Personagens Femininas Incríveis – A Síndrome da Coadjuvante Hiper Competente
Não importa o quão incrível uma personagem feminina é, ela ainda assim será coadjuvante do protagonista masculino semi-competente na maioria das vezes.
Por trás de um grande homem, existe uma grande mulher.
É muito provável que você já tenha ouvido isso antes. Dita em tom elogioso, essa frase é uma daquelas pérolas de machismo benevolente, do tipo que enaltece a mulher por ocupar uma posição inferiorizada em relação ao homem. No caso, essa posição é a de eterna coadjuvante, cuja principal função é a de apoiar a trajetória dos homens ao seu redor.
De muitas formas, esses papéis de gênero – o homem como herói protagonista e a mulher como a coadjuvante que está lá para apoiá-lo – acabam influenciando a maneira como homens e mulheres são representados na cultura pop. Durante muito tempo, por exemplo, as personagens femininas tiveram sua representação limitada ao que a sociedade impunha às mulheres na vida real: o papel de esposa, namorada, filha, ou interesse romântico em geral. Foi nesse período que os estereótipos femininos clássicos dominaram as telas. A donzela em perigo. O interesse romântico que ora cuida e nutre, ora enche o saco do protagonista. A personagem que não passa de um prêmio para o herói no final do filme.
Às vezes ela pode ser tudo isso ao mesmo tempo.
Com o tempo, no entanto, a sociedade foi mudando e conforme as mulheres foram conquistando novos espaços, a demanda por melhor representação feminina na mídia foi crescendo. Com isso, tivemos a ascensão da chamada Personagem Feminina Forte™ – durona, chutadora de bundas e distante de ideais estereotipicamente femininos (com exceção do seu corpo escultural e da sua disposição em transar com o herói, claro). Predominante em filmes de ação, esse tipo de personagem logo se tornou motivo de escárnio, pois embora quebre com noções clássicas do que significa ser mulher, elas ainda assim costumam ser escritas como coadjuvantes unidimensionais, e muitas vezes aderem a ideais machistas do que uma mulher empoderada deve ser (além de serem muito objetificadas sexualmente).
Com isso, algumas variações menos estereotipadas da Personagem Feminina Forte foram surgindo, uma delas a razão de ser deste texto: a Coadjuvante Hiper Competente.
Diálogos adaptados para trazer verdades.
Você sabe. Estou falando daquela personagem feminina que acompanha o herói protagonista nas aventuras e é muito mais competente do que ele. Em março desse ano, a Vox publicou um artigo que explica muito bem esse fenômeno. De acordo com os autores Constance Grady e Javier Zarracina:
“A cultura pop é cheia de personagens femininas brilhantes que sabem tudo e podem fazer qualquer coisa – exceto salvar o dia. Elas precisam dos seus amigos homens menos competentes para fazer isso. (…) Essa abordagem é meio que uma resposta ao feminismo. Todos sabemos que é ruim relegar a sua personagem feminina ao papel de donzela em apuros, então vamos fazer com que ela seja competente! Na verdade, vamos fazer melhor: vamos fazer com que ela seja mais competente do que o herói. Girl power! Os caras são sempre uns idiotas trapalhões, não é mesmo garotas? Exceto, sabe, quando é importante. Quando é importante, somente um cara pode fazer o serviço.”
A Vox também trouxe um quadro que ilustra bem a questão. (Tradução: Nó de Oito)
É importante notar que ninguém aqui está falando que essas personagens são ruins. Elas são maravilhosas. O problema é que a frequência com que elas aparecem, sempre como coadjuvantes de heróis homens, ajuda a cimentar a noção de que não importa o quão incrível uma mulher é, ela ainda assim é menos do que um homem e nunca será capaz de conquistar mais do que ele. É aquela história lá de cima: por trás de um grande homem…Sempre por trás, sempre a coadjuvante e, portanto, sempre menos importante.
Vale notar que três outros clichês/fenômenos estão atrelados à síndrome da Coadjuvante Hiper Competente. O primeiro deles é a Síndrome Trinity, cunhada pela crítica Tasha Robinson para falar daquelas personagens femininas hiper competentes que são apenas apresentadas dessa forma, mas não fazem nada de muito significativo ao longo da trama.
Muitas vezes elas acabam caindo em estereótipos femininos clássicos ou na boa e velha objetificação.
O segundo é o Princípio Smurfette, a prática comum na cultura pop de ter exatamente uma única personagem feminina dentro de um grupo variado de homens. Isso porque a Coadjuvante Hiper Competente costuma ser também a única personagem feminina de destaque na história (ou em um núcleo da história). Além disso, é interessante observar que quando acontece de a protagonista ser uma mulher, coadjuvantes masculinos tomam o lugar da Coadjuvante Hiper Competente. Ao mesmo tempo, inúmeras histórias trazem heróis homem apoiados também por coadjuvantes masculinos. Os motivos são os mesmo que motivam a prática do Princípio Smurfette: uma mulher como representante máxima do gênero feminino é considerado o suficiente em uma produção. Além disso, existe uma crença machista generalizada de que mulheres são incapazes de trabalhar juntas. Então ou uma mulher ajuda um homem ou ela é ajudada por um homem. Uma mulher ajudando uma mulher já é muito mais raro.
Um dos motivos pelos quais amamos Jessica Jones.
Já o terceiro diz respeito à influência do androcentrismo na cultura pop. Androcentrismo é a prática de considerar o homem (branco, cis e hetero), seu ponto de vista e suas experiências como padrão de toda a humanidade, marginalizando tudo o que cai fora dessa classificação. Por esse motivo a Coadjuvante Hiper Competente é coadjuvante e não a heroína: ela não é homem. A ideia é que mulheres podem representar somente a si mesmas, enquanto homens podem ser os representantes de toda a humanidade. Por supostamente serem capazes de gerar uma identificação com todos os membros da audiência, homens são continuamente escolhidos como os protagonistas.
Como eu já disse em outro texto, esse tipo de pensamento (que muitas vezes não chega a ser consciente, mas parte das crenças de uma sociedade profundamente machista) acaba gerando muitos clichês, estereótipos e outros disparates além da Coadjuvante Hiper Competente, como o próprio Princípio Smurfette; a ideia de que meninos e homens não se interessam por histórias femininas, mas que histórias masculinas interessam a meninas e mulheres; e a predominância do male gaze e, consequentemente, da objetificação feminina. E claro, tudo isso é perpetuado pela presença predominante de homens por trás das câmeras – uma vantagem garantida por milênios de machismo e misoginia.
Vou só deixar isso aqui.
Para finalizar, é importante observar que todos esses estereótipos e fenômenos resultantes do machismo na cultura pop acontecem concomitantemente um ao outro atualmente. Sim, a Donzela em Apuros deu espaço para a Personagem Feminina Forte, que de certa forma abriu as portas para a Coadjuvante Hiper Competente, e assim por diante, mas isso não significa que a Donzela em Apuros desapareceu, ou que não temos mais a clássica Personagem Feminina Forte. Aliás, uma mesma personagem pode inclusive personificar esses diferentes clichês (e muitos outros) em diferentes momentos de uma produção.
Por esse motivo é tão complicado declarar que uma personagem é “feminista”. O que podemos fazer é identificar as representações que possuem influências e implicações machistas, refletir sobre elas e rejeitá-las nos produtos que consumimos e produzimos. No caso da Coadjuvante Hiper Competente, por exemplo, vale mais a reflexão: se a coadjuvante é assim tão mais foda, por que ela não é a protagonista?
Leia também O Homem como Padrão: Os Efeitos do Androcentrismo no Cinema e na Televisão.
Flávia
August 26, 2017 @ 6:59 pm
Respondendo à pergunta final, penso ainda em outra questão: gostamos de personagens principais (heróis) inocentes, falhos, que aprendem em sua jornada e vão se tornando mais fortes e experientes. Quando isso acontece com um homem, percebo que as pessoas ao meu redor gostam, elogiam, justificam como um bon desenvolvimento do personagem. Quando o filme retrata uma mulher que, no início da aventura, falha e é inocente, as pessoas chamam de burra, chata – mais ou menos o que acontece com Sansa Stark de GOT.
Lara Vascouto
August 26, 2017 @ 8:04 pm
Com certeza, Flávia! O público é bem menos tolerante com mulheres falhas. Ótima contribuição, obrigada!
Sarah
August 27, 2017 @ 2:29 am
Você pode falar do desprezo das pessoas em relação à sansa de got? é deprimente como, em pleno 2017, as pessoas ainda desprezam a sansa e elevam a arya como personagem fodona, mas quando aparece uma arya na vida ela é marginalizada. esse texto me lembrou muito as duas, porque, se parar para pensar, a sansa tem salvado o jon há uma temporada inteira e só ele sai como o herói.
Lara Vascouto
August 27, 2017 @ 1:15 pm
Vou pensar sobre isso, Sarah! Obrigada pela sugestão. 🙂
JL
August 3, 2018 @ 9:26 pm
Nossa nunca tinha pensado nisso.
tô escrevendo um livro, por enquanto tá só no resumo, mas tô confiante em desenvolvê-lo e queria umas dicas pra não cair no princípio smurfette, eis os meus personagens:
– a heroína fodona, confiante e bondosa, que acredita que está fazendo o que é certo, até descobrir uma terrível verdade que a faz refletir suas atitudes causando uma mudança de curso na sua jornada;
– o mestre homem que supostamente a orienta e se importa com a heroína, até que ela descobre que suas intenções estão bem longe de serem nobres, então se volta contra ele procurando vingança/justiça;
– um coadjuvante masculino com história que primeiramente servirá como antagonista para morrer, mas a revelação de sua identidade após sua morte fará a protagonista mudar de lado;
– uma coadjuvante feminina com história que possivelmente será a motivação para a heroína procurar redenção e salvar o dia, não sei se a coadjuvante morrerá ou não (espero que não);
– outra coadjuvante ainda não muito bem definida que possivelmente servirá primeiro como antagonista mas depois pode mudar de lado;
Então, gostaria de saber se pelo menos a estrutura básica tá ok, pra ter representatividade e o que vc acha necessário acrescentar, se possível, pra melhorar isso.
bruno
August 30, 2017 @ 7:57 am
respeito o ponto de vista, mas francamente… os exemplos sobre harry potter, matrix e guardioes n tem nenhum fundamento.
Elver Gobbi
August 30, 2017 @ 7:20 pm
concordo com o texto como um todo, mas tem algo que não levou em consideração. tão arraigado como o machismo, existe o conceito de que o personagem protagonista é o mais importante, quando na verdade é uma questão literária em que apenas se coloca o foco sobre um personagem, que pode ser mesmo um simples observador. indiscutível a liberdade do autor e todas as suas possibilidades na criação.
além disto, a ideia de ter um coadjuvante hiper competente – como você mesma diz ocorrer tanto com protagonistas homens como mulheres – é um efeito natural de outro conceito já praticado na composição de roteiros e toda literatura: não somos uma ilha, e a ajuda de outros podem ser decisivas. chega de rambos…
como talvez quis expressar, as personagens femininas fortes fizerem parte da história e abriram de modo irrefutável o caminho para estas coadjuvantes hiper competentes, como diz. por sua vez, estas podem abrir caminhos para outras possibilidades (menos complexo de rambo, por favor). como exemplo, ripley e lara croft são nomes respeitados e, por mais que falem sobre a objetificação, serviram de base para versões mais realistas hoje. poderia descrever um belo texto sobre isso, antes e depois da aparição das personagens, no mundo do cinema e dos games. consulte a história.
por fim, estou assistindo jessica jones. achei bem legal a série, mas talvez por alguns motivos diferentes. a primeira coisa que percebi e que fica patente por toda a série é que as mulheres, quando têm poderes, podem cometer os mesmos erros que os homens. aqui fica distante o conceito antigo de que as mulheres são sempre puras de ação e perfeitas, como resquício do romantismo. um grande passo para que num futuro próximo os tratamento sejam iguais.
Enrico
August 31, 2017 @ 5:14 am
Concordo com tudo menos com o exemplo de Harry potter, o harry também foi capturado pelo vilão, mais vezes que a hermione inclusive, havia uma profecia de que era ele quem deveria derrotar o lorde da trevas e a hermione recebe sim créditos por derrotar voldemort.
Enrico
August 31, 2017 @ 5:18 am
Agora eu vi que o caso de hp se refere ao segundo filme e não a série inteira, é realmente o exemplo serve nesse caso.
Perdão.
Bianca
July 8, 2018 @ 2:54 am
Quem é capturada no segundo livro é a Gina.
Caio Borrillo
October 18, 2017 @ 12:27 am
Lara, tem uma coisa que me incomoda há muito tempo a respeito do filme Wall-E e não sei se é aqui o melhor lugar pra comentar, por causa do tema, mas achei que tinha, e acabei vindo aqui!
A questão é a seguinte: Wall-E é um stalker abusador! Repara na forma como ele é obcecado pela EVA e como a persegue pela Terra enquanto ela tá em missão. É o tempo todo!
Depois, ela recolhe a planta e entra em hibernação. O Wall-E toca, carrega a EVA em passeios românticos que só ele curte. Ele chega a abrir partes do corpo da EVA pra tentar acordá-la. Isso me pareceu uma mensagem do tipo “olha, se a amiguinha estiver desacordada, pode tocar nela sem ela saber, tá?”.
Depois a nave recolhe a EVA, ele vai encangado na nave de volta para a Axiom. E lá ele ATRAPALHA a missão da EVA e depois quando ele age, FINALMENTE, com alguma nobreza… Ela é quem desiste da missão, depois de ver o vídeo de todas as vezes em que ele a invadiu e a levou pra passear sem seu consentimento e acha isso FOFO!
É coisa da minha cabeça? Tô loko? Não tem nada de estranho na relação desses dois?
Obrigada por esse site maravilhoso, Lara!
Bianca
July 8, 2018 @ 3:00 am
É impressionante como há pessoas que vêem algo ruim em Wall-E. O filme é uma gracinha e ele estava apenas tentando acordá-la, e não invadi-la. Tanto é que a única coisa próxima que ele queria era apenas ficar de mãos dadas com ela. Ele é apenas um robô (e inocente), estava apenas preocupado com alguém por quem se apaixonou.
XXXXX
November 8, 2017 @ 11:40 pm
Lendo esse texto, só consegui pensar em percy jackson & os olimpianos e as séries subsequentes. Nelas, annabeth chase é mil vezes mais inteligente, mas é sempre percy, o herói trapalhão, que salva o dia e ganha todos os aplausos. hazel levesque e thalia grace também são filhas dos três grandes e superpoderosas, mas na maioria das vezes apenas percy, jason e nico são considerados, mesmo pelos fãs. E nos outros livros do rick riordan, isso continua…
Bianca
July 8, 2018 @ 3:14 am
A Annabeth é mais inteligente, de fato, mas o Percy é mais poderoso e isso é inegável. Além disso, todas as garotas tiveram seu momento de destaque e salvaram os outros em algum momento. E a Annabeth foi responsável por conseguir a Athena Partenos sozinha, então não acho que ela se encaixe nisso, assim como a Hermione ou Trinity, até porquê existe um clichê chamado profecia (ou a síndrome do “escolhido”, enfim), então quando se tem isso, não há muito o que os outros personagens possam fazer.
Juliana
November 15, 2017 @ 9:59 pm
Xena é uma série que está acima dessas problemáticas <3
JL
August 3, 2018 @ 11:32 pm
Conseguiu deixar o filme ainda mais fofo rsrsrsrs
JL
August 3, 2018 @ 11:33 pm
desculpe, respondi seu comentário por engano, teve um problema aqui que fez minha resposta ir parar em outro comentário