Por que Sierra Burgess precisa ser uma loser?

É muito importante termos uma protagonista gorda, mas precisamos questionar o porquê de se criar tantas barreiras para que ela tenha acesso ao amor.

Imagem do filme Sierra Burgess é uma Loser.

O título do filme parte de uma afirmação: Sierra é uma loser. Logo nos primeiros minutos da estória, a adolescente analisa a própria imagem e faz a autoafirmação: você é uma gostosona maravilhosa. Um sujeito que se autoafirma tem a possibilidade de romper com o discurso hegemônico, podendo construir suas próprias referências imagéticas, pôr em cheque os padrões pré-estabelecidos. A partir dessa cena, outras vão se desdobrar, indo até então de encontro ao título do filme – o espectador se vê diante de situações típicas de assédio com pessoas gordas que são enfrentadas pela personagem com inteligência e graça. A empatia se instaura e a nossa receptividade vai aumentando a cada passo que ela dá em direção de si mesma.

Sendo assim, por que Sierra Burgess é uma loser?

Os elementos que compõem o quadro performativo não teriam nada de problemáticos se a premissa não fosse justamente a negação da possibilidade de uma jovem gorda conquistar o mundo e, também, o coração do boy magia. É no momento em que a “antagonista” lhe prega uma peça que surgem na narrativa os estereótipos – gorda, esquisita, excluída -, adjetivos que vão sendo sobrecarregados pelo que passa a ser da ordem de uma certa imprudência para uma jovem fora dos padrões: apaixonar-se por um cara bonitão. Ela não se identifica, porém, pois com a agressão o que estava sendo construído até o momento vai para o ralo e ela passa a se envergonhar de si própria.

Sierra apenas consegue se comunicar com ele através de mensagens de texto e de voz, escondendo-se. Enquanto Jamey lhe manda selfies, ela manda imagens de animais – a começar por um elefante, que já carrega consigo o jogo metonímico de como a corporalidade gorda é violentamente rotulada. Em seguida, o cliché da comédia romântica norte-americana se efetiva através da mentira, caso em que Sierra passa a se aliar a Veronica, a pessoa que propiciou o encontro, mas que apenas queria se divertir com a menina que ousou enfrentá-la.

Sierra e Veronica no filme Sierra Burgess é uma Loser

Porém, antes de toda essa construção, precisamos atentar para alguns elementos que ao invés de enriquecer o filme, vão reproduzindo outros estereótipos que gostaríamos de ver serem rompidos. A começar pela figura dos pais. Em toda a narrativa, não há espaço para a participação efetiva dos pais no universo adolescente, nem da personagem principal, nem da que seria a antagonista.

Em ambas as situações, o que se revela são pais que estão envolvidos com seus próprios chavões, como o pai de Sierra que só faz reproduzir frases de efeitos de escritores clássicos, mas que só servem para mostrar que ele é um intelectual e que sua filha precisa ser tão brilhante quanto. Já sua mãe é uma mulher que se encaixa nos padrões de beleza e que anseia por uma autoestima que a filha tenta fingir que tem. Já Verônica tem irmãs revoltadas (o pai as abandonou) e uma mãe obesa que afundou-se em auto-ódio e demanda que a filha cuide da aparência acima de tudo.

A única voz adulta que entra em diálogo com a personagem principal capaz de alguma posição quanto ao sofrimento é a da professora negra. E aqui entramos em outro quadro problemático, no qual podemos encontrar as figuras não-brancas sendo reduzidas ao reforço de ego da personagem principal. A pessoa negra que acredita e aposta na capacidade da personagem principal, caricatura tão banalizada pela indústria hollyhoodiana, como é o caso em diversos filmes. Sem contar o clichê do melhor amigo negro sem história, que em diversas situações só aparece com a função de superego ou de opressão. O lugar social que o negro ocupa no imaginário é meramente o da superficialidade, em que não cabe nenhum desdobramento para produzir alguma relação que não seja de apêndice.

“Como vai se vender?”

A pergunta da orientadora educacional vai corroborar com a leitura de que há uma desvalorização do comum como potência do indivíduo. O gancho para o desenvolvimento de uma personalidade mais aprofundada vai se perdendo, à medida em que o que aparenta estar à venda nessa construção é uma relação afetiva que está voltada para um ideal romântico/capitalista, em que a beleza do outro é o objeto a ser desejado. No caso Jamey, que só se apaixona por Sierra por intermédio de Veronica, a própria Sierra acaba tendo sua potência intelectual colocada como pano de fundo para ser tomada como possiblidade amorosa. Fica evidente o lugar-comum da romantização de uma experiência que se constitui como excludente para mulheres fora dos padrões: namorar o cara bonitão como fantasia de toda a adolescente.

Sierra no celular no filme Sierra Burgess é uma Loser

Algumas perguntas para futuros roteiristas que queiram romper com essas reproduções rasas: por que não focar em desenvolver as habilidades latentes da personagem e o romance ser secundário ou até mesmo suprimido? A relação de Sierra com Verônica, por exemplo, é o ponto alto do filme. Será que seríamos capazes de suportar que essa amizade entre mulheres andasse naturalmente como um rio que flui e incorpora outras mulheres, como a colega negra que faz uma puta de uma rima em sala de aula e que poderia dialogar com a poeta/música Sierra, ou as amigas de Verônica que poderiam entrar em outra linha discursiva? Ela canta, escreve poesia, procura encontrar em seu leque de possibilidades algo que a torne especial e que permita que tenha um futuro promissor. Será que poderia ser por aí a conversa? Amizade entre duas adolescentes sendo balançada por ciúme, inveja e agressividade acontece o tempo todo, mas não precisa servir como único recurso narrativo. Já faz algum tempo que saímos dos anos 80.

Há que se mencionar também a transfobia e homofobia que ficam evidentes quando há uma recusa em levar em consideração uma sexualidade mais fluida. Inclusive, seria interessante podermos deslocar o romance do boy magia Jamey em direção à Veronica. Seria bem lindo, na minha opinião.

No mais, pode ser um filme que vale a pena assistir para identificar o que não nos serve mais, mas também causa desconforto uma estória que é ofertada para um público adolescente. É muito importante em termos de representatividade termos uma protagonista gorda. E uma protagonista gorda com direito de se apaixonar, de viver o amor. Mas podemos questionar também os porquês de se criarem tantas barreiras para o acesso a esse amor. Porque se for sempre desse modo, estaremos apenas batendo na tecla de quem merece ou não ser amado.

Nesse sentido, indico o filme a Incrível Jessica James e a leitura do texto de Joice Berth sobre ele. Porque é possível sim falar de amor e de autodefinição de uma maneira simples e que fuja um pouco mais dos estereótipos.


Leia também Jessica James e a Representação Incrível da Pessoa Comum.

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