Fronteiras do Universo – O Triunfo das Personagens Femininas na Fantasia

Fronteiras do Universo desafia estereótipos de gênero que a literatura fantástica já repetiu vezes sem conta.

fronteiras do universo

Fronteiras do Universo (His Dark Materials, no original) é uma trilogia de livros infanto-juvenis da década de 1990 que, como todo leitor de literatura infanto-juvenil sabe sobre os bons representantes do gênero, provoca a reflexão sobre temas essenciais da vida, o universo e tudo o mais até no mais dessensibilizado dos adultos.

No meu caso, li a obra de Philip Pullman quando ainda fazia parte do seu público-alvo, nos longos hiatos entre um lançamento e outro de Harry Potter (e mais algumas vezes depois de adulta). Se de início comecei a leitura de forma completamente desinteressada, isso não durou muito tempo. Logo no primeiro capítulo a história de Lyra e seu daemon Pantalaimon já prende o leitor irremediavelmente, com promessas de uma trama que envolve um mundo familiar, mas drasticamente diferente, mistérios científicos e religiosos, assassinatos, ursos de armadura, coisas proibidas e uma heroína que não se intimida nem um pouco com proibições.

fronteiras do universo

O primeiro livro, a Bússola Dourada, apresenta a protagonista Lyra Belacqua, uma garota de onze anos que é criada e mantida entre os catedráticos da Faculdade Jordan, em Oxford, por seu tio Lorde Asriel. Só que logo aprendemos que a Oxford de Lyra não é exatamente como a Oxford do nosso mundo.

Para começar, todo ser humano no mundo de Lyra tem um daemon – uma criatura em forma de animal que seria como uma manifestação externa da alma da pessoa. Os daemons falam e podem mudar de forma o quanto quiserem enquanto a pessoa ainda é criança, mas em algum momento depois de atingir a puberdade, eles assumem uma forma definitiva e não podem mudar mais. Vale notar que existem certas verdades e tabus relacionados a daemons no mundo de Lyra. Por exemplo, uma pessoa não pode se afastar de seu daemon (sob risco de morrer) e é absolutamente impensável tocar no daemon de outra pessoa. Uma pessoa e seu daemon são, para todos os efeitos, duas partes de uma coisa só.

Pois bem. No começo da história, vemos Lyra e seu daemon Pantalaimon entrando na Sala Privativa de Jordan – uma sala reservada apenas para os catedráticos e seus convidados, desde que todos homens. “Nem as criadas entravam para limpar; esse trabalho só quem fazia era o Mordomo”. Ou seja, Lyra começa sua aventura entrando escondido em um lugar em que nunca poderia entrar – algo bem emblemático, dado que uma das principais mensagens por trás de toda a trilogia é a importância de se desafiar e questionar a autoridade, a hierarquia e as estruturas de poder.

fronteiras do universoPor mais boas e encantadoras que elas pareçam na superfície.

 

A partir desse único ato transgressor, Lyra toma conhecimento: 1) de uma conspiração para matar seu tio Asriel; 2) da existência de um outro mundo no céu do norte; e 3) do mistério em torno do qual a narrativa de toda a trilogia vai girar: o Pó e por que ele se fixa em adultos, mas não em crianças.

Fronteiras do Universo mistura elementos de fantasia e de ficção científica, mas não se engane: conforme a história avança, inferimos rapidamente que se trata de uma Fantasia, com F maiúsculo. Nesse sentido, a trilogia de Pullman têm uma importância enorme, pois desafia estereótipos que o gênero já repetiu vezes sem conta: em Fronteiras do Universos temos não um herói, mas uma heroína. Esperada, profetizada e completamente à altura.

Lyra salva. Várias vezes. E salva homens, e mulheres também. A história em si é sobre ela e é ela que move a trama, tanto com suas características positivas, como com seus erros e falhas. Porque apesar de termos uma heroína destinada a salvar o mundo, Lyra é gritantemente imperfeita, e é isso que torna a história tão intrigante, envolvente e real (apesar dos daemons e dos ursos de armadura).

fronteiras do universoE dos universos paralelos.

 

Embora Pullman tenha negado que criou Lyra para compensar uma falta de personagens femininas na Fantasia (“Meu negócio não é remediar carências; meu negócio é contar histórias”), é notável o quanto Fronteiras do Universo desafia convenções – tanto literárias, como culturais, religiosas e sociais – que, entre outras tiranias, inferiorizam e invisibilizam o gênero feminino.

Como já mencionado, temos uma garota como a heroína da história, mas a subversão de estereótipos da obra de Pullman não pára por aí. Toda a trilogia é uma releitura, afinal, de Paraíso Perdido – poema épico de John Milton publicado em 1667, que conta a história do pecado original, quando Adão e Eva são expulsos do Éden depois que Eva é tentada a comer o fruto proibido. A diferença é que a tentação que Lyra  sofrerá precisa acontecer para que a humanidade seja salva.

Nesse cenário, um dos maiores vilões de Fronteiras do Universo é o Magisterium, a instituição religiosa recheada de fundamentalistas católicos que governa o mundo de Lyra. Não à toa, católicos radicais do nosso mundo são críticos vorazes e chamadores-de-boicotes da obra de Pullman (provando que, como qualquer bom fundamentalista, eles não entenderam nada).

Deixa eles tentarem nos impedir. 

 

Isso é algo que eu acho particularmente interessante em Fronteiras do Universo. Sendo católico extremista, o mundo de Lyra é profundamente misógino e machista. Aliás, como produto do seu meio, a própria personagem possui uma misoginia internalizada bem arraigada no começo da história

“Ela considerava as Professoras com o desdém próprio a uma pessoa da Jordan: essas pessoas existiam, porém, coitadinhas, nunca seriam levadas a sério – não mais que animais vestidos de gente, representando uma peça”.

Mesmo assim, Lyra é a heroína. Mesmo assim, temos a sra. Coulter, uma vilã tão engenhosa que conseguiu alcançar os mais altos palanques de poder, apesar dos obstáculos. Mesmo assim, temos a poderosa Serafina Pekkala e as bruxas do Lago Enara. Mesmo assim, temos uma história que segue para outros mundos além do de Lyra para encontrar outras personagens femininas importantes e complexas, como Mary Malone, Lady Salmakia, Ruta Skadi. Com Fronteiras do Universo, Pullman responde com maestria a todos que usam o absurdo argumento “mas na época mulheres eram a mesma coisa que nada; eles só estão sendo fiéis à época!” para justificar a ausência ou o maltrato de personagens femininas em obras de fantasia. 

Chega, gente.

 

Na minha opinião, Fronteiras do Universo foi um grande marco não só na minha vida, como na literatura fantástica (e isso que eu nem falei nada sobre um dos casais mais apaixonados da literatura infanto-juvenil que, detalhe: são anjos e são gays). Felizmente, a obra de Pullman não passou despercebida. O escritor recebeu uma série de prêmios e honrarias por ela e viu sua história ser adaptada para o rádio, teatro e cinema (esta última, só o primeiro livro – o medo do estúdio de provocar a ira católica foi tanto que a história perdeu todo o sentido na telona e o filme de 2007 foi um fiasco).

A boa notícia veio em 2015, quando Pullman e a BBC anunciaram a adaptação da trilogia em uma série de TV (ainda sem data de lançamento). Mas, olha se você ainda não conhece Fronteiras do Universo, não espere a série. Leia os livros, você não vai se arrepender.

Ninguém pode me transformar numa lady.

 

Obs: Apesar de eu usar umas imagens e gifs do filme de 2007, não recomendo assistir, ok? É que é bem ruim. Vai nos livros, que é sucesso. 🙂


Leia também Personagens Femininas em Harry Potter – Um Adeus aos Estereótipos. 

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