Livro x Filme: Como Estereótipos Machistas e Racistas Pautaram a Adaptação das Serpentes de Areia para a TV

Sinceramente, teria sido melhor se Dorne e as Serpentes de Areia nem tivessem saído do papel.

serpentes

Contém spoilers das temporadas 4, 5 e 6, e dos livros 4 e 5.

Ok. Ok! Eu vinha adiando esse texto porque né, não queria atacar a minha gastrite, mas chegou a hora. Então vamos todos respirar fundo, tomar um chá de camomila e acabar logo com isso.

Antes de qualquer coisa, deixa eu dar uma introdução básica para quem caiu aqui de paraquedas. Desde o começo do ano eu venho escrevendo textos em que comparo personagens femininas da literatura com as suas adaptações para o cinema e televisão, identificando ideais e crenças machistas que muitas vezes pautam as diferenças que vemos das páginas para as telas. No momento, estou comprometida a focar o olhar somente na série Game of Thrones e nos livros nos quais ela é baseada, porque olha, a coisa é tensa. Para ler os outros textos escritos até agora, visite a nossa seção Livro x Filme.

Bom, então vamos às Serpentes de Areia.

A primeira coisa que precisamos entender é que não dá para falar sobre as Serpentes de Areia sem falar sobre Dorne como um todo, porque todos os personagens dorneses sofreram mudanças ao serem adaptados para a série, e a raiz de todas essas mudanças explica muito do desastre que foram as Serpentes. Então vamos ter que voltar no tempo até a primeira aparição de um dornês na história: Oberyn Martell.

Aí, o bonitão.

 

Ah, antes que eu esqueça, para não ficar muito confuso, a estrutura desse texto será a seguinte: primeiro vou falar sobre Dorne na série, depois sobre Dorne nos livros, e aí vamos fazer as comparações e chegar nas conclusões. Ok? Ok, então vamos.

Dorne na série

Na série, somos apresentados aos dorneses pela primeira vez com a chegada do Príncipe Oberyn Martell em Porto Real, na quarta temporada. O grupo que está com ele é bastante homogêneo, formado basicamente por homens não-brancos em turbantes.

Em seguida conhecemos o próprio Oberyn, que junto com sua amante, Ellaria Sand, não puderam esperar nem um segundo para ir direto para um bordel. Porque não é do feitio de Game of Thrones jogar fora uma chance de decorar a tela com mulheres semi-nuas, não é mesmo?

Então nessa cena vemos Oberyn e Ellaria, um casal não-branco, apresentado logo de cara de forma hipersexualizada e violenta, conforme eles escolhem uma mulher para se divertir e o Oberyn enterra uma faca na mão de um brother qualquer porque…bem, por que não?

Por incrível que pareça, Ellaria fica super excitada com essa violência gratuita.

 

Vale notar que nessa hora os personagens estão só entre eles, então é justo entender que eles não estão agindo desse modo com um objetivo estratégico em mente, mas sim que eles são desse jeito mesmo e é isso aí.

Certo, mais pra frente temos mais algumas cenas de amor livre e de interações diversas que nos informam as motivações dos Martell, sua sede de justiça por Elia e seus filhos e, no fim, o trágico desfecho do Oberyn nas mãos do Montanha.

RIP Víbora Vermelha.

 

O que nos leva à quinta temporada, quando somos apresentados à região de Dorne propriamente dita, onde estão três das filhas bastardas de Oberyn: Obara, Nymeria e Tyene Sand. Elas são basicamente três cópias de uma mesma pessoa, e parecem ser comandadas pela Ellaria, que é mãe de uma delas (não me pergunte qual, eu não sei e não faz diferença). Todas as quatro estão putaças com a morte do Oberyn e querem – isso aí, você adivinhou – vingança. Logo aprendemos que todos elas são treinadas em armas e venenos como o pai.  

Mas afinal, por que estamos em Dorne? É porque seremos apresentados a personagens interessantes e bem construídos? Pff, claro que não. Só estamos em Dorne porque os roteiristas acharam necessário mandar o Jaime para lá resgatar a princesa Myrcella. Na real, o núcleo dornês podia muito bem ser um filme da sessão da tarde chamado As Aventuras de Jaime e Bronn na Mística Dorne.

Falas ruins inclusas.

 

Com isso, e com diálogos que se reduzem basicamente a “Morte aos Lannisters!”, o núcleo de Dorne serve basicamente para dar sentido à aventura do Jaime. Além disso, vemos Ellaria mudar todo o seu foco de “sexo!” para “vingança!”, comandando as serpentes de areia rumo à Terra da Incoerência.

Oberyn: Não machucamos menininhas em Dorne.
Ellaria: *não sossega enquanto não machuca uma menininha em Dorne*.

 

Isso mesmo: todas as quatro decidem que Myrcella precisa morrer, o que nos leva ao ~brilhante~ plano das vilãs em As Aventuras de Jamie e Bronn: um ataque em plena luz do dia e à vista de todo mundo, planejado e executado de maneira risível e caricatural, com direito a frases de efeito toscas, exibições de violência gratuita e lutas mal coreografadas.

Quando elas inevitavelmente têm seu plano frustrado e são presas, temos que aguentar aquela cena péssima em que a Tyene mostra os peitos pro Bronn depois de ficar trocando insultos com a Nymeria. Mais uma vez, as mesmas duas faces dos dorneses, cortesia da série: violência e hipersexualização.

Pois bem, nessa hora arrisco dizer que tanto quem leu como quem não leu os livros já estava no mínimo tipo “mano, que bosta”. Mas o que está ruim sempre pode ficar pior, e o show de horrores continua com uma sequência em que temos a honra de comprovar como o Doran Martell é burro como uma porta: mesmo depois que as Serpentes de Areia (e incluo aqui Ellaria) tentam matar a Myrcella em meio a muito histerismo, irracionalidade e cafonice, ele acha de boas deixar que elas vão lá no porto se despedir da menina. Dito e feito, Ellaria faz jus ao estereótipo de mulher não-branca violenta e traiçoeira e mata Myrcella envenenada com um beijo de despedida na boca.

Mas calma, não acabou ainda. Não contente, duas cenas depois ela e suas serpentes assassinam ninguém menos que Doran e Trystane (o príncipe de Dorne e seu herdeiro – seus motherfucking tio e primo, respectivamente), encerrando a família Martell com uma frase que eu tenho certeza que os roteiristas acharam que seria super Empoderada™, mas que foi só ridícula e ilógica mesmo:

Homens fracos nunca mais governarão Dorne.

 

(Obs: Eu não vou entrar no mérito do teletransporte das serpentes no navio do Trystane, porque gente, foca, tem coisa muito mais podre aqui).

E tudo isso com a maior facilidade, diga-se de passagem – o fodástico Areo Hotah desmonta com uma facadinha nas costas, e nenhum guarda mexe um dedo para salvar o príncipe. Porque o que significa família, leis e lealdade em Dorne, certo? Aparentemente nada, porque milagrosamente nenhum caos ou rebelião se instaura com o assassinato do líder da região executado por quatro bastardas raivosas. Não, bizarramente Ellaria parece assumir o trono de boas e termina a temporada fazendo uma aliança com a Daenerys e os Tyrell.

serpentesPelo menos isso faz sentido.

 

Em suma, Dorne na série é isso aí: o Doran é fraco e burro, o Trystane nulo, e as Serpentes são versões mais ineptas e violentas da própria Ellaria, que é basicamente uma mulher não-branca hipersexualizada e vingativa. O único personagem melhor desenvolvido é o Oberyn, mas mesmo com ele a série gasta tempo demais em hipersexualização.

Nada disso, como veremos, tem qualquer semelhança com a Dorne dos livros.

Dorne nos livros

Se você só assiste a série, é possível que essa não seja a primeira vez que você vê um fã dos livros revoltado com a forma como Dorne foi retratada na televisão. Isso porque o núcleo dornês dos livros é f-o-d-a.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que a história de Dorne é fascinante por si própria. Eu não vou entrar em detalhes, mas basicamente Dorne é tão foda que os Targaryen nunca conseguiram conquistá-la, sendo que a região só se tornou oficialmente parte dos Sete Reinos através de uma aliança pacífica de casamento muitos anos depois que o Aegon, o Conquistador, já tinha tocado o terror e feito todo o resto do continente ajoelhar. Por isso, Dorne se desenvolveu de forma meio que independente dos outros reinos e pôde manter as suas próprias leis e costumes.

O lema da Casa Martell também é o mais foda: Insubmissos, Não Curvados, Não Quebrados

 

Essa distância de Dorne dos outros reinos – tanto num sentido simbólico, como físico, dado que a região, além de ter um clima desértico, ainda é separada do restante do continente por uma cadeia de montanhas -, assim como a sua cultura mais progressiva e o seu forte senso de unidade fazem com que os outros habitantes de Westeros nutram um certo preconceito contra os dorneses. Isso é inclusive retratado na série. Vejamos uma interessante fala do Bronn:

“Já foi a Dorne? Eu já. Eles são loucos. Tudo o que querem fazer é lutar e foder, foder e lutar. Não há nada como uma boa luta para querer foder. E não há nada como uma garota dornesa devassa para clarear as ideias para a próxima luta. É assim que os dois funcionam”.

O problema é que os roteiristas da série parecem ter comprado esse preconceito e, com isso, ao invés de criar personagens dorneses, criaram aquilo que um westerosi preconceituoso imagina que um dornês é.

Nos livros, o nosso primeiro contato inicial com Dorne também é através de falas e pensamentos de personagens que não são de Dorne e, portanto, reproduzem ideias preconceituosas contra os habitantes da região. Tudo isso é subvertido, no entanto, quando de fato conhecemos um dornês.

Como já foi dito, de todos os personagens dorneses na série Game of Thrones, o Oberyn é o melhor construído. Assim como em As Crônicas de Gelo e Fogo, aprendemos na série que ele tem uma fama e uma história bem interessantes. A grande diferença, penso, é que na série ele muito mais violento e hipersexualizado.

Isso é importante, porque existe uma diferença entre bissexualidade e hipersexualidade. Nos livros, Oberyn é um cara bissexual, mas na série ele é apenas um cara que gosta muito de sexo. Como a Lívia já falou em outro texto aqui no Nó de Oito:

“O príncipe dornês, dessa forma, tem sua sexualidade apagada. O personagem não é alguém que é bissexual, mas sim um homem que tem um apetite sexual insaciável e por isso não discrimina gêneros. Sua sexualidade é um simples meio de caracterização de um personagem hedonista que busca o prazer em todas as suas formas, seja sexual, físico ou acadêmico. Essa forma de representação é muito conveniente pois transforma bissexualidade, uma característica renegada socialmente, em uma faceta de um tipo de masculinidade aceitável: um homem que busca prazer de todas as formas e não abre mão de seus desejos.”

Felizmente, ao contrário da série, os livros não perdem tempo nos mostrando Oberyn e Ellaria em bordéis em rompantes de sexo e violência, mas sim em diálogos extremamente interessantes principalmente com Tyrion, onde aprendemos mais sobre a família Martell e sua relação com os Lannister e a Coroa. Temos, portanto, um personagem muito mais complexo e não estereotipado.

Bom, tal como na série, a morte de Oberyn gera uma comoção em Dorne, principalmente entre suas filhas. Nos livros, Oberyn tem oito filhas bastardas. No entanto, contrariando o costume westerosi de deixar os filhos bastardos às margens, Oberyn sempre acolheu e educou suas filhas como se fossem legítimas. Muito provavelmente por causa do destino trágico de sua irmã Elia, que morreu de forma violenta sem poder ou saber como se defender, ele fez questão de treinar cada uma delas, o que explica o fato de todas serem mortíferas, cada uma a seu modo. Vamos a elas:

Obara: Com quase trinta anos, Obara é a mais velha das filhas de Oberyn, e foi treinada como guerreira, com lança, chicote e escudo. Seu desejo é guerra declarada contra Porto Real, para vingar a morte de seu pai. Ela é também a mais séria e durona de suas irmãs, o que pode ser explicado pelo o que aconteceu em sua infância. De acordo com ela:

“No dia em que meu pai veio reclamar-me, minha mãe não quis que eu partisse. ‘Ela é uma garota’, disse, ‘e não me parece que seja sua. Tive milhares de outros homens’. Ele atirou a lança aos meus pés e deu com as costas das mãos na cara de minha mãe, fazendo-a chorar. ‘Garota ou rapaz, nós travamos nossas batalhas’, disse, ‘mas os deuses nos deixam escolher as armas que usamos’. Apontou para a lança e depois para as lágrimas de minha mãe, e eu peguei a lança. ‘Eu disse que ela era minha’, meu pai falou, e me levou. Minha mãe se matou com a bebida em menos de um ano. Dizem que chorava quando morreu”.

Nymeria: Filha de uma nobre de Volantis, Nymeria age e se veste como tal. Mesmo assim, ainda assim é perigosa, com suas inúmeras facas escondidas por baixo do vestido. Ao invés de querer passar Vilavelha no archote, como sua irmã, Lady Nym se contentaria com quatro assassinatos: Cersei e Jaime, pelos filhos de Elia; Tywin pela própria Elia; e Tommen, por Oberyn.

Tyene: O retrato da inocência, Tyene é bem diferente de suas irmãs mais velhas. Filha de uma septã, a jovem afeita a bordados é doce e gentil, mas possui um conhecimento extenso sobre venenos. Tyene não quer assassinatos e nem mesmo declarar guerra: o que ela quer é que os Lannisters declarem guerra a Dorne e se lasquem ao descer para batalhar nos desertos da região. Para tanto, sua proposta é a de coroar Myrcella como legítima herdeira dos sete reinos (pela lei igualitária de Dorne, que não distingue gênero no direito à herança, Myrcella teria que ser rainha, pois é mais velha que Tommen) e, nas suas palavras “esperar que os leões venham”.

Sarella: A quarta filha bastarda de Oberyn não está em Dorne durante os acontecimentos dos livros (tem uma teoria sobre ela que eu não falar aqui, mas que é muito da hora!), mas sabemos que ela é filha de uma mercadora das Ilhas do Verão e é extremamente curiosa e inteligente.

Elia, Obella, Dorea e Loreza: são as filhas da Ellaria Sand e ainda muito jovens, por isso quase não aparecem. A mais velha, Elia, tem catorze anos, é voluntariosa e ótima com cavalos.

Bom, tal como na série, as serpentes pressionam o tio, o príncipe Doran, a tomar uma atitude, e o desdenham por seu excesso de cautela. Temendo que elas incitem a população a ponto da rebelião, ele manda prendê-las em torres de Lançassolar, a capital de Dorne.

Com todo o conforto, né, porque ao contrário da série, não é simples assim maltratar parente em Dorne.

 

Mas, entretanto, todavia, porém…a estrela do núcleo de Dorne nos livros não é Ellaria Sand, nem nenhuma das Serpentes de Areia. É Arianne Martell.

Sim, nos livros Doran Martell não tem apenas um filho como na série, mas três: Arianne é a mais velha (e portanto, herdeira de Dorne pela lei dornesa), Quentyn, o do meio, e Trystane é o mais novo e está prometido em casamento a Myrcella (nos livros ambos são ainda crianças). A maior parte do que acontece em Dorne nos é apresentado pelo ponto de vista de dois personagens: Areo Hotah, o capitão da guarda de Doran, e Arianne Martell.

Arianne é muito amiga de suas primas e tal como elas também está irritada com a inércia de seu pai. Ela também quer justiça por seus tios, Oberyn e Elia, e além disso quer garantir o seu direito a Dorne que, por questões diversas, ela acredita estar ameaçado. Por isso, Arianne arma um plano para botar a ideia da coroação de Myrcella em ação. Em um dos capítulos mais fascinantes de todos os livros, ela manipula Arys Oakheart (membro da Guarda Real responsável por Myrcella) e o convence a ajudá-la a levar a garota para longe de Doran, para que eles possam coroá-la rainha.

No fim, o plano não dá certo e Myrcella acaba perdendo uma orelha, mas é bom deixar claro que em nenhum momento o plano de ninguém em Dorne foi o de matar a princesa. Aliás, muito pelo contrário – quando confrontada com a ideia, Arianne fica revoltada:

“- O leão está morto. Quem sabe qual das crias a leoa prefere?

– Aquela que estiver em sua toca. – Sor Gerold puxou a espada, que cintilou à luz das estrelas, afiada como mentiras. – É com isso que se começa uma guerra. Não com uma coroa de ouro, mas com uma lâmina de aço.

Não sou nenhuma assassina de crianças.

– Guarde isso. Myrcella está sob minha proteção.”

Isso foi logo antes de Arianne ser traída e o plano descer pelo ralo. Quando a merda atinge o ventilador, ela é levada de volta a Lançassolar, onde Doran a deixa trancada durante semanas em uma torre, sem falar com ela e sem lhe dar nenhuma notícia. Esse é outro capítulo fascinante em As Crônicas de Gelo e o Fogo, aliás: Arianne dentro de sua própria cabeça, recapitulando, planejando, se desolando, se encorajando, se remoendo de remorso, enquanto aguarda que seu pai fale com ela.

“Nessa noite, chorou até adormecer…Pela primeira vez, embora não pela última. Nem mesmo nos sonhos encontrava paz. Sonhava com Arys Oakheart a acariciá-la, a sorrir-lhe, a dizer-lhe que a amava…Mas os dardos mantinham-se espetados em seu corpo e os ferimentos sangravam, transformando os panos brancos em vermelhos. Parte de si sabia que era um pesadelo, mesmo enquanto dormia. Ao chegar a manhã, tudo isso desaparecerá, disse a princesa a si mesma, mas quando a manhã chegou ela continuava na sua cela, Sor Arys permanecia morto e Myrcella…Eu nunca desejei aquilo, nunca. Não desejei nenhum mal à garota. Tudo o que quis foi que ela fosse uma rainha. Se não tivéssemos sido traídos…”

Quando Doran finalmente tira Arianne de sua cela, temos outro diálogo incrível proporcionado pelo núcleo Dorne. É nesse momento que entendemos toda a morosidade de Doran, quando ele compartilha com Arianne seus planos e intenções. E o que aprendemos não é pouco: Doran e Oberyn conspiravam contra a coroa desde o momento em que Elia e seus filhos foram mortos.

Oh boy.

 

O plano era mais ou menos o seguinte: quando Arianne e Quentyn ainda eram crianças, Doran firmou um pacto para casar Arianne com ninguém menos que Viserys Targaryen, na época escondido em Essos com Daenerys. No entanto, quando Viserys é morto pelo Drogo e esse plano desce pelo ralo, Doran manda Quentyn para encontrar Daenerys, pedir sua mão em casamento e unir as casas para, então, invadir Westeros e recuperar o trono.

“- Tenho de saber como chegou ao seu conhecimento que Quentyn estava no estrangeiro. Seu irmão partiu com Cletus Ironwood, Meistre Kedry e três dos melhores jovens cavaleiros de Lorde Yronwood numa longa e perigosa viagem, com um resultado incerto no fim. Foi para nos devolver aquilo que é desejo de nosso coração.

Ela estreitou os olhos.

– O que é o desejo de nosso coração?

– A vingança – a voz dele era baixa, como se tivesse receio de que alguém estivesse ouvindo. – A justiça. – Príncipe Doran pressionou o dragão de ônix contra a palma da mão dela com seus dedos inchados e gotosos, e murmurou: – Fogo e sangue.”

Se isso te soa familiar, é porque deveria mesmo. Na série, essa fala também existe, mas dita pelo Varys. Ou seja, uma das cenas mais fodas de todos os livros entre um pai e sua filha foi substituída na série pelo assassinato desse pai e pelo completo corte da filha, a personagem mais importante do núcleo nos livros.

Ceis tão estragando tudo, car*lha!

 

Mas divago.

Bom, a partir desse momento, Arianne se alia ao seu pai e eles incluem as Serpentes de Areia nos planos. Nessa hora vemos bem o quão distante são as personagens nos livros e na série.

“- Conte para elas, pai.

O Príncipe Doran respirou de modo irregular.

– Dorne ainda tem amigos na corte. Amigos que nos contam coisas que não deveríamos saber. Este convite que Cersei nos enviou é um ardil. Trystane nunca chegará a Porto Real. No caminho de volta, em algum lugar da estrada do rei, a comitiva de Sor Balon Swann será atacada por fora da lei, e meu filho morrerá. Fui chamado à corte apenas para que possa testemunhar o ataque com meus próprios olhos e, desse modo, inocentar a rainha de qualquer culpa. Oh, e esses fora da lei? Eles estarão gritando ‘Meio-Homen, Meio-Homem, enquanto atacam. Sor Balon pode até mesmo ter um vislumbre rápido do Duende, embora ninguém mais possa.

Areo Hotah não acreditava ser possível chocar as Serpentes de Areia. Ele estivera errado.

– Que os Sete nos salvem – sussurrou Tyene. – Trystane? Por quê?

– A mulher deve estar louca. – disse Obara. – Ele é apenas um garoto.

– Isso é monstruoso – falou a Senhora Nym. – Eu não teria acreditado nisso, não de um cavaleiro da Guarda Real.”

Bem diferente das moçoilas que enfiam uma lança através do crânio do primo Trystane.

 

Da mesma forma, vemos como Ellaria foi modificada na série para se encaixar no bolo homogêneo composto por ela e pelas serpentes que os roteiristas de Game of Thrones criaram. Nos livros, Ellaria não quer vingança de jeito nenhum, e fala isso com todas as letras.

“O rosto de Ellaria estava coberto de lágrimas, os olhos escuros brilhavam. Mesmo chorando, há força nela, o capitão pensou.

– Oberyn queria vingança por Elia. Agora vocês três querem vingança por ele. Tenho quatro filhas, recordo vocês. Suas irmãs. Minha Elia tem catorze anos, quase uma mulher. Obella tem doze, à beira de florescer. Elas veneram vocês, como Dorea e Loreza veneram elas. Se vocês morrerem, Elia e Obella devem buscar vingança por vocês, e então Dorea e Loreza por elas? E isso seguirá assim, para sempre? Pergunto novamente, onde isso termina? – Ellaria Sand colocou a mão na cabeça do Montanha. – Vi o pai de vocês morrer. Aqui está o seu assassino. Posso levar um crânio para a cama comigo, para me dar conforto à noite? Ele me fará rir, me escreverá canções, cuidará de mim quando eu estiver velha e doente?”

Ou seja, a Ellaria dos livros é muito mais parecida com a Catelyn (dos livros) do que com sedutora vingativa que colocaram no seu lugar na série.

Resumindo, ao invés de apresentar um núcleo foda, a série preferiu condensar personagens, criar motivações incoerentes – para não dizer surreais – para eles, e estereotipá-los até o miolo.

Mas por quê? Ou melhor, como? Como foi que um material tão rico e complexo virou o que virou na televisão?

Bom, acho que é seguro dizer que os roteiristas e produtores da série, além de serem caras brancos, não são as pessoas mais conscientes no quesito estereótipos e representatividade. Temos muitos exemplos que mostram como muito da adaptação que eles fizeram de As Crônicas de Gelo e Fogo são pautadas em crenças e ideais bastante machistas e racistas.

Então o que me parece é que, orientados por uma visão de mundo predominantemente branca e masculina, essa galera fez uma leitura superficial de Dorne e, como esse é um núcleo super complexo nos livros, optou por entregar ao público um enlatado mais simples e “palatável”. E o que poderia ser mais simples e palatável em uma sociedade racista do que a representação estereotipada de pessoas não-brancas?

Portanto, no caso dos dorneses, um povo com influências árabes nos livros, os estereótipos são orientalistas. Como resultado, temos personagens hipersexualizados e gratuitamente violentos, apresentados pela ótica de dois homens brancos – Jamie e Bronn – que vão se aventurar nessa terra exótica de gente muito doida.

Ele é aventureiro ele.

 

Certo, falamos sobre o racismo, mas onde está o machismo?

Bom, eu já disse que me parece que os roteiristas de Game of Thrones acreditam que uma mulher empoderada é uma mulher que: ou usa sua sexualidade como uma arma; ou sabe lutar/fazer guerra/ser violenta como um homem. Ou seja, eles têm uma visão machista do que uma mulher empoderada é.

A questão é que eu acho que eles genuinamente querem fazer uma série com mulheres empoderadas. Então quando surgiu a oportunidade de levar Dorne para as telas, eles optaram por manter somente as que se encaixavam na sua visão machista de Mulher Empoderada. Nisso, as Serpentes de Areia – que tanto sabem lutar, como sabem seduzir – foram as escolhidas, muito embora não tenha tanto material sobre elas para ser adaptado, porque a história de Dorne nos livros gira em torno principalmente da Arianne e do Doran. Some a isso uma trama porca e incoerente motivada por estereótipos orientalistas e o resultado é o show de horrores que vimos.

Sério, eu não me conformo.

 

Em uma entrevista, o roteirista D.B. Weiss explicou por que ficou animado com a inclusão de Dorne na série. De acordo com ele:

“É um lugar tão importante. De todos os lugares de Westeros que alguém iria querer viver, os dorneses são os que parecem ter descoberto o jeito certo de viver a vida. […] Sonhamos com Dorne e com o jeito que eles fazem as coisas lá”.

Eu até concordaria, se não tivesse visto abismada, ali mesmo na minha televisão, o que essa pessoa entendeu de Dorne. Claro que eu só posso falar por mim mesma, mas eu me apaixonei por Dorne pelos seus personagens incríveis; por retratar um relacionamento complexo entre pai e filha; pelo senso de justiça admirável das pessoas de lá; pelo seu histórico de só atacar quando atacadas; e porque, embora não seja exatamente um paraíso em termos de igualdade, é provavelmente o único lugar em Westeros onde mulheres e plebeus têm alguma chance de serem tratados com justiça e dignidade. Infelizmente, ao invés disso tudo, o que vimos foi uma caricatura de mau gosto.

Sinceramente, teria sido melhor se Dorne nem tivesse saído do papel.


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