Por que Representatividade Importa?
Perdi a conta de quantas vezes repetimos: representatividade importa! Mas será que todo mundo entende por que importa?
Minoria é um termo complicadinho. É uma palavra que evoca, logo de cara, uma ideia de inferioridade numérica. Ora, minoria é menos, em número, do que maioria. Acontece que essa palavrinha também é usada para fazer referência a grupos historicamente oprimidos, seja social, econômica, política e/ou culturalmente. Nesses casos, a chamada “minoria” não necessariamente é inferior numericamente. É por isso que mulheres e negros são frequentemente enquadrados como minorias, apesar de serem 51,4% e 54% da população brasileira, respectivamente (maiorias numéricas).
Pois bem, e quem é a tal “maioria”? Ora, nesse sentido, a “maioria” é composta pelos grupos que dominam e oprimem social, econômica, política e/ou culturalmente as minorias. Alguns exemplos mais gritantes: homens, brancos, cisgêneros, heterossexuais (lembrando que na grande salada das relações sociais, as opressões se cruzam, se intensificam ou são amenizadas dependendo de quantos tiquezinhos você marca no bingo das minorias). Como “maiorias”, esses grupos dominantes são consequentemente entendidos como a norma, como o padrão de ser humano. A implicação sutil desse entendimento é que, por estarem fora do padrão, as minorias são menos humanas.
Mas o que tudo isso tem a ver com representatividade na mídia?, você pode estar se perguntando.
Bem, como os grupos dominantes são entendidos como “padrão de humanidade”, e como esses grupos também dominam os meios de comunicação, o que acabamos mais vendo na mídia e no entretenimento são homens, brancos, cisgêneros e heterossexuais (desde que todos se encaixem nos padrões de beleza e não tenham deficiências, claro).
Apenas para se ter uma noção:
– No período entre 2015-2016, apenas 4% dos personagens recorrentes das produções seriadas dos EUA foram gays, lésbicas, bissexuais ou transgêneros.
– Apenas 28% dos personagens com falas nos 100 maiores filmes de 2014 foram mulheres – um decréscimo do período entre 2007-2012, que teve 30,8% de personagens femininas com falas. (Lembrando que 28,8% delas usaram roupas provocativas, e 26,2% ficaram parcialmente nuas).
Mais alguns números pra você.
– Apenas 6 dos 500 maiores filme de todos os tempos tiveram mulheres não-brancas como protagonistas, sendo que 5 desses filmes foram animações. Em 2003, menos de 5% dos filmes estrelaram mulheres não-brancas. No Brasil, a situação também é bem ruim.
Numerinhos, numerinhos.
Todos esses números não só refletem as opressões machistas, racistas e LGBTfóbicas da vida real, como também as reforçam. Pois quando não retratamos e não contamos a história de todas essas “minorias” (ou as contamos apenas através de estereótipos cansativos), fortalece-se a ideia do homem cisgênero, branco e heterossexual como representante máximo da humanidade (muito embora ele seja minoria, numericamente). E reforça-se, consequentemente, aquela implicação sutil: a de que as minorias são menos humanas e, portanto, menos importantes.
É nisso que reside a importância da representatividade na mídia e no entretenimento. Representatividade significa, afinal, nada menos que…
Autoestima e Empoderamento
De acordo com um estudo de 2012, assistir televisão aumenta a autoestima de meninos brancos ao mesmo tempo que diminui a de meninos negros e de meninas brancas e negras. As pesquisadoras identificaram que tanto a ausência desses grupos nas telas, como os estereótipos negativos com os quais eles são frequentemente representados são os responsáveis por esse resultado. Garotos brancos não enfrentam esse tipo de problema, já que tendem a aparecer em posições de poder e prestígio, com namoradas/esposas maravilhosas e/ou até como super-heróis.
De acordo com Michael Brody, do Comitê de Mídia da Academia Americana de Psiquiatria Infantil e Adolescente: “Crianças são impressionáveis. Elas são impactadas quando não se vêem representadas na televisão, e são impactadas quando o grupo de jovens que se parece com elas são representadas fazendo coisas erradas”. Se você quer uma prova maior, assista ao teste da boneca.
Os resultados desse estudo fazem muito sentido para mim, pela minha própria experiência.
Quando eu tinha uns onze anos, fui assistir Star Wars: A Ameaça Fantasma no cinema. Foi o meu primeiro contato de verdade com a franquia e eu amei o filme na época (eu era criança, me deixem). Lembro de ter ficado muito empolgada principalmente na parte da corrida. Eu amava jogos de corrida e, nossa, como eu queria estar na pele do Anakin naquele filme.
Durante um bom tempo eu fingi ser o Anakin nas minhas brincadeiras, assim como fingi ser outros protagonistas masculinos queridos ao longo da minha infância. No entanto, nunca fiz isso abertamente, porque mesmo pequena eu tinha uma noção muito forte de que estava me identificando com coisas que não foram feitas pra mim. E eu me sentia errada por isso.
Esse Episódio Um de Star Wars me marcou muito porque foi a primeira vez que eu consegui identificar por que eu sentia esse misto de vergonha, ressentimento e inadequação. Eu era menina. E como menina, eu nunca poderia fazer o que o Anakin fazia. Simplesmente não havia precedentes pra isso.
“Quando eu tinha nove anos de idade, Star Trek apareceu. Olhei praquilo e saí gritando pela casa. ‘Vem aqui, mãe, todo mundo, vem rápido, rápido, the uma moça negra na televisão e ela não é uma empregada!’. Eu soube bem ali que podia ser qualquer coisa que quisesse”. – Whoopi Goldberg.
Acho que são experiências como essas que fazem com que muitas de nós acabemos por desenvolver uma espécie de “misoginia internalizada”. Milhares de pequenos “não podes” baseados em estereótipos de gênero que nos inferiorizam e objetificam vão se somando em nossas vidas até que desenvolvemos um profundo desprezo pelo gênero feminino e ressentimento pelo fato de termos nascido mulheres. O “ser mulher” se torna automaticamente algo ruim, pois significa, à primeira vista, uma existência incompleta e limitada. Aprendemos isso na vida real, e aprendemos isso no cinema e na televisão que, através de ausências e participações superficiais e estereotipadas, nos dizem que as experiências femininas não importam tanto quanto as masculinas.
Hoje em dia, chego a me emocionar quando vejo filmes com personagens femininas que não são estereotipadas ou definidas tão exclusivamente pelo seu gênero (mães, namoradas, esposas de alguém). Mas é preciso notar que falo da minha própria experiência, de uma posição de privilégio como mulher branca, magra e heterossexual. Apesar de ainda ter pouca representatividade na mídia, ainda assim são mulheres como eu que eu vejo quando elas aparecem. Como eu disse lá em cima, o golpe na autoestima pela falta de representatividade varia dependendo dos grupos aos quais cada um pertence.
1) “Por que nenhum deles é negro?”. 2) #isso não é um exagero ok #crianças dizem coisas assim #crianças se perguntam por que elas não se vêem na mídia #não me diga que isso não é importante #é muito importante #crianças PRECISAM ver a si mesmas representadas #senão crescem se sentindo inferiores e sem valor.
Se ver representado (bem representado) na mídia e no entretenimento é empoderador, pois valida a nossa existência, amplia nossas noções do que podemos ser e fazer, e desafia aquela implicação sutil de que temos menos importância. Além disso, representatividade na mídia pode ser um meio de dar espaço e voz para as minorias que não conseguem se fazer ouvir na vida real, ou mesmo que são fortemente incompreendidas e hostilizadas (como pessoas trans, por exemplo). A mídia oferece um ambiente seguro para que essas vozes alcancem “a maioria” e se tornem mais aceitas.
O que nos leva a outra coisinha que representatividade significa…
Exercício de Empatia
Sem representatividade na mídia ficamos suscetíveis a todo tipo de suposições, estereótipos e parcialidades sobre as chamadas minorias. Reforça-se aquela ideia de que elas são menos humanas.
“Uma pessoa uma vez escreveu que um dos meus contos era ‘uma confusão amorfa de nomes indianos’. A implicação era que, se eu tivesse usado nomes mais tradicionalmente britânicos como Steve, Bob, Andy, Joe e Paul, ele teria gostado mais do conto. O mesmo crítico então terminou seu texto comentando que apesar de os personagens serem indianos, havia ali uma experiência universal – de novo, a implicação sendo que, normalmente, indianos não têm experiências universais; só têm experiências indianas”. – desabafo do autor Nikesh Shukla, criador do teste Shukla para avaliar a representação de raça no cinema.
Em uma sociedade tão desigual e excludente como a que vivemos, a mídia pode ser o maior veículo de aproximação de grupos diferentes entre si. Nesse sentido, a representatividade de minorias no cinema e na televisão exercita a nossa empatia ao fazer com que nos coloquemos no lugar de pessoas que têm experiências diferentes das nossas próprias. De acordo com Michelle Obama:
“Eles se tornam parte de quem você é. Você compartilha as suas dores. Entende os seus medos. Eles te fazem rir e mudam a forma como você enxerga o mundo. E isso é especialmente verdade em um país em que existem milhões de pessoas que vivem em comunidades onde podem passar suas vidas inteiras sem contato com pessoas que são diferentes delas próprias, seja em termos de raça, religião ou simplesmente estilo de vida.”
Na vida real, isso pode reverter numa maior sensibilização dos grupos opressores tanto em relação à marginalização e destituição de direitos das minorias, como em relação ao seu próprio papel dentro da sociedade.
Além disso, quando temos todos os grupos bem representados, e vemos pessoas que consideramos tão diferentes de nós passando por situações e experiências tão humanas como as nossas, esse abismo diminui.
Arte precisa refletir a vida, senão não é arte. É comércio. É um tipo filtrado e diluído de arte. O que eu quero ver é a verdade.
Pessoas não-brancas também são parte da experiência humana.
A autora Shannon Hale também já falou sobre isso em relação ao viés de gênero que existe no marketing de literatura infanto-juvenil. De acordo com ela:
“Porque eu sou mulher, porque alguns dos meus livros têm meninas na capa, porque alguns dos meus livros têm a palavra ‘princesa’ no título, eles são classificados como ‘apenas para meninas’. (…) A crença de que meninos não vão gostar de protagonistas femininas; a humilhação que acontece – de colegas, pais, professores – quando eles gostam; a ideia de que meninas devem ler sobre meninos e entendê-los, mas meninos não precisam ler sobre meninas; o fato de que ninguém espera que meninos entendam e sintam empatia com a população feminina no mundo…tudo isso leva diretamente a uma cultura que diz a meninos e homens: ‘Não importa como uma garota se sente ou o que ela quer. Você não precisa saber. Ela está aqui para te agradar. Ela está aqui para fazer o que você quer. Ninguém espera que você sinta empatia por meninas e mulher”.
Representatividade é importante para ambos os lados e tem uma função social. A mídia tem uma influência enorme na forma como vemos o mundo, por isso é essencial que ela reconheça todas as vozes presentes na sociedade e dê espaço a elas. O seu potencial para gerar mudanças positivas na sociedade não pode ser desperdiçado. E o primeiro passo para isso é a representatividade.
Leia também 8 Estereótipos Racistas que Novelas Brasileiras Precisam Parar de Usar; e Como a Falta de Mulheres em Hollywood Contribui para a Desigualdade de Gênero na Vida Real.
Ana
January 10, 2017 @ 9:18 am
Meus Parabéns! Seus textos são sempre muito bem escritos, e apesar de toda essa informação utilizada, você não se perde. O conteúdo é sempre muito bem explorado. Por isso, gostaria de agradecer pela representatividade.
Lara Vascouto
March 31, 2017 @ 1:58 pm
Obrigada, Ana!