Muito Talento, Pouco Prestígio: Preconceito na Publicação de Livros Escritos por Mulheres

Se mulheres leem mais do que homens, por que há tantos impedimentos para que possam publicar suas próprias obras e serem reconhecidas por elas?

Ao longo de 2018, diversas escritoras figuraram na lista dos livros mais vendidos no mundo. Autoras como Margaret Atwood (com a obra “O conto da Aia”), Rupi Kaur (“O que o Sol Faz com as Flores”),  Jojo Moyes (“Ainda Sou Eu”), entre outras, puderam deixar sua marca no imaginário de milhares de leitores.

No entanto, apesar do deslumbre em se ter um livro na lista de best-sellers, a valorização de obras escritas por mulheres ainda está longe do ideal. Um estudo realizado pela Ong Public Librabry of Science, nos Estados Unidos (país que dispõe da maioria das grandes editoras mundiais), constatou que os livros escritos por mulheres custam, em média, quase a metade (cerca de 45%) do preço cobrado pelos livros escritos por homens. A pesquisa constatou também que os mecanismos de discriminação estavam presentes não só em editoras tradicionais do país, como também nas que haviam se formado há pouco tempo, e até mesmo nas editoras independentes.

Infelizmente, a realidade americana é apenas uma amostra da misoginia nas editoras em todo o mundo. No Brasil, segundo estudos encabeçados pela Universidade de Brasília (UNB), mais de 70% dos livros publicados por grandes editoras entre os anos de 1965 e 2014 foram escritos por homens.

Tal hostilidade do mercado literário a autoras mulheres pode ser também facilmente constatada no número de ganhadoras do Prêmio Nobel de Literatura: em 117 anos, tivemos somente 14 ganhadoras.

A premiada escritora Alice MunroA escritora canadense Alice Munro, célebre mundialmente por seus contos e uma das últimas a receber o Nobel de Literatura, em 2013.

 

Curiosamente, as mulheres leem mais do que os homens no Brasil e em grande parte do mundo. Se leem mais, por que há tantos impedimentos para que possam publicar suas próprias obras e serem reconhecidas por elas? Não se pode deixar de pensar que o temor patriarcal advém da proximidade crescente das mulheres àquilo que lhes foi negado por muito tempo: o conhecimento. Se antes uma mulher era condicionada a permanecer intelectualmente ignorante dada a sua “condição inferior”, na modernidade – devido às lutas sociais de muitas ao longo do tempo –  ela é convidada a usufruir do conhecimento disponível para construir o seu próprio e expô-lo ao mundo através da publicação de um livro.

Conhecimento é poder. É por meio da obtenção de conhecimento que podemos ter acesso a pontos de vista diversos, formar novas ideias e desenvolver argumentos. Em outras palavras, o conhecimento confere autonomia e protagonismo na vivência de quem o adquire. Não é um exercício meramente intelectual, pois provoca rupturas – morais e sociais – na própria consciência individual de quem a ele tem acesso.

Aquela que tem acesso ao conhecimento tem, assim, a potencialidade de descobrir no seu entorno uma atmosfera sem os valores morais e sociais usualmente reverenciados pelo patriarcado. E mais: a possibilidade de publicação de um livro faz com que a ruptura de velhos valores, experimentada por uma mulher, possa ser repassada a um grande número de leitores, garantindo a eles também a possibilidade de vivenciar mudanças libertadoras em sua forma de compreensão de mundo.

Com isso, a voz de uma mulher expressa na palavra escrita é capaz de influenciar o mundo. É sinônimo de poder. E não há nada mais ameaçador para a ordem patriarcal do que uma mulher que se dá conta de seu próprio poder e o utiliza como ferramenta para garantir o empoderamento das demais mulheres ao seu redor.

Gastão, de A Bela e a Fera, falando sobre os perigos de mulheres lendo.Gaston, em A Bela e a Fera: “Não é certo uma mulher ler. Logo ela começa a ter ideias, e a pensar…”

 

“Quando se põe a escrever um romance, uma mulher constata que está querendo incessantemente alterar os valores estabelecidos – querendo tornar sério o que parece insignificante a um homem, e banal o que para ele é importante. Por isso, é claro, ela será criticada; porque o crítico do sexo oposto ficará surpreso e intrigado de verdade com uma tentativa de alterar a atual escala de valores, vendo nisso não só uma diferença de visão, mas também uma visão que é fraca, ou banal, ou sentimental, por não ser igual à dele” – Palavras de Virgínia Woolf, mulher que escreveu seus livros em um período ainda mais sombrio ao reconhecimento da dignidade feminina.

Como consequência do temor patriarcal ao poderio das mulheres, percebe-se claramente que as políticas de publicação utilizadas por grande parte dos mercados editoriais no mundo são misóginas, e que publicar um livro atualmente é um grande desafio a mulheres. A própria J. K. Rowling, considerada uma das maiores escritoras da atualidade, conta que foi aconselhada por seu agente literário e por membros da editora a escolher só as duas iniciais do nome e do pseudônimo, respectivamente (Joanne – “J” – e Kathleen – “K”) em seu nome artístico, devido ao preconceito que teriam os leitores do sexo masculino com um livro escrito por – argh – uma mulher.

E se este temor patriarcal é percebido atualmente, em pleno século XXI, imagine o tamanho da coragem daquelas que ousaram escrever suas obras em tempos e lugares ainda mais sombrios ao reconhecimento da dignidade feminina. Para muitas, a solução foi publicar seus livros de forma anônima, ou se utilizando de pseudônimos masculinos.

Desse modo, as célebres irmãs Bronte se transformaram em Currer Bell, Ellis Bell e Action Bell (só foram utilizadas as primeiras letras dos nomes de, respectivamente, Charlotte Bronte, Emily Bronte e Anne Bronte). Amandine Dupin se transformou em George Sand (e, infelizmente, grande parte de suas obras ainda são conhecidas pela autoria do pseudônimo masculino). Já Mary Shelley publicou seu único – e grandioso – livro de forma anônima, mas teve que conviver durante quase toda a vida com o consenso geral de que o livro havia sido escrito por Percy Shelley, seu marido. Esses são apenas alguns exemplos famosos, mas situações que ilustram a forçosa obscuridade da mulher na publicação de livros não faltam.

Jane AustenA escritora inglesa Jane Austen, apesar da impossibilidade de constar seu nome em suas obras, corajosamente pediu para que fosse inserida nas capas a informação de que haviam sido escritas por uma mulher. A autora enfrentou duras críticas por seu “atrevimento”, mas fez de seu próprio trabalho o seu símbolo de resistência: todas as protagonistas são mulheres, e o pano de fundo é permeado por críticas às convenções sociais da época.

 

Alguns passos importantes já foram dados para que o talento literário de mulheres seja reconhecido o suficiente para ser publicado. Nos dias de hoje, posso ir à uma livraria e comprar um livro de Charlotte Bronte com o nome dela, por exemplo. Entretanto, há sérias barreiras para que o prestígio da mulher escritora seja equânime ao do homem. A desvalorização monetária, a manipulação preconceituosa pelas grandes editoras e a míngua de prêmios literários conquistados são apenas os sintomas de uma doença chamada misoginia e machismo.

Que possamos combater tal doença de modo corajoso e libertário, conscientes de que nenhuma opressão patriarcal nos fará retroceder. Não somos mais obrigadas a permanecer na ignorância, sem acesso ao conhecimento ou ao poder de produzi-lo. Somos, antes de tudo, protagonistas de nós mesmas, donas de nossas possibilidades de conhecimento. Somos mulheres e, portanto, muito dignas de conhecer e publicar livros.


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