Para o Cinema ser Negra (o) é uma Tragédia

Será que não existe em nenhum lugar do mundo pessoas negras felizes apesar do racismo diário, com uma vida tranquila e uma bela trajetória?

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Abrir a conta do Netflix e desejar ver milhões de filmes diferentes sobre a minha vida, mas só ver meus estigmas me deixou triste, inquieta, me fez querer mudar toda essa realidade e questionar se realmente ser negra não era uma tragédia.

Vocês já se perguntaram quantas vezes puderam assistir a aquele filme que te agarrou nas primeiras cenas, fez seu coração esquentar e te deixou tão aflita que você realmente não queria ser o personagem principal? Pois bem, eu amo esses filmes e é por eles que eu amo o cinema. Mas foi só no ano passado que eu pude fazer uma matéria na faculdade sobre cinema a partir de uma perspectiva negra, que me permitiu uma experiência incrível e trouxe novas inquietações – claro, logo eu, a problematizadora dos filmes. A partir daí eu passei a rechear as minhas tardes com curtas e longas dirigidos por cineastas negras, agarrando as listas do Netflix com força. Posso até dizer que assisti muitos dos filmes que supostamente abordavam raça em seus catálogos.

As sinopses eram basicamente: “personagem x viveu uma vida tão difícil, sendo separado da mãe aos seis anos, esteve na guerra….”; ou “a mulher é escrava e luta pela vida dos filhos…”, etc. Por favor, não me entendam mal, eu nunca questionaria a dor de uma pessoa negra e jamais diria que retratar essas realidades não é importante. O meu maior questionamento tem sido se nossa vida realmente é só isso? Se os negros não têm sido somente castigados com o peso da dor, tortura ou com a ideia de que suas vidas estão destinadas a isso? Será que não existe em nenhum lugar do mundo pessoas negras felizes apesar do racismo diário, com uma vida tranquila e uma linda trajetória?

Existe uma realidade que está posta para essa parcela da população, disso não temos dúvidas. No entanto, por muitos e muitos anos o cinema tem tornado esse fato a única história a ser contada sobre nós, negros. E isso pode ser notado  através da visibilidade de diversos filmes que retratam dor e sofrimento, como o famoso e premiado “12 Anos de Escravidão”, por exemplo.

Notavelmente, esse fato é reflexo de um processo histórico de apagamento da realidade da população negra. Por essa lógica, antes do período escravocrata não houve história a ser contada, e depois fizeram dela a nossa única referência, retratando negras e negros unicamente em filmes sobre o assunto – inclusive, sempre com a presença de um homem branco pronto para salvá-los.

negraNovamente podemos falar de 12 Anos de Escravidão, ou de outro exemplo antigo e também premiado: o filme “Diamante de Sangue”, em que DiCaprio salva a África da pobreza e exploração.

 

Esses fatos me fizeram questionar até que ponto realmente o cinema está apenas retratando a realidade ou sendo utilizado como uma ferramenta para que as próprias pessoas negras acreditem que suas vidas sejam uma tragédia.

Existem listas e listas extensas de catálogos que com títulos como “10 filmes que tratam questões raciais” poderiam ser definidas como “10 filmes que retratam somente um lado da moeda do que é ser negro”, ou “10 filmes sobre a tragédia e sofrimento do que é ser negro”. Se existe – e a gente sabe que existe – uma variedade enorme de pessoas negras, povos e origens distintas, tradições e línguas também, porque não dialogar com essa realidade, produzir e mostrar ao mundo sua beleza? A presença de sujeitos donos de seu próprio destino parece uma ideia inimaginável na produção atual. O que cabe e sempre está presente é o indivíduo fruto da escravidão e nada mais.

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Podemos falar dos inúmeros estereótipos racistas do cinema Hollywoodiano, que por sinal não nos surpreende. No entanto, trazer outras percepções que muitos de nós tem lutado para mostrar ao mundo faz-se necessário. Abdias do Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN) no Brasil, em 1944, e com ele afirmou que “o TEN inspirou e estimulou a criação de uma literatura dramática baseada na experiência afro-brasileira, dando ao negro a oportunidade de surgir como personagem-herói”.  Essa frase de Abdias toca muito a realidade em que vivemos agora: um movimento grande e urgente que pede por visibilidade na televisão, nas mídias, no cinema, podendo pensar o sonho das jovens negras de irem ao cinema e verem-se nos filmes de romances lésbicos, de super-heroínas ou até mesmo em dramas policias, de preferência sem serem retratadas como personagens criminosas.

É necessário que possamos admitir a existência de diversas histórias que possam ser contadas através das câmeras. Que trabalhando com os diversos enquadramentos da vida, e mostrando outros ângulos e takes dos melhores atos, existam cada vez mais histórias sobre nosso povo sendo retratado honestamente. Que possamos questionar a existência da morte, dor ou sofrimento sobre nós mesmos, porque a minha vida não se trata apenas disso. Ela tem, sim, os fardos que o racismo nos faz carregar, mas também tem momentos lindos junto à minha família aos domingos, tem histórias de amor e, mais ainda, tem ancestralidade.

O cinema pra mim sempre foi acolhedor e me trouxe proximidade através de emoções que só as telinhas podem causar – além daquele famoso cheiro de pipoca, que não tem como reproduzir em casa. Mas não existe nada melhor do que entrar em uma sala de cinema, sentar sem qualquer receio e saber que aquele filme sim, vai te fazer rir com pessoas negras sem piadas racistas; vai te levar ao delírio com as melhores músicas que você já ouviu; e vai te trazer aquela sensação de tranquilidade por saber que você não vai terminar o filme, deitar na cama e chorar por horas por odiar o racismo. Assim como as estruturas da sociedade, o cinema está mais que sujeito a reproduzir uma percepção racista. No entanto, podemos fazer uma escolha diante do que iremos produzir, financiar, adorar ou até problematizar, e que essa escolha seja repleta de diversas histórias e vidas mais diversas ainda sobre nós, pessoas negras.

“Arte precisa refletir a vida, senão não é arte. É comércio. É um tipo filtrado e diluído de arte. O que eu quero ver é a verdade.”

 

Saber que existem muitos cineastas que trazem esse debate faz uma chama pequena acender no meu coração. Porém, ver os grandes circuitos obrigados a produzir filmes verdadeiramente bons para nós não seria uma péssima ideia – ou melhor ainda, ver a própria população negra organizada se recusando a ser tratada como uma tragédia pelo cinema internacional, propondo saídas através de cursos voltados para suas comunidades sobre o cinema, por exemplo, ou debatendo os estereótipos que são jogados sobre nós; produzindo independentemente e dialogando para que cada vez mais possamos estar no mundo das artes.

A ideia de que o cinema não tem um  dever histórico com a população negra me incomoda. Acredito que não existe uma ferramenta construída que não possa ser utilizada por nós mesmos. Se é o cinema o maior propagador de ideias, se é um filme que envolve um casal de pretos numa sala, se é ele que junta uma família da periferia no sábado a noite ou até mesmo transmitido numa sala de aula pra tentar mudar a vida dos alunos, eu gostaria que ele fosse feito por pessoas negras, contando as realidades que envolvem o ser negro. E, mais ainda, eu realmente gostaria que os olhos que assistem a esses filmes fossem os de um corpo negro. Seria incrível se todos esses indivíduos pudessem, através de um filme, conhecer outras perspectivas sobre nossa herança.

Uma vez me disseram a seguinte frase: “quando te contarem uma história pergunte onde estava seu povo nessa mesma época e duvide sobre a sua ausência”. Então eu digo: quando o cinema te mostrar uma história, duvide e questione se ela fala sobre você e se ela conta a sua verdade ou a verdade do seu povo.


Julho é o mês da celebração da luta e da resistência da mulher negra. Marcadamente, o dia 25 representa o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. Durante todo o mês, núcleos e coletivos articulam entre si campanhas de cultura, identidade e empoderamento dessas mulheres. Participam dessa ação o Collant Sem DecoteSéries Por ElasKaol PorfírioDelirium NerdValkiriasMomentum SagaNó de OitoIdeias em RoxoPreta, Nerd & Burning Hell e Prosa Livre. #WeCanNerdIt #FeminismoNerd #JulhodasPretas


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