3 Séries Feministas para Treinar o seu Espanhol
Vamos juntos dar uma olhada de perto em três séries recentes de língua espanhola que abordam a temática feminista em diferentes épocas.
Quer treinar espanhol e não sabe o que assistir? Nós do Nó de Oito separamos uma lista especial para você. O espanhol é a segunda língua mais falada no mundo em número de falantes nativos e de comunicação internacional; e a terceira mais falada na internet. São cerca 450 de milhões de falantes, segundo o Instituto Cervantes.
Sabe quando temos a sensação de que algo ficaria mais bonito em inglês? Ou quando não gostamos de como o som de outra língua soa? Isso acontece porque a maioria dos conteúdos que consumimos hoje em dia são de língua inglesa.
Não é mera questão de gosto pessoal.
Refleti sobre isso quando estava começando a ver uma série original Netflix de língua espanhola e quase optei pelo dublado em inglês. Que absurdo!
Espanhol é uma língua “feia”?
Passando da metade do episódio eu já tinha me acostumado com o espanhol e senti saudade de estudar o idioma. Quando eu era mais jovem, considerava o idioma “feio e chato” e concentrei todas as minhas energias para aprender o inglês “bonito e descolado”.
Essas palavras “bobas” e aparentemente sem significado mostram como funciona a dominação cultural. O que é considerado bonito, progressista e de alta qualidade tem formato e origem bem específicos; e tudo que destoa disso não é digno de valor.
Aprender uma língua é conhecer um mundo novo cheio de possibilidades. Ter contato com outras culturas, além da dominante americana & cia, é importante para ampliarmos nossa visão de mundo e conhecermos outras narrativas e olhares sobre a realidade.
Bora então para as indicações?
Juana Inês (2016)
Um achado no catálogo da Netflix, a série mexicana retrata a trajetória de vida da “primeira feminista da América Latina”. São sete episódios, que apresentam como Juana Inês de Asbaje y Ramírez de Santillana abalou as estruturas de sua época e foi considerada uma das mentes mais brilhantes de seu tempo.
Como disse Vanessa Prateano, em sua excelente resenha para o QG Feminista:
“Nada melhor do que fazer uma pequena maratona e conhecer a vida e a obra de uma mulher latino-americana que, em pleno período colonial mexicano e da Inquisição, revolucionou o que se entendia por ser mulher no século XVII.”.
Filha bastarda de um militar espanhol e uma criolla nativa da colônia, Juana aprendeu a ler e a escrever aos três anos de idade. Autodidata, dominou o português, o latim e o Náuatle (língua de origem asteca falada na colônia apenas por escravizados). Com 16 anos já era considerada uma intelectual.
Uma jovem notável
A série começa com Juana, aos 16 anos de idade, sendo levada à corte do vice-rei da Espanha para seguir com seu destino como mulher: encontrar um marido. Consciente de suas habilidades, a jovem se oferece para ser tutora da filha do vice-rei. A situação choca os intelectuais da época, que decidem testá-la em todas as áreas do conhecimento em uma grande banca.
Escritora, poeta, estudiosa, questionadora de dogmas religiosos e ameaçada de ser queimada na fogueira, Juana optou pelo segundo dos dois últimos caminhos para uma mulher em sua época: tornar-se freira. Isso porque assim ela teria mais tempo para se dedicar aos estudos, já que não poderia ir à universidade por ser mulher.
Além disso, a produção mexicana optou pela visão da linha de historiadores que defendem a orientação não heterossexual de Juana. A série mostra, por exemplo, as declarações de amor em poemas escritos por Juana para a vice-rainha Leonor, Marquesa de Mancera, da qual ela foi dama de companhia.
Pontos fora da curva
Meu único pecado é ser uma mulher em um mundo de homens.
Como bem pontuou Vanessa:
“Como se sabe, quando séries se dispõem a retratar mulheres fortes e pioneiras, em geral tais mulheres são brancas, falantes da língua inglesa, europeias ou estadunidenses”.
Assim, a representação de uma intelectual latina livre de objetificação, invisibilização e desumanização (praxe da representação de mulheres latinas no audiovisual anglo-saxão) tem de ser valorizada. Ainda mais por ser uma série de língua espanhola e com atrizes mexicanas.
Por isso, mais uma vez destacamos a importância das mulheres por trás das câmeras. Como bem apontou Helena Vitorino, para o Blog da UBU Editora:
“A grande vantagem de haver mulheres contando a história de mulheres é que o essencial à empatia pode sempre prevalecer, em detrimento do sensacionalismo”.
Helena aponta a direção de Patrícia Arriaga Jordan como brilhante.
Apesar disso, a produção deixou de explorar temas importantes da época, como a condição dos escravizados nativos e africanos na colônia, e também a própria condição da mulher branca na corte. Contudo, a questão não anula seus méritos, principalmente por se tratar de uma narrativa enxuta que condensou toda a vida de Juana Inês em uma temporada.
Siempre Bruja (2019)
Recém saída do forno, Sempre Bruxa é a segunda produção colombina com o selo original Netflix. A produção é uma adaptação da série de livros costa-riquenho (que vou adquirir, inclusive) “Yo, bruja”, de Isadora Chacon.
Lembram da minha resenha criticando a série Sabrina por não fugir dos estereótipos de representação da bruxaria? Sempre Bruxa, por outro lado, foge dos lugares comuns.
Carmen Eguiluz, uma jovem escravizada de 18 anos, se apaixona pelo filho de seu senhor. Acusada de bruxaria por seduzi-lo, a jovem é condenada a fogueira no ano de 1646. O plot twist é que Carmen é realmente bruxa e, para se salvar da fogueira, viaja no tempo para o ano de 2019.
Entre o passado e a atualidade
Na atualidade, Carmen tem que aprender a viver neste mundo tão diferente, ao mesmo tempo que cumpre uma missão para poder voltar para seu amado Cristoban no passado. Ela acaba frequentado a universidade e cursando Biologia.
Logo no começo, ela descobre que as bruxas neste tempo estão camufladas com ocupações diversas como médicas, biólogas e cientistas. Mas nem tudo são flores no futuro. Um serial killer que queima mulheres está a solta e Carmen se vê envolvida na investigação.
Mais do que aparenta ser
“Eu estava por minha conta, há centenas de anos longe de meu tempo”.
Embora possa parecer raso e cheio de clichês de tramas teen sobrenaturais, o roteiro de Sempre Bruxa surpreende, de forma leve, descontraída e com pitadas de humor.
Como apontou o portal Interprete.me, Simpre Bruja é uma série teen, mas que passa mensagens também para adultos. Logo em seu primeiro episódio, quando Carmen está para ser queimada na fogueira, percebemos seu tom de crítica. Na cena, o inquisidor enumera as razões por que as mulheres devem ser temidas e castigadas: “porque tentam, porque seduzem e porque pensam.”
Pontos fora da curva
Neste embate entre passado e futuro, a série é trabalhada na diversidade. Para começar, Carmen (Angely Gaviria) é negra e não carrega os valorizados traços caucasianos. Há uma forte mensagem de empoderamento feminino e questionamento da ordem social machista, tanto do passado, quanto do presente.
Diferente do olhar americano da representatividade, podemos observar que a série é consciente de gênero, raça e sexualidade. Sutilmente, a situação dos escravizados, que em um primeiro olhar parece cordial, mostra sua tensão e a mentalidade racista da época.
Para além do feminismo branco e liberal comumente inserido nas narrativas adolescentes americanas, vemos um aprofundamento. Apesar de ainda seguir os padrões dos corpos magros.
Surpresas boas
Além disso, temos Leon, um jovem negro estudante da universidade e amigo de Carmen. Embora não diga que é bissexual ou panssexual, isto é mostrado de forma explícita, mas não define de forma alguma o caráter do personagem.
Já falamos sobre a representação de bissexuais na mídia aqui.
Também de forma sutil a série carrega críticas ao sistema econômico em que vivemos, olhar que raramente é visto em produções norte americanas por questões óbvias.
Mesmo na consciente série sobre cubanos, One Day At Time, é gritante a forma simplista, para não dizer desonesta, que a questão é apresentada. Mas isso é pano para outra manga. Voltando…
Apesar do clima “Malhação” apontado por alguns (veja que sempre usando um tom negativo para a produção), a série é um bom drama teen sobrenatural, com pontos a serem melhorados sim, mas também vários méritos.
Por fim, a animação de abertura é muito bonita e a série se passa na bela cidade histórica de Cartagena.
La Otra Mirada (2018)
Disponível no Now e no Claro Vídeos, a série Espanhola foi produzida pela TVE e Boomerang. Apesar de ser dirigida por homens, diferente das duas outras produções da lista, La Otra Mirada também lança um olhar sensível sobre as temáticas femininas, o que demonstra que homens também podem e devem fazer sua lição de casa. A produção chegou a ser indicada para o ATV Awars Spain, como Melhor Produção e Melhor Atriz para Patricia López Arnaiz.
Voltando nosso olhar para a Espanha, temos uma série de primeira onda do feminismo branco abordando o direito ao voto e à participação política, além do questionamento sobre o papel submisso e passivo reservado às mulheres.
Ambientada nos anos de 1920, a produção conta a história de professoras e alunas de uma escola para meninas em Sevilha, na Espanha. Tudo começa quando Teresa assassina um embaixador e foge para Sevilha, onde pretende solucionar um mistério relacionado ao assassinato que cometeu. Lá ela é contratada como professora em um colégio interno para meninas.
A luta da época
Como no clássico “Sociedade dos Poetas Mortos”, Teresa instiga suas alunas e colegas a questionarem a ordem vigente na sociedade da época, abalando suas percepções enquanto mulheres.
Irreverente, Teresa quebra os padrões sociais, usando calças, fumando na frente de outras pessoas, se sustentando e deixando claro que não está em busca de um marido.
Nas palavras de Adriana Izel para o Blog do jornal Correio Braziliense:
“A entrada de uma professora assim em uma escola tradicional transforma todo o ambiente. Além de querer resolver o próprio mistério, Teresa quer levar a essas mulheres e meninas uma outra visão, um outro olhar, como o próprio nome da série sugere. E é a partir disso que La Otra Mirada debate temas que levam a entender o feminismo”.
Um conteúdo muito rico
Além da abordagem direta das temáticas por meio da figura de Teresa, as tensões da época são apresentadas no decorrer da história, como quando as alunas querem escolher a nova diretora da escola por meio do voto.
Além disso, assuntos que giram em torno de sexualidade e gênero também estão na pauta: homossexualidade e descoberta da sexualidade feminina, abuso sexual por companheiros, a questão do consentimento feminino e também a decisão de denunciar judicialmente um abuso. E mais: maternidade, diferença salarial, sororidade, casamento arranjado, diferenças geracionais, crítica ao amor romântico, divórcio, luto e viuvez.
História do passado com temáticas atuais
Revisitar estas temáticas no contexto dos anos 1920 nos faz refletir sobre grandes questões do nosso próprio tempo. O texto afiado da série é também profundamente atual, trazendo assuntos que ainda não foram superados.
Infelizmente, apesar da boa recepção da crítica, do roteiro engajado, do elenco talentoso e do pioneirismo – por ser uma das primeiras séries espanholas a ter todas as personagens principais como mulheres – La Otra Mirada não teve uma boa audiência em seu país.
Sem a visibilidade que merecia
Victor Juste, do site El Televisero, destacou que mesmo sendo uma ficção de caráter marcadamente feminista e progressista, La Otra Mirada tem sido invisível para o grande público. O jornalista conclui que se a série fosse um título Netflix, o cenário poderia ter sido outro.
Diferente da série da Netflix Las Chicas del Cable, que foi vendida como feminista mas apenas tangencia os assuntos sem aprofundamento, La Otra Mirada debruça-se do começo ao fim na temática, configurando-se como um achado na produção européia.
Conclusões
É interessante refletir sobre a diferença das três séries em relação aos seus países de origem: México, Colômbia e Espanha. Colonizado x Colonizador. Fica evidente que a série espanhola tem mais orçamento e estrutura, tendo a nota mais alta entre as três no IMDb.
Sobre essas diferenças ainda, uma outra reflexão pode ser feita acerca das temáticas abordadas. Iria uma série espanhola, por exemplo, retratar a escravidão como a série Siempre Bruja o fez?
Mesmo assim, pertinente ao seu contexto, La Otra Mirada por vezes fala do progressismo americano, pois lá as mulher já votavam, criticando diretamente o conservadorismo espanhol.
Assim, como falado no início do texto, a diversidade dos conteúdos amplia as narrativas de mundo que conhecemos.
Conte nos comentários se curtiu as indicações e se tem alguma outra legal para indicar!