Invisibilidade Não-Branca – Ghost in the Shell e o Whitewashing Nosso de Cada Dia

Whitewashing: a prática racista de escalar atores brancos para interpretar personagens não-brancos. 

Essa semana saiu o novo trailer de A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell, adaptação hollywoodiana do famoso mangá de Masamune Shirow. O que era para ser uma ocasião feliz, no entanto, veio com um gosto amargo que já dura desde o ano passado, quando a escalação principal do filme foi revelada: a atriz Scarlett Johansson, descendente de dinamarqueses e poloneses, foi a escolhida para interpretar a protagonista Motoko Kusanagi.

O fato de a personagem ser japonesa, e sua história ser inteira ambientada no Japão (o que parece ter sido mantido no filme, dado os inúmeros elementos japoneses no trailer) pouco importou para os envolvidos no longa, que se mantiveram firmes na decisão mesmo após a chuva de críticas que receberam. Não contentes, aliás, ainda rodearam a protagonista com alguns coadjuvantes brancos, como Juliette Binoche e Michael Pitt.

O nome disso é whitewashing: a prática de escalar atores brancos para interpretar personagens não-brancos. Infelizmente, acontece muito, e é extremamente problemática, tanto porque mina as oportunidades de atores não-brancos, como porque retira das mãos desses grupos histórias e personagens que ajudariam a fortalecer suas identidades e a quebrar o ciclo de dessensibilização de brancos em relação a eles. Por esse motivo, whitewashing é uma prática essencialmente racista, pois contribui para manter a marginalização e invisibilização de minorias étnicas.

whitewashingApenas alguns exemplos recentes: Johnny Depp, Jake Gyllenhaal, Rooney Mara, Angelina Jolie, Tilda Swinton, Gerard Butler, Jennifer Lawrence, Russell Crowe, Emma Stone, Christian Bale, Giovanna Antonelli e Luis Melo – todos atores brancos interpretando personagens não-brancos. (tem um texto inteiro sobre isso aqui, aliás).

 

– Então tá! – tem alguém aí certamente dizendo – Mas quando vocês pedem pra escalar atores não-brancos para interpretar personagens originalmente brancos, aí não é racismo né?! HIPÓCRITAS!

Bom, é isso mesmo. Só que ninguém está sendo hipócrita, porque simplesmente não existe simetria nesses dois casos. Primeiro, porque o que não falta no cinema é história sobre gente branca pra essa galera protagonizar. Segundo, porque existe uma infinidade de personagens que não têm sua identidade e trajetória dependentes de suas etnias (e é nesses casos que atores não-brancos costumam atuar). E por último, porque racismo reverso não existe – pessoas brancas não podem sofrer racismo, porque elas não são sistematicamente oprimidas.

Assiste o Aamer Rahman explicar isso, faz favor. Prometo que vai ficar mais claro.

 

Profissionais não-brancos, por outro lado, são parte de grupos historicamente oprimidos e marginalizados, e por isso costumam ser representados na mídia ou através de estereótipos ofensivos, ou de forma nenhuma. Por isso, os motivos pelos quais gritamos racismo em um caso e comemoramos no outro são exatamente os mesmos. Se racismo não existisse, se a história do mundo fosse outra, aí sim talvez poderíamos falar em simetria nessas situações. Infelizmente, esse não é o caso.  

Por isso é tão revoltante quando whitewashing acontece. Porque ao manipular a nossa visão de mundo para manter pessoas brancas sempre no centro, contribui de forma muito eficaz para manter os profissionais não-brancos às margens. Até porque quando um personagem é não-branco, secundário e um estereótipo ambulante de sua própria etnia, então oras, claro, atores negros/árabes/asiáticos/indígenas, venham por aqui, sim, vocês são perfeitos para esses papéis!

whitewashingIsso quando não fazem filmes com protagonistas brancos em terras estrangeiras que se saem melhor em ser de outra etnia do que os próprias personagens daquela etnia. 

 

Mas o que os responsáveis pelos filmes que praticam whitewashing alegam? Porque não se engane: com o passar dos anos, o público vem perdoando cada vez menos essas escalações estapafúrdias.

Bom, Rupert Sanders, diretor de Ghost in the Shell, disse o seguinte:

“Acho que alguém sempre vai ter críticas a fazer sobre qualquer escalação. Para mim foi, sabe, eu defendo minha decisão – ela é a melhor atriz de sua geração. Me senti lisonjeado e honrado pelo fato de ela estar nesse filme. Acho que certamente as pessoas por trás do anime original tem veementemente a apoiado, porque ela é incrível e existem poucas como ela”.

Antes disso, o produtor Steven Paul já havia respondido às críticas, basicamente diminuindo os elementos japoneses da história (que a posicionam como um marco, sabe, da cultura japonesa moderna):

“Ghost in the Shell era uma história muito internacional, e não só focada em japoneses; era pra ser um mundo inteiro. Por isso eu digo que a abordagem internacional é, pra mim, a abordagem certa”.

E nessa última semana, a própria Johansson falou sobre o assunto:

“Eu certamente nunca teria a presunção de interpretar outra raça. Diversidade é importante em Hollywood, e eu nunca ia querer sentir que estou interpretando um personagem que é ofensivo. Além disso, ter uma franquia com uma personagem feminina no centro de tudo é uma oportunidade tão rara. Com certeza eu sinto a enorme pressão disso – o peso de uma propriedade enorme sobre os meus ombros”.

Antes deles, Ridley Scott – o diretor que colocou o Christian Bale para interpretar Moisés, em Êxodo: Deuses e Reisdisse o seguinte sobre as críticas de whitewashing:

“Não posso bancar um filme com esse orçamento, em que eu dependo de descontos em impostos na Espanha, e dizer que o meu protagonista é o Mohammad-sei-lá-do-que de sei-lá-da-onde. Simplesmente não serei financiado. Então a questão nem é discutida.”

Já Ari Hendel, co-roteirista de um filme que achou que seria uma boa ideia apresentar Russel Crowe como o personagem bíblico Noé (assim como Emma Watson e Jennifer Connelly como seus familiares), se justificou dizendo:

“Desde o início estávamos preocupados com a escalação, com a questão de raça. O que percebemos foi que essa história funciona no nível de mito, como uma história mítica, a raça dos indivíduos não importa. Eles precisam ser representantes de todas as pessoas. Ou você acaba com uma propaganda da Benetton ou com a equipe da Starship Enterprise. Ou você tenta colocar tudo ali, o que só chama atenção para o fato, ou apenas diz ‘Vamos fazer com que isso não seja uma questão, porque estamos tentando lidar com o homem comum.”

Certo. Então aparentemente whitewashing acontece: 1) porque um filme precisa de um Grande Nome™  para acontecer, e 2) porque essas histórias são “internacionais”, com “pessoas comuns”.

Sinceramente, eu não sei nem por onde começar.

Bom, antes que eu esqueça, alguém avisa a Scarlett que é possível ser feminista e racista ao mesmo tempo. E sim, eu acredito que todos têm responsabilidades aí – tanto os investidores, como os estúdios, os diretores, produtores, e até os próprios “grandes nomes”, que justamente por serem grandes têm não só a liberdade de recusar um papel, como a obrigação de fazê-lo quando se trata de um personagem que deveria ser interpretado por um ator não-branco. Lutar contra o racismo significa abrir mão de privilégios. Aprendamos.

Seguindo em frente agora, tendo a achar que se você precisa de um grande nome pra salvar o seu filme, então muito provavelmente ele não é tão bom assim – e, consequentemente, não vai ser um grande nome que vai salvá-lo. Curiosamente, foi exatamente isso que aconteceu em vários filmes que fizeram whitewashing. Deuses do Egito, Peter Pan, Aloha, Príncipe da Pérsia, O Cavaleiro Solitário são todos filmes que tiveram resultados financeiros que deixaram a desejar.

Além disso, a maioria dos grandes nomes geralmente só se tornam grandes porque são escalados para grandes filmes em primeiro lugar. Sigourney Weaver, Harrison Ford, Carrie Fisher, Daisy Ridley, John Boyega, Chris Hemsworth são alguns exemplos de atores que encabeçaram filmes que arrebentaram as bilheterias quando ainda eram relativamente desconhecidos do grande público.

O que nos leva a uma linha de questionamento muito interessante: por que não há muitos grandes nomes entre os atores não-brancos? Será que é porque os estúdios quase nunca apostam nesses atores para protagonizar grandes filmes?

 Ora ora. Aí está a questão de um milhão de dólares.

 

Viola Davis já disse: para um nome ficar grande, ele precisa antes de tudo de oportunidades. Mas se nem em filmes com personagens originalmente não-brancos – filmes baseados em histórias que já têm fandoms gigantescos -; se nem nesses casos atores não-brancos conseguem trabalhar, então que chance eles têm? A justificativa do “precisamos de um grande nome” é uma grande falácia, não só porque não faz sentido financeiramente, mas também porque são os próprios estúdios que impedem que esses grandes nomes não-brancos se consolidem.

Já a justificativa que fala que as histórias são “internacionais” evidencia bem como pessoas brancas são vistas como padrão da humanidade, enquanto as outras etnias seriam o Outro, o Diferente, o Exótico. Aqui vai uma novidade: pessoas brancas também possuem etnias. Esquecer esse fato é racismo na sua forma mais básica, pois coloca as pessoas brancas num patamar superior e diferenciado. E pior: permite que elas ignorem o seu papel de opressoras no sistema, colocando a responsabilidade dessa questão nas costas dos grupos não-brancos, quando deveria ser o contrário. É sempre bom lembrar: racismo é uma questão fundamentalmente branca.

Vale notar também o que está por trás da decisão de fazer whitewashing em uma história considerada “internacional”: a implicação sutil de que só é possível sentir empatia e interesse por personagens brancos. Que só embranquecendo-os é que eles ficam interessantes o bastante para estrear um blockbuster. Fortalece-se, assim, a ideia de pessoas brancas como representantes máximos da humanidade. E reforça-se, consequentemente, a ideia de que pessoas não-brancas são menos. Menos importantes, menos relevantes, menos humanas.

whitewashingRepresentatividade importa!

 

Então pois é, é difícil encontrar uma justificativa para whitewashing que não tenha racismo na sua base. Em breve teremos o live action de Mulan, e é completamente compreensível a tensão que o público está sentindo com a possibilidade de uma atriz branca ser escalada para interpretar a heroína mais famosa da China. Hollywood, afinal, já fez isso tantas vezes. Que isso ainda esteja acontecendo em 2017…bem, isso só significa que vamos falar mais, e vamos falar mais alto.

Assine a petição para falar à Disney que não vamos aceitar whitewashing em Mulan.

Veja nesse artigo do Washington Post mais 100 exemplos de filmes com whitewashing.

Whitewashing tem bastante relação com a discussão sobre apropriação cultural. Abaixo confira alguns textos que esclarecem muito bem essa questão:


Leia também 10 Vezes que Atores Brancos Interpretaram Personagens de Outras Etnias; e Personagens Não-Brancos em Filmes de Fantasia – Vilões, Monstros ou Figurantes.