O Homem como Padrão: Os Efeitos do Androcentrismo no Cinema e na Televisão
A vasta maioria dos personagens, sejam eles protagonistas, secundários ou terciários, é homem. Entenda por que isso acontece.
Dia desses vi circulando nessa nossa internet de meu deus um texto sobre uma pesquisa deveras interessante a respeito da quantidade de falas masculinas e femininas em filmes de princesas da Disney. Eu já conhecia a pesquisa (inclusive, falei bastante sobre ela em um longo texto ano passado sobre os muitos acertos e erros do estúdio ao longo dos anos), mas revisitar o assunto me fez ficar matutando e concluir: preciso ir mais fundo nisso.
Mas, uma coisa de cada vez. Antes de mais nada, deixa eu explicar do que se trata essa tal pesquisa sobre a Disney. No começo de 2016, as linguistas Carmen Fought e Karen Einsenhauer divulgaram a análise que fizeram dos diálogos em todos os filmes da franquia de princesas do estúdio. O resultado: mesmo com protagonistas femininas, a maioria das falas nesses filmes são quase sempre masculinas.
Com exceção de Enrolados e Valente, todos os filmes de princesa do Renascimento e 2º Renascimento trazem mais falas masculinas do que femininas.
Eu sei o que você está pensando: mas os clássicos têm mais falas femininas do que masculinas, wtf! E pra você eu digo: calma, que eu ainda vou chegar lá.
Bom, então temos aí filmes em que as mulheres são o centro da história, mas por algum motivo têm menos falas do que os homens. A princípio, isso é meio chato, mas provavelmente não quer dizer nada, certo? Hum, na verdade quer sim. Infelizmente, o que essa pesquisa descobriu não foi apenas uma simples coincidência, mas um padrão. Porque inspirados por ela, os pesquisadores Hannah Anderson e Matt Daniels, do incrível site Polygraph, analisaram mais uma porrada de filmes da Disney/Pixar e descobriram o seguinte:
Diálogos no roteiro, divididos por gênero.
Como você pode ver, a grande maioria dos filmes apresentam muito mais falas masculinas do que femininas. Enquanto isso, quatro filmes trazem equilíbrio de gênero nas falas; e apenas oito trazem mais falas femininas do que masculinas (contando Valente, Enrolados e Cinderela, que foram analisados na outra pesquisa; e Lilo e Stitch, que eu incluí por conta própria como chute).
Mas não vamos parar por aí. Porque um dos motivos pelos quais o site Polygraph é incrível é que eles analisaram não só os filmes da Disney, como outros 2000 roteiros de gêneros variados, na maior análise de cinema da História (temos um texto só sobre os gráficos maravilhosos do site, aliás). E o que eles descobriram foi que mulheres têm o maior número de falas em apenas 22% dos filmes analisados.
Pois bem, e por que essa discrepância tão grande? Nesse momento, voltamos lá nos filmes clássicos da Disney – Branca de Neve, A Bela Adormecida e Cinderela – e no seu improvável resultado na análise de Fought e Einsenhauer. Contra todas as expectativas, os filmes mais retrógrados do estúdio em termos de representatividade feminina são também os que mais trazem falas para mulheres. De acordo com as pesquisadoras, o motivo para isso é que a partir da década de 1990 as animações passaram a trazer elencos muito maiores, e grande parte dos papéis secundários foram (e ainda são) preenchidos por personagens masculinos. Isto é, de donos de loja, bibliotecários, inventores até vilões e sidekicks (aqueles personagens engraçadinhos que estão sempre com o protagonista), a vasta maioria é homem.
Anna e Elsa, as únicas duas mulheres em Arandelle.
E aqui finalmente chegamos na razão de ser desse texto, porque a origem desse fenômeno tem um nome: androcentrismo.
Androcentrismo é a prática de considerar o homem (branco, cis e hetero no caso da nossa sociedade), seu ponto de vista e suas experiências como padrão de toda a humanidade, marginalizando tudo o que cai fora dessa classificação. Resultante do patriarcalismo, os exemplos do androcentrismo na nossa formação e dia-a-dia são vários.
- Na linguagem, em frases como “a evolução do homem”, “a conquista do homem no espaço”, “o homem e os animais”, “o melhor amigo do homem”. “O homem”, nesses casos, é tido como sinônimo de “a humanidade”, mas “a mulher” nunca pode ser usado dessa forma, o que reforça a sua posição secundária e desviante (ela só pode representar a si mesma). Mesmo na gramática, o pronome masculino “eles” pode se referir a um grupo composto de homens e mulheres (o contrário nunca), e mesmo que só tenha um homem em um grupo repleto de mulheres, o correto gramaticalmente é usar o pronome masculino.
- Nos símbolos, como em placas de trânsito, por exemplo. A imagem padrão para homem e para ser humano é a mesma. Quando se quer representar uma mulher, usa-se o corpo em formato de triângulo, para indicar um vestido.
- Na Educação, em currículos que privilegiam o estudo e o trabalho de figuras históricas masculinas.
- Na Saúde e na Tecnologia, em produtos desenhados com o corpo masculino em mente (smartphones, por exemplo, para a mão masculina), ou em soluções médicas, como órgãos artificiais, também criadas com o corpo masculino como padrão (que é consideravelmente maior que o feminino). Mesmo estudos clínicos são majoritariamente feitos em homens.
Em suma, em praticamente todas as área de atuação humana, o que predomina é o androcentrismo – e isso vale também para o cinema e a televisão, é claro. O resultado são as inúmeras bizarrices que vemos na indústria, desde a desigualdade de gênero por trás das câmeras, até muitos dos clichês, estereótipos e outros disparates que vemos nas telas, como:
- A ideia de que meninos e homens não se interessam por histórias femininas, mas que histórias masculinas interessam a meninas e mulheres.
- O Princípio Smurfette, isto é, a prática comum na cultura pop de ter exatamente uma única personagem feminina dentro de um grupo variado de homens, como um token representante de todas as mulheres. Normalmente, a característica mais interessante da Smurfette é justamente o fato de ela ser mulher.
- A predominância do male gaze, isto é, a prática de retratar uma história, as mulheres e o mundo em geral sob o ponto de vista masculino e entender o público como homem (branco, cis e heterossexual). O que resulta na:
- Objetificação feminina, com 96% das imagens de objetificação sexual na mídia compostas por mulheres.
E por último, é claro, o homem como personagem padrão, como vimos mais no começo do texto. Na maioria das produções, os papéis secundários e terciários (também) costumam ser masculinos, porque, como vimos, o homem é entendido como padrão de ser humano. Como mulheres seriam o desviante, em geral elas só são incluídas quando há um motivo específico para estarem lá, normalmente relacionado com o fato de serem mulheres.
Retratadas a partir de um olhar masculino, elas costumam apresentar características estereotipicamente femininas.
Filmes de animação e desenhos animados são um exemplo clássico de como o androcentrismo influencia a nossa percepção de como as coisas são. De acordo com o Instituto Geena Davis, até 2012 somente 17% dos personagens animados em cenas de multidões eram femininas. Isso não significa que pensamos que somente 17% da população é composta por mulheres, mas sim que a imagem que nos vem à cabeça quando pensamos em uma pessoa qualquer é a de um homem.
Como bem apontou o The Mary Sue, o desenho BoJack Horseman (Netflix) é um dos que fogem à regra, principalmente graças ao fato de ter uma mulher, Lisa Hanawalt, como ilustradora-chefe e produtora. Em 2015, o criador da série, Raphael Bob-Waksberg, comentou sobre sua própria parcialidade na criação dos personagens, que só ficou clara para ele quando Lisa desenhou duas mulheres em uma cena que ele havia escrito com dois homens em mente.
Ele diz que se sentiu esquisito quando viu aquilo, mas como não conseguiu dar um motivo plausível para o porquê do seu estranhamento, as personagens foram mantidas. De acordo com ele:
“A tendência para escritores de comédia e para o público é a de ver os personagens como inerentemente masculinos, a menos que exista algo especificamente feminino sobre eles. (…)
O pensamento vem de um lugar em que a versão mais limpa de uma piada tem apenas algumas peças possíveis. Para a piada do cachorro, você tem a peça da língua babando por toda a pessoa de negócios, mas se você também inclui a peça em que as duas são mulheres, então isso é algo adicional, e confunde a piada. O público vai pensar “Por que essas personagens são mulheres? Isso faz parte da piada?”. A suposição por trás é a de que o modo padrão para qualquer personagem é masculino, então fazer das personagens mulheres é um detalhe a mais, além de todo o resto. Caso eu não esteja sendo 100% claro, esse pensamento é burro e errado e se auto-perpetua, a menos que você trabalhe ativamente contra ele, e tenho orgulho de dizer que eu quase não penso mais dessa forma. Às vezes eu penso, porque esse tipo de coisa é construído em nós por anos de consumo de mídia, mas normalmente sou capaz (com ajuda) de dar um passo para trás e não pensar assim, e uma das coisas que eu amo sobre trabalhar com a Lisa é que ela desafia esses instintos em mim.”
Mulheres e minorias por trás das câmeras: isso importa.
Os efeitos do androcentrismo no cinema e na televisão são apenas mais um exemplo de como o machismo é multifacetado e se manifesta das mais variadas formas. Como vimos, a visão androcêntrica é alimentada pelo machismo e vice-versa. E como Bob-Waksberg bem disse, esse sistema se auto-perpetua – a menos que se lute ativamente contra ele.
Se você não entende muito bem por que tudo isso é um problema, leia também Por que Representatividade Importa; e Como a Falta de Mulheres em Hollywood Contribui para a Desigualdade de Gênero na Vida Real.
Henrique Bastos
July 4, 2017 @ 10:27 pm
Um adendo interessante sobre o homem como representante da humanidade está no mundo dos games. Geralmente, quando se quer q o jogador se veja no personagem, eles deixam ele completamente mudo, mas ao mesmo tempo também fazem dele um homem. Uma das poucas exceções é Portal, da Valve, q não só possui uma protagonista mulher (q aliás foi questionada pelos fãs sobre se o fato de ser mulher era importante), como també, no primeiro jogo possui 100% das falas por mulheres, e no segundo, chuto q haja paridade de gênero. Adoraria ver um texto falando um pouco mais sobre o machismo no mundo dos games, e como ele está tão intrínseco numa indústria q já é tão grande, como por exemplo num curso de design de games, apenas 1/8 da sala serem mulheres. Espero não ter falado nenhuma besteira, e parabéns pelo texto. Sempre gostei do seu blog como um guia de como escrever e trabalhar histórias.
henrique
July 6, 2017 @ 12:34 pm
Há um artigo de 2015 intitulado “O nerd padrão é imbecil e preconceituoso”, que trata exatamente das mulheres no campeonatos de games e a “aceitação” dos competidores masculinos a essas mulheres. Quando se frequenta eventos de colecionadores, animes e cosplays, acaba passando batido essa sensação, mas quando se conversa a fundo com algumas pessoas que possuem certa sensibilidade para esculpir personagens, fabricar armaduras para fantasias etc., você se surpreende com a quantidade grande de reacionários e machistas que existem no meio. Para mim, acaba passando batido, mas minha esposa já é mais atenta a comentários ou atitudes e percebe esse processo mais do que eu.
deyse guedes
July 7, 2017 @ 4:17 pm
gostei bastante do seu comentário henrique, hämuito machismo e androcrntrismo nos jogos que usam tecnologia
deyse guedes
July 7, 2017 @ 4:18 pm
Ótimo texto! Não tinha conhecimento de muitas dessas coisas!(embora o lance de “homem” como humanidade tenha me incomodado desde os 8 anos)
Amanda
July 14, 2017 @ 9:19 pm
O que eu já reclamei de ‘homem’ como sinônimo de humanidade não tá no gibi. E as pessoas acham que é mimimi nosso. Tem cara que não consegue descer do salto do privilégio pra entender que a linguagem também é uma arma de dominação. Aí quando eu rebato “bem, se homem é sinônimo de humanidade, posso te chamar de mulher?” A resposta é sempre não.