Livro x Filme – O Horror que foi a Adaptação de Gina Weasley para o Cinema

Adaptações podem nos dizer muita coisa sobre como o cinema entende de forma limitada alguns tipos de personagens.

gina

Então. Sabe aquelas pessoas insuportáveis que lêem livros e ficam super empolgadas para as suas adaptações cinematográficas, apenas para sair do cinema vermelhas de indignação, listando todas as faltas, erros e mudanças mirabolantes que Hollywood se achou no direito de fazer nas suas amadas histórias?

Prazer, eu sou uma delas.

Quer dizer, olha, eu super entendo que o filme nunca vai ser como o livro. Simplesmente não tem como. Por esse motivo, aliás, que falamos que um livro é adaptado para o cinema – ênfase na palavra adaptação. Coisas precisam mudar ou ser contadas de forma diferente para fazer sentido em linguagem audiovisual. Entendo isso.

Mas, existem adaptações e adaptações. Às vezes, podemos ter mudanças sutis que não fazem sentido nenhum e desvirtuam todo o ponto da história. Em outros casos, podemos ter mudanças drásticas que mantêm o propósito e por isso nem chegam a incomodar. No meu entendimento, “ser fiel à obra” significa principalmente manter a sua essência, a sua mensagem, a sua lógica. E o fato é que muitas adaptações não respeitam essa regra, muitas vezes em prol de fórmulas cinematográficas manjadas e cansativas.

No caso de mudanças em personagens, que é pra onde escolhi voltar o meu olhar indignado, não raro essas fórmulas costumam ser baseadas em estereótipos e papéis de gênero – especialmente quando se trata de personagens femininas. Pensando nisso e em várias personagens que eu amo que sofreram transformações para se encaixar na concepção hollywoodiana de mundo, resolvi criar uma série de posts explorando as mudanças de livro para filme em personagens femininas marcantes da literatura.  

Minha primeira escolhida? Sim, como não: Gina Weasley.

Antes de mais nada, deixa eu falar um negócio: pra mim, uma insofrível potterhead, a franquia de filmes Harry Potter falhou espetacularmente em adaptar a história do menino que sobreviveu para as telas. Tudo foi desvirtuado na sua adaptação: desde os fatos da história em si, até a própria essência dos livros e da maioria dos personagens.

“- Você depositou seu nome no Cálice de Fogo, Harry? – perguntou Dumbledore calmamente”. Perguntou Dumbledore calmamente. Calmamente. CALMAMENTE.

 

Gina Weasley é apenas uma das inúmeras falhas dos filmes, mas escolhi falar dela porque a sua transformação das páginas para as telas foi provavelmente a mais devastadora de um personagem na história das adaptações.

Pois bem, quem é Gina Weasley nos filmes? Gina é a mais nova e a única menina entre os sete filhos da família Weasley (não me lembro se cortaram o Carlinhos dos filmes, mas enfim). Suas principais características e feitos são: compor cenas com estudantes da Grifinória; ser possuída pelo diário de Tom Riddle e salva pelo Harry; fazer figuração em jogo de quadribol e invasões do Ministério; lançar um feitiço (Reducto) muito bem; e ficar muito sem graça e desconfortável perto do Harry, inclusive enquanto o beija, dá comida na boca dele ou amarra o seu cadarço (sim, wtf!).

Em suma, nos filmes Gina é pouco mais que uma figurante que por acaso é também o interesse amoroso do protagonista. Tudo a ver com a Gina dos livros, né?

Não! Tudo errado!

 

Então como é Gina Weasley nos livros?

Ora, a principal função da personagem nos livros também é ser interesse amoroso do Harry. Por favor, não pense que esse é o problema, porque não é – não em um história com tantas personagens femininas incríveis como é Harry Potter.

A diferença é que, ao contrário dos responsáveis pelos filmes, J.K. Rowling entende que para ser interesse romântico do protagonista é preciso que uma personagem tenha mais qualidades e faça mais do que simplesmente estar lá. Rowling entende um romance como uma situação complexa, de muitas camadas, e por isso vai construindo Gina cuidadosamente para colocá-la em pé de igualdade com Harry e fazer com que um romance entre eles faça sentido.

Ao contrário disso, que não faz sentido algum.

 

Por esse motivo, embora a principal função da Gina nos livros seja a de ser o interesse romântico do Harry, vemos claramente que ela não é só isso. Na verdade, justamente por ter essa função, ela não poderia ser só isso.

Com isso, temos nos livros uma Gina que é completamente diferente de sua versão cinematográfica. É verdade que nos seus primeiros anos ela se parece bastante com a Gina dos filmes – tímida, insegura e com um paixão não retribuída pelo Harry, a personagem é pouco mais que uma sombra que aparece vez ou outra. Mas conforme ela vai crescendo e passa a se comportar normalmente perto do trio principal, tudo muda.

A partir do quinto livro, Gina se torna uma personagem popular, divertida, amiga e talentosa, que não tem medo de dizer o que pensa.

“Gina não parecia nem um pouco chateada com o fim do namoro com Dino; pelo contrário, era a vida e a alma da equipe. Suas imitações de Rony subindo e descendo na frente das balizas quando a goles vinha em sua direção, ou de Harry, berrando ordens a McLaggen antes de ser nocauteado, divertiam constantemente os jogadores.”

Ela não se intimida facilmente…

“- Teremos que usar a lareira da Umbridge e ver se conseguimos falar com ele – disse Hermione, que agora parecia decididamente aterrorizada com a sua ideia. – Vamos afastar Umbridge da sala outra vez, precisamos de vigias, e é aí que podemos usar Gina e Luna.

– Nós faremos – embora fosse visível que Gina se esforçava para entender o que estava acontecendo, ela concordou imediatamente.”

Não deixa que a subestimem…

“- Tudo bem – disse Harry, irritado, virando-se para a garota – Primeiro, ‘nós’ não vamos fazer nada, se você está se incluindo no grupo, e segundo, Rony é o único que tem uma vassoura que não está guardada por um trasgo de segurança, portanto…

– Eu tenho vassoura! – lembrou Gina.

– É, mas você não vai – disse Rony, zangado.

– Com licença, mas eu me importo tanto com o que acontece a Sirius quanto vocês! – replicou Gina, endurecendo o queixo e fazendo com que sua semelhança com Fred e Jorge repentinamente se acentuasse.

– Você é muito… – começou Harry, mas Gina o interrompeu com veemência.

– Sou três anos mais velha do que você era quando enfrentou Você-Sabe-Quem pela posse da Pedra Filosofal, e fui eu que deixei Malfoy sem ação na sala da Umbridge atacado por papões voadores.”

Sabe se defender (aliás, é de sua boca que ouvimos mais de uma vez que mulher nenhuma tem que dar satisfação para ninguém sobre sua vida amorosa)…

“- Oi!

Dino e Gina se separaram e viraram para olhar.

– Que foi? – perguntou Gina.

– Não quero encontrar a minha irmã se agarrando em público!

– Estávamos em um corredor deserto até você se intrometer! – retrucou Gina.

Dino pareceu constrangido. Lançou um sorriso evasivo a Harry, que não o retribuiu, porque o monstro recém-nascido dentro dele urrava, pedindo imediatamente a exclusão de Dino da equipe.

– Ãh…vamos Gina – convidou Dino – vamos voltar para a sala comunal…

– Vai indo! – respondeu Gina – Quero dar uma palavrinha com o meu querido irmão!

Dino foi embora, parecendo não lamentar sua saída de cena.

– Certo – disse Gina, jogando os longos cabelos ruivos para trás e encarando Rony, aborrecida -, vamos entender de uma vez por todas. Não é da sua conta com quem eu saio e o que eu faço, Rony…

– É sim! – retrucou Rony no mesmo tom zangado. – Você acha que eu quero que as pessoas digam que a minha irmã é uma…

– Uma o quê? – gritou a garota, puxando a varinha. – Uma o quê, exatamente?”

Fala verdades quando precisa…

“- Nós queríamos falar com você – disse Gina -, mas você ficou se escondendo desde que voltamos…

– Eu não queria que ninguém falasse comigo – respondeu Harry, sentindo-se cada vez mais exasperado.

– Pois foi burrice sua – disse Gina zangada – uma vez que não conhece ninguém que tenha sido possuído por Você-sabe-quem além de mim, e eu posso lhe dizer como é que a pessoa se sente.

Harry ficou muito quieto quando o impacto dessas palavras o atingiu. Então girou nos calcanhares para encarar Gina.

– Eu me esqueci.

– Sorte sua – disse Gina calmamente.”

E é capaz de tomar as rédeas de uma situação quando precisa – foi ela, Luna e Neville que iniciaram a resistência dos alunos em Hogwarts no sétimo ano, lembra? E é ela que cria um plano para roubar a espada de Gryffindor da sala de Snape. Isso tudo mostrando também que apesar de ótima, ela está longe de ser perfeita. Sua hostilidade injustificada por Fleur, por exemplo, ou a maneira maldosa como ela se refere a Rony diversas vezes são comportamentos que me incomodam bastante na personagem.

Além disso, vemos o interesse de Harry por ela desabrochar aos poucos ao longo de um ano inteiro até se tornar uma força avassaladora, que culmina numa cena tão importante e central para o romance dos dois – e tão incrivelmente cinematográfica – que nunca entendi como foi que os caras não a usaram nos filmes.

Resumidamente, quando Harry machuca Malfoy, Snape lhe dá detenções todos os sábados até o final do ano letivo, o que o impede de jogar a final do campeonato de quadribol. Para ocupar o seu lugar, Gina deixa sua posição de artilheira para jogar como apanhadora. No dia da partida, sem saber o resultado, ele sai da detenção, corre para a sala comunal e…

“Um urro de comemoração explodiu do buraco às suas costas. Harry parou boquiaberto quando, ao avistá-lo, as pessoas começaram a gritar; várias mãos puxaram-no para dentro.

– Vencemos! – berrou Rony, pulando à sua frente, sacudindo a taça de prata – Vencemos! Quatrocentos e cinquenta a cento e quarenta! Vencemos!

Harry olhou para os lados; lá estava Gina correndo ao seu encontro; tinha uma expressão dura e intensa no rosto ao atirar os braços ao seu pescoço. E, sem pensar, sem planejar, sem se preocupar com o fato de que cinquenta pessoas estavam olhando, Harry a beijou.

Decorridos longos minutos, ou talvez tenha sido meia hora, ou possivelmente vários dias ensolarados, eles se separaram. A sala ficara muito silenciosa. Várias pessoas assoviaram e houve uma erupção de risadinhas nervosas. Harry olhou por cima da cabeça de Gina e viu Dino Thomas segurando um copo esmagado na mão, e Romilda Vane com cara de quem queria atirar alguma coisa neles. Hermione sorria exultante, mas o olhar de Harry procurou Rony. Encontrou-o finalmente, ainda segurando a taça com a expressão de quem levara uma bordoada na cabeça. Por uma fração de segundo eles se olharam, então Rony fez um discreto aceno com a cabeça que Harry entendeu como ‘Bem, se não tem jeito’.

A criatura em seu peito rugiu triunfante, Harry sorriu para Gina e fez um gesto mudo indicando a saída do buraco do retrato. Um longo passeio pelos jardins parecia o mais indicado, durante o qual, se tivessem tempo, poderiam discutir o jogo.”

Essa cena é importante porque marca o início do romance do casal já de forma oficializada para todos os outros personagens. Ao contrário do que acontece nos filmes, que mostra apenas um beijo extremamente constrangedor entre eles em uma sala vazia, Harry e Gina dos livros aproveitam várias semanas de namoro oficial que amadurece o envolvimento deles para o leitor.

Então, quando Dumbledore morre e Harry percebe que não só não poderá voltar para Hogwarts no ano seguinte, como as pessoas que ele ama correm sérios riscos, ele termina com ela. Isso, por sua vez, dá todo o sentido para a cena em As Relíquias da Morte, quando Gina o beija antes do casamento da Fleur e do Gui – uma cena totalmente desvirtuada de seu sentido original no filme.

Gente,  que mané zíper…

 

Como eu disse lá no começo do texto, os filmes do Harry Potter mudaram partes tão essenciais da história e dos personagens que é até estranho falar de um só. Mas é interessante pensar na Gina porque, intencionalmente ou não, ela foi transformada no clássico interesse romântico passivo e sem personalidade que amarra o tênis do herói de vez em quando enquanto ele salva o mundo.

Eu não vou superar aquela cena nunca, desculpa.

 

“Ah, mas os caras tiveram que fazer escolhas, poxa. Não dava pra colocar tudo, né?” – ouço alguém dizendo.

Bom, eu consigo pensar em várias cenas completamente desnecessárias que foram incluídas nos filmes em detrimento de uma melhor caracterização da Gina, mas vou falar só de uma: o incêndio na Toca no sexto filme.

Essa cena não existe nos livros e não faz sentido nenhum para a história, dado que a Toca precisa ser um local seguro para o Harry pelo menos até o casamento do Gui e da Fleur. Ela só aconteceu no filme porque os caras cismaram em transformar uma história de fantasia com toques de suspense e mistério em um filme de ação. Ah, e tem outro motivo também pra essa cena existir. De acordo com o FAQ do IMDB:

“A cena foi adicionada porque senão o meio do filme não teria ação nenhuma, e além disso ela mostra que não existem mais lugares seguros. A cena também ajuda a desenvolver o relacionamento entre Harry e Gina porque, durante a cena, Harry corre atrás da Belatrix e a Gina corre atrás dele.”

Uau. Então a galera optou por inventar uma cena do zero, que não faz sentido nenhum, sendo que os livros oferecem inúmeras possibilidades para que eles alcançassem todos esses objetivos de maneira muito mais fidedigna. Quer dizer, deus o livre dar algumas falas pra garota, certo? Não, vamos fazer ela pular por cima do fogo e amarrar o cadarço do menino, é bem melhor!

Enfim. Acho que as adaptações podem nos dizer muita coisa sobre como o cinema entende de forma limitada alguns tipos de personagens. No caso de Gina, uma personagem que é interesse amoroso do herói em um filme de ação, tivemos uma transformação tão avassaladora que a sua versão literária não se reconheceria nela nem se a Bonnie Wright dançasse na sua frente usando um uniforme de quadribol e dez mini-pufes no ombro.

Fica a esperança de ainda estar viva quando a Netflix finalmente conseguir os direitos de fazer uma série baseada nos livros.


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