culturas do passado e algumas do presente, um casamento só está completo quando “consumado”). Tais cenas costumam constituir o “clímax” do livro, e se ignora totalmente o caráter abusivo de uma relação sexual forçada:

“Evie abriu os olhos. Acordou atordoada, ofegando em uma mistura de confusão e desejo. O sonho terminara e ela compreendeu que não estava em Hampshire, mas no quarto da estalagem de Gretna, e que os sons da água não eram de um poço dos desejos, mas de uma chuva pesada lá fora. Não havia nenhuma luz de sol, apenas a de um fogo recém aceso na lareira. E o corpo sobre o dela não era o de um espírito, mas de um homem vivo e quente…com a cabeça sobre sua barriga e a boca perambulando lentamente sobre sua pele. Evie se retesou e gemeu de surpresa ao perceber que estava nua…e St. Vicent estava fazendo amor com ela havia alguns minutos”.

– Livro “Pecados no Inverno”, de Lisa Kleypas, em que a primeira interação sexual entre os personagens começa a ocorrer quando a protagonista estava dormindo.

“- Mina? – ele chamou num tom rouco, virando-se na cama e percebendo que estava nu. (…) Por que você não está na cama?

Você me machucou. (…)

Estava agindo apenas como um marido deveria agir depois da maneira insolente como você tratou meu superior”.

– Livro “Esposa Rebelde”, de Margaret Moore, em que a mocinha – temendo ser estuprada na noite de núpcias – dá sonífero ao mocinho. Quando ele acorda, ela menciona que ele a havia surrado, mas para a sua surpresa, ele não dá a mínima.

Os trechos acima apenas ilustram o quão abusivos costumam ser os relacionamentos amorosos nos romances históricos de banca – especialmente no que tange as relações sexuais. Eu, inclusive, já li outras diversas cenas de estupro disfarçadas: casos em que a mocinha estava completamente embriagada, ou que teve uma crise nervosa antes do ato.

Além disso, algo que me perturba muito é o fato de que mesmo sendo rebaixada o tempo todo – por seus pais, por seu marido, enfim, por todas as circunstâncias que a cercam – a mocinha raramente faz qualquer tentativa de salvar a si mesma. Tal papel cabe inteiramente ao protagonista masculino – o pólo ativo da estória – que a resgata da vida traumática levada até então e (pasmem!) a  completa.

Aparentemente, a protagonista feminina jamais poderá ser completa por si mesma. Enquanto na casa dos pais, é um objeto de troca; e enquanto casada, sofre um relacionamento abusivo (muitas vezes, sem perceber). Ao que tudo indica, os traumas sofridos por sua inferiorização fazem com que a personagem não saiba enaltecer sua personalidade, nutrindo insegurança emocional. Em tal cenário, não surpreende que imagine que o marido/companheiro a complete. Que encontre nele a “felicidade”.

Romances históricos de banca que endossam relacionamentos abusivosAlguns títulos sugestivos de relacionamentos abusivos: A Noiva Indomada; Aprisionada pelo Capitão, Casamento sem Amor.

 

Infelizmente, a realidade é que nenhum dos protagonistas parece ter noção de seus papéis enquanto abusador e vítima. A misoginia pode ser claramente visualizada em todos os lugares dos livros: nas noções misóginas dos personagens principais, bem como da sociedade que os cerca. Todavia, estes se mantêm alheios à ela.

Você pode estar aí falando “Mas, Isabelly, esses romances são HISTÓRICOS, eles revelam como as mulheres eram tratadas pela sociedade no PASSADO, entende?”. Sim, entendo perfeitamente. O que realmente me perturba é saber que tais dramas são vendidos mundialmente como “lindas estórias de amor”.

Não importa se as obras foram ambientadas em um período histórico em que a sociedade era hostil ao reconhecimento da dignidade feminina. Basta dar uma leve “passada de olho” nos livros em questão para perceber que foram escritos de modo a simpatizar o leitor com o casal de protagonistas (implícitos abusador e abusada), envolver sua emoção nas cenas de estupro disfarçado, e, por fim, felicitar-se com a “completude” do casal. Ao final da leitura, certamente a editora espera que o leitor dê um suspiro apaixonado e diga “Uau, que linda a estória de amor!”. Ou seja, tais livros endossam a misoginia da época, ao invés de retratá-la.

Uma das maiores bênçãos da contemporaneidade é o quanto já avançamos no que tange à dignidade da mulher (os retrocessos aclamados por grande parte do eleitorado brasileiro jamais conseguirão impedir tal revolução – ela está ocorrendo, e não tem volta). Desse modo, é inadmissível nos dias de hoje romancear um relacionamento abusivo, um estupro, ou o fato de a mocinha se sentir “completa” somente ao lado do mocinho.

Os personagens dos romances históricos de banca parecem estar o tempo todo alheios às próprias noções misóginas. Que nós, leitores, tenhamos uma visão consciente da leitura que fazemos. Que jamais coloquemos purpurina em algo tão sério, tão sensível e tão doloroso quanto a violência contra a mulher e sua dignidade.

 


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