Objetificação Feminina: Dos Roteiros e Testes de Elenco às Telas do Cinema
Sobre a importância da atuação de mulheres também por trás das câmeras. De novo.
Em junho de 2017, o Twitter gringo nerd entrou em polvorosa quando algumas pessoas com estômago de aço resolveram dissecar o roteiro vazado para um filme da Mulher-Maravilha escrito pelo roteirista e diretor Joss Whedon no longínquo ano de 2007. Caso você não saiba, há mais ou menos duas décadas o filme solo da Mulher-Maravilha vinha sendo cogitado, e o roteiro de Whedon foi um dos que foram rejeitados nesse longo processo. E eu só tenho uma coisa a falar sobre isso:
GRAÇAS A DEUSA.
Agora, preciso dizer que eu só li alguns trechos do roteiro, conforme as pessoas foram postando e comentando no Twitter, mas só esses trechos já foram o suficiente para fazer o meu sangue ferver de indignação. Felizmente, a Teresa Jusino do The Mary Sue leu boa parte desse terror e resumiu pra gente. De acordo com ela:
“Diana é introduzida como ‘A GAROTA’ na sua própria história. Ao longo da leitura, ela é continuamente o objeto para ser visto, corrigido ou falado sobre. Ela é basicamente reativa, e ao invés de fazer decisões heróicas precisa ter alguém lhe falando o que fazer em toda situação. Steve Trevor, ao invés de inspirá-la como ele faz no filme atual da Mulher-Maravilha, serve como seu verdadeiro criador nesse roteiro. É muito, muito nojento. Pule para a última cena, e eles ‘acabam juntos’. Ugh.
E que decisões ela faz sozinha? Oh, coisas como fazer uma dança sedutora para distrair os caras malvados. Duplo ugh.”
A conclusão é de que o machismo nesse roteiro é palpável, e vai desde o roubo de protagonismo pelo Steve até a objetificação das personagens femininas, reduzidas aos seus corpos e aparência física.
Dizer que ela é linda é quase não fazer sentido. Ela é elemental, tão natural e selvagem como a flora luminosa nos arredores. Seu cabelo escuro cascateia sobre seus ombros em arcos suaves e cachos. Seu corpo é curvilíneo, mas tenso como um arco esticado – Argh.
Uma amiga de Diana – mais estudante do que atleta, e muito adorável – corre graciosamente para o seu lado. – Argh.
Hipólita é uma rainha por inteiro: nobre, linda, compassiva. Ela é de meia idade, mas ainda no seu auge. – ARGH.
Então ela move sua perna para trás e vira, fluidamente, uma curva ondulando seu corpo conforme ela se dobra em uma dança que é sensual, etérea e louca de sexy. ALGUÉM ME MATA.
Mas não, não precisa me matar, porque felizmente esse roteiro foi jogado no lixo para dar lugar para o belo trabalho do Allan Heinberg e da Patty Jenkins que pudemos ver no cinema.
Vou só colocar isso aqui pra tentar tirar a imagem da dança sedutora da minha cabeça e me acalmar.
Mesmo assim, o fato de que esse roteiro tenha algum dia sido escrito e considerado – e escrito por um gigante da indústria ainda por cima, responsável por nada menos que Buffy e Toy Story, e inclusive alguém cheio de boas intenções que realmente já fez muitas coisas boas para mulheres – é muito assustador. E me fez lembrar de outros trechos de roteiro que viralizaram há um tempo atrás.
Em 2016, o produtor de cinema Ross Putman resolveu criar o perfil @femscriptintros no Twitter para registrar e mostrar para o mundo as introduções de personagens femininas misóginas e machistas que ele encontrava nos trabalhos que lia. De acordo com ele, apesar de existir sim descrições e introduções normais e saudáveis de personagens femininas em roteiros, existe um padrão machista que impregna a maioria deles e trata a idade e aparência física das personagens como uma traço essencial para a história. Substituindo o nome das personagens pelo genérico JANE (tanto para reforçar o caráter unidimensional de todas elas, como para preservar a identidade dos roteiristas), Putman nos apresenta algumas pérolas resultantes:
Na frente dele, sua esposa, JANE. Também 40, ainda um estouro. A suave luz de velas faz sua beleza brilhar.
JANE está espancada, machucada mas ainda resiliente e linda.
JANE (30) – Linda, mas irada.
JANE (35) deitada na cama deles nua e linda e adormecida.
Linda de morrer, JANE (40) tem a aparência de alguém cuja confiança foi abalada. Ela é uma força sexual crua, impedida.
Ele passa por JANE, vizinha ardente e vulgar. Ela lança um olhar de ‘me foda’.
JANE, 30, uma beleza morena natural, ajusta as alças de um vestido preto elegante que abraça suas curvas perfeitas.
Atrás de uma porta de chuveiro embaçada está a indistinta mas sexy silhueta de JANE tomando banho.
Sua esposa JANE está fazendo o jantar e assistindo a CNN em uma pequena TV. Ela já foi bonita como uma modelo uma vez, mas viver uma vida real cobrou o seu preço.
Uma mulher maravilhosa, JANE, 23, está um pouco bêbada, dançando nua na sua grande cama, tão adorável como sexy. *PONTO EXTRA POR SER A PRIMEIRA LINHA.
Eu sei, você não sabe se ri ou se chora né? Espera aí pra decidir porque tem mais. Além da iniciativa do Putman, diversas profissionais mulheres já denunciaram o machismo que rola não só nos roteiros, como nas chamadas de atrizes para testes de elenco. Também em 2016, a roteirista Laura Bray e as atrizes Jenna Ciralli e Julie Asriyan se uniram para lançar o projeto Casting Call, The Project, em que falam da forma machista que os papéis para mulheres são anunciados em testes de elenco, incluindo um vídeo em que atrizes leem em voz alta as descrições de papéis femininos nas chamadas para os testes.
Mulheres devem ter entre 18-25. Homens podem ser bem mais velhos.
O projeto é inspirado no Tumblr Casting Call Woe, que reúne essas descrições e nos faz perder ainda mais a fé na humanidade. Alguns exemplos primorosos:
“Modelo de biquíni bem-versada necessária para entrevistar políticos locais.”
“Elenco necessário: 1) Homem 25-30 anos, branco. Stephen Lies. O ‘heroi’ do filme. Sua vida inteira vira de ponta cabeça quando sua família é assassinada. Ator deve ser um cara normal. Mediano, não pesado. 2) Mulher 18-24, qualquer etnia. Rainha morta. Uma vilã principal no filme e responsável pela morte da família do Stephen. Procuramos uma atriz sexy e ardente, magra, alta, mas não muito alta. 3) Mulher 18-24, qualquer etnia. Freira guerreira. Braço direito da Rainha Morta. De novo, atriz sexy e ardente necessária.”
“Procura-se uma garota para posar e se agachar sobre uma tigela de leite.”
O pior é que eu gostaria de pensar “tá, mas ninguém produz esses roteiros né” ou “ninguém realmente profissional escreve algo assim”, mas basta ligar uma televisão ou entrar em um cinema pra ver que sim, roteiros assim são escritos e produzidos, muito embora o do Whedon não tenha sido. E isso é resultado direto da falta de oportunidade que mulheres têm para trabalhar por trás das câmeras. É como Ross Putman bem disse em entrevista ao HuffPost na época:
“No fim, se resume a isso: se tivéssemos uma base mais forte de mulheres por trás das câmeras, esse tipo de coisa não passaria. Mas se você sente que ‘Oh, estou mandando esse roteiro para outro cara, e um cara vai ser o diretor, e outro cara vai ser o roteirista, e um cara vai ser o produtor, e um cara vai ser o cinematógrafo – e as únicas mulheres envolvidas não serão importantes – então esse tipo de coisa continua a se proliferar”.
Já falamos sobre isso mais vezes do que consigo lembrar, mas aqui vai de novo. Mulheres escrevendo e fazendo filmes: isso importa.
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