Retrocesso, Violência e Autoritarismo: Não Podemos Arcar com o Risco Bolsonaro

Não há motivo para supor que Bolsonaro trará qualquer coisa além de retrocesso para o país se eleito.

Foto de manifestação pró-Bolsonaro na avenida Paulista, com boneco inflável de general de faixa presidencial.

Em novembro de 2016, Donald Trump foi eleito presidente dos EUA.

Eu lembro muito bem do que senti nesse dia. Ainda estava na cama quando peguei o celular e me deparei com a notícia. O coração acelerou com o absurdo daquela realidade e se apertou de preocupação pelo futuro que se avizinhava. Para os EUA, para o Brasil e para o mundo. Pois eu sabia que o fato de um homem como aquele ter conseguido chegar ao maior assento de poder do planeta não passaria despercebido ao seus pares, independente do país de origem.

Adianta a fita e observamos agora em 2018 a nossa própria versão piorada de Trump passar para o segundo turno como favorito em uma eleição presidencial. A ressaca daquela manhã de novembro de 2016 já dura dois anos e atingirá o seu ápice nas próximas semanas. A sensação é mesmo de doença. Cabeça e corpo se retraem à espera do pior.

Como chegamos a esse ponto?

Em um artigo do começo do ano, Eliane Brum falou bastante sobre o fenômeno da “autoverdade” para explicar o apelo de figuras como Trump e Bolsonaro. De acordo com ela, a autoverdade seria a “valorização de uma verdade pessoal e autoproclamada, uma verdade do indivíduo, uma verdade determinada pelo “dizer tudo” da internet.” Isto é, vale mais o ato de dizer do que o conteúdo do que se diz. Para muitos, Bolsonaro só está sendo sincero e autêntico, e isso tem o poder de neutralizar qualquer discurso de ódio que ele promove através de suas verdades pessoais.

Bolsonaro e a autoverdade – leia. É um texto esclarecedor.

Para piorar a situação, a sedução das falas apelativas do candidato ganha potência pelo fato de que as “verdades” dele encontram eco nas “verdades” de parcela considerável da população brasileira. O tamanho do buraco se revela quando vemos um homem ser alçado ao status de “mito” por dizer que não estupraria uma deputada porque ela não merece, que mulheres devem ganhar menos porque engravidam, que preferia um filho morto do que gay, que quilombolas e indígenas não servem para nada, que seus filhos não namorariam mulheres negras porque foram bem educados, que os refugiados que buscam abrigo no Brasil são a escória do mundo, que armar a população é a solução para a criminalidade.

Que homenageou publicamente Carlos Brilhante Ustra, um dos mais famosos torturadores e assassinos da ditadura no Brasil, e de quebra dizer que o erro do regime foi torturar e não matar.

Crianças detidas durante o regime ditatorial brasileiro. O “herói” do Bolsonaro foi chefe do DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, entre 1970 e 1974, época em que foram registradas pelo menos 50 mortes e desaparecimentos forçados na unidade, e mais de 500 casos de tortura foram denunciados pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Chamado nos porões da ditadura de Dr. Tibiriçá, o torturador foi reconhecido por inúmeras vítimas e teria também detido e torturado crianças filhos de guerrilheiros, a fim de ameaçar os pais nas sessões de tortura – uma particularidade especialmente sádica do regime ditatorial brasileiro.

 

Não é preciso ir muito longe para entender por que essas “verdades” de Bolsonaro são facilmente ignoradas por muitos de seus eleitores. O Brasil ocupa o vergonhoso primeiro lugar de país que mais mata LGBTs no mundo. É um assassinato a cada 19 horas, e a cada ano esse número aumenta. Quando se trata de violência contra a mulher, também não ficamos atrás. Somos o quinto em número de feminicídios em todo o mundo: foram 12 assassinatos de mulheres e 135 estupros por dia em 2017. Já a população jovem negra é a maior vítima de homicídios no país. A cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras. Para os indígenas, a situação também é desalentadora. Em menos de dez anos, cresceu em 50% o número de assassinatos, principalmente contra lideranças indígenas.

A violência física é o extremo de toda uma cadeia de violências contra esses grupos no Brasil, ancoradas em violência institucional. Disparidade salarial, falta de representatividade política, descaso de autoridades, exclusão do mercado de trabalho e mesmo a recusa de se reconhecer essas desigualdades compõem o caldo que alimenta as opressões sistêmicas no Brasil e permite que elas estourem em violência física.

Jair Bolsonaro representa um perigo tanto em uma frente, como na outra.

Por um lado, ele se posiciona abertamente contra a garantia de direitos a essas minorias, com declarações dignas de 1940 contra mulheres, negros, indígenas e LGBTs. Ou seja, seu governo de nada faria para aplacar opressões sistêmicas que estão no cerne da desigualdade brasileira.

E por outro, ele tenta seduzir esses grupos (que apesar de minorias políticas, são maioria numérica) com uma proposta de endurecimento contra a criminalidade e liberação do porte de armas. Entre as mulheres que o defendem, por exemplo, faz sucesso a proposta do candidato de castração química a agressores sexuais e mesmo de pena de morte. Muitos outros são enredados pela promessa da liberação do porte de armas para que o “cidadão de bem” possa se defender frente ao alto índice de criminalidade.

Embora eu entenda o apelo desses discursos, é preciso entender que usar violência para combater violência nunca foi eficaz. Crimes violentos como homicídios, por exemplo, são fenômenos complexos, influenciados por uma variedade enorme de fatores, que exigem estudo e inteligência ao invés de soluções simplistas para serem combatidos. Da mesma forma, violência sexual tem muito mais relação com poder e dominação do que com sexo, e acontece independente do seu autor ter órgãos sexuais funcionais ou não. Além disso, se pegarmos o exemplo dos EUA, os números indicam que pena de morte, por exemplo, não tem impacto significativo na criminalidade. Lá no ano 2000 o The New York Times já publicou que os estados americanos que não tinham a pena de morte apresentavam taxas de homicídios mais baixas do que aqueles que tinham.

Vale notar, também, que se você é membro dessas minorias, dificilmente será beneficiado por medidas como pena de morte, pois se a experiência nos mostra alguma coisa, é que aos olhos de nossas instituições a sua palavra e vida valem bem pouco. Aliás, é mais provável que sejam esses grupos os maiores impactados pelo aumento do punitivismo e da violência policial, dado que além de perseguidos e discriminados, eles costumam ter menos acesso a recursos legais para se defender em um julgamento. O fato de que a pena de morte poderia ser usada também como ferramenta política, executando oponentes e cidadãos contrários ao governo sob um sistema judicial injusto, ineficiente e pouco transparente, também não ajuda. É difícil pensar que o Brasil está livre de operar dessa forma – ainda mais com um candidato à presidência que exalta abertamente um torturador da ditadura, e um vice que é uma caricatura de general e chegou a dizer que pode reformar a Constituição sem consultar o povo.

“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim” – foi o trecho final do discurso de Bolsonaro no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016.

Mais importante que isso, no entanto, é lembrar daqueles dados lá dos primeiros parágrafos, sobre a violência contra mulheres e outros grupos minoritários no Brasil. Armar uma população que já é extremamente violenta contra esses grupos – tanto com armas de fogo, como com o respaldo de um discurso abertamente contrário a eles vindo de uma liderança nacional – não pode trazer nenhum tipo de benefício. Pelo contrário: é o ingrediente final para completar o banho de sangue.

Banho de sangue esse que já dá sinais de se intensificar na esteira do clima de ódio, fake news e inversão do papel de vítima promovidos por Jair Bolsonaro nas últimas semanas. Na madrugada do dia 08/10, o mestre de capoeira Moa do Katende foi morto com doze facadas nas costas após declarar seu apoio ao candidato do PT. O autor do crime? Um eleitor de Jair Bolsonaro. Alguns dias antes, no Rio de Janeiro, o candidato de Bolsonaro a deputado estadual Rodrigo Amorim, destruiu uma placa de homenagem a Marielle Franco, assassinada no começo do ano, e ainda postou foto se vangloriando do feito. Em sua publicação no Facebook, ele ainda completou: “Preparem-se, esquerdopatas: no que depender de nós, seus dias estão contados”.

Deputado estadual com maior número de votos no RJ depradou placa de homenagem à deputada Marielle Franco, assassinada no início desse ano. Infelizmente, o candidato foi o deputado mais votado para deputado estadual nas eleições de domingo.

 

A cada dia crescem mais os relatos de violência contra mulheres e minorias em nome de Jair Bolsonaro. De pessoas próximas a mim, já ouvi de mulheres e LGBTs relatos de hostilidades e ameaças das mais variadas, todos respaldados pelo discurso do presidenciável. Variações de “quando Bolsonaro for eleito, vocês vão ver só” estão ganhando força, contribuindo para o clima de medo e violência. Não é invenção, não é mimimi. É fato.

Print de notícia da Veja sobre o grupo de eleitores do Bolsonaro que cantou "Bolsonaro vai matar viado" no metrô de São Paulo.

A sensação é de contagem regressiva para o caos e para o fim de tudo que lutamos tanto para conquistar nas últimas décadas. Sei que já perdemos ao permitir que o discurso de ódio do candidato se alastrasse e encontrasse eco entre tantos. Mas lembro que sempre pode ficar pior. Levando-se em conta a sua trajetória pessoal e política, não há motivo para supor que Bolsonaro trará qualquer coisa além de retrocesso para o país se eleito.

Pior: da forma como ele flerta constantemente com o autoritarismo, não há motivo para supor nem que ele vai respeitar o processo democrático que provavelmente o levará à presidência. Respeitará o candidato a Constituição, a autonomia do Congresso Nacional, os processos eleitorais que estão por vir nos próximos anos? A você que vai votar nele não por se identificar com o seu discurso, mas porque não suporta o PT, eu lembro: por piores que tenham sido os seus crimes, Dilma e Lula seguiram as regras democráticas. Tanto é que Dilma sofreu um impeachment e Lula está agora preso. Você tem a segurança de que Bolsonaro fará o mesmo? De que poderá protestar contra ele e exigir o seu impeachment caso esteja descontente com o seu governo? Tudo indica que não. Com ele não.