O Princípio da Liberdade de Ser
Como a sociedade trata como questão de escolha uma questão de ser.
Imagine você acordar no corpo de outra pessoa. Ter sua alma trocada, por acaso, e ser posto dentro de uma pessoa completamente diferente, e ter que viver nesta pele até que, finalmente, você arranje um jeito de se libertar.
Seria uma ideia interessante para uma história, não? Talvez este primeiro parágrafo fosse o começo de sinopse de um livro ou de um filme. Um exemplo seria o nacional Se Eu Fosse Você, onde um casal troca de corpos. Mas não neste texto: a história aqui é realidade, obra escrita pela vida mesmo.
Talvez você esteja se perguntando onde eu quero chegar, e eu te respondo: quero chegar no reconhecimento da existência de pessoas trans na nossa sociedade. E de fato, essas pessoas não acordaram no corpo errado: Elas nasceram no corpo errado. São prisioneiras em corpos que não parecem lhes pertencer, e as celas desta prisão são trancadas com uma chave fortíssima que precisamos jogar fora: a transfobia.
Este infográfico é bem didático para começar a entender a complexidade das questões de gênero. (fonte: EBC)
No sucesso Se Eu Fosse Você, Claudio (Tony Ramos) e Helena (Gloria Pires) são casados e, por acidente, acabam trocando de corpos. É a partir deste momento que o filme se desenrola: temos que ver cada um vivendo o cotidiano do outro – literalmente, na pele do outro. Presos em um corpo do sexo oposto, eles vivem situações que divertem o telespectador, porque sabemos que no final eles encontrarão uma solução.
Mas talvez não achássemos graça se nós vivêssemos esta situação diariamente, sem a certeza de que as coisas se resolveriam. Porque ser trans é um tabu numa sociedade tão moderna e tão dogmática. Uma sociedade que insiste em não reconhecer a existência de algo que é mais do que comprovado psicologicamente. E o procedimento cirúrgico e troca de nomes é um processo fundamental para ajudar estas pessoas a assumirem um traço de sua personalidade, direito que todos nós temos.
Porém, é cruel como decidimos lidar com este suposto “incômodo” que é a existência de pessoas trans. Resolvemos ignorá-las, desacreditá-las. Como muitos de nós ainda estamos presos à caverna e não queremos sair, escolhemos não lidar com a transexualidade: fingimos que ela não existe, e assim assinamos a sentença e condenamos muitas destas pessoas às mais diversas violências. Se elas existem, pensamos, que sejam invisíveis.
Quando a trans Viviany Beleboni desfilou crucificada na parada gay de 2015, ela o fez para chamar a atenção das pessoas para o sofrimento dos LGBTs. E não sem motivo. Segundo dados da organização Transgender Europe, o Brasil é lider no ranking de assassinatos de transexuais. O Antra nos mostra que 90% das meninas trans são empurradas para a prostituição. Exemplo disto foi o caso de Laura Vermont, que foi espancada por cinco rapazes e baleada por dois policiais.
Se recusar a reconhecer as pessoas porque sua condição biológica não condiz com a psicológica, e criar projetos de lei que tentam inibir o uso do nome social é apenas algumas das coisas que acontecem neste país ‘democrático’ e campeão em transfobia. Há quem diga que isto é uma imposição da natureza e não da sociedade. Mas não somos nós a geração que valoriza a mente sobre os corpos? Se a natureza colocou uma mentalidade de um gênero em uma pessoa de outro, quem melhor para se definir do que o dono desta personalidade sobre a qual não temos direito algum sobre?
Discutir é preciso, mas discutir sobre transexualidade não envolve questioná-la. Se assumir trans não é escolher ser trans, é apenas aceitar e construir sua identidade.
Lide com isso.
Não reconhecer a existência de alguém é uma das piores formas de violência, porque é ela que justifica todas as outras. A ignorância e a transfobia comprometem os direitos e a representatividade trans no Brasil, e pior ainda: comprometem a vida deles também. Somos líderes em violência contra pessoas trans – somos líderes em mortes de pessoas trans. É isso o que fazemos quando nos recusamos a lidar com a realidade: deixamos de valorizar a vida humana. É conveniente exterminar o que não se quer que exista.
O relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil, publicado em 2012, possui uma fala marcante: “A invisibilização e o desconhecimento das transexuais espelha-se também na subnotificação nos meios midiáticos, onde não se encontraram notícias relacionadas a essa parcela da população”. É algo a ser questionado: Como pode haver tantas pessoas trans e mesmo assim não a encontrarmos em nosso cotidiano? Como pode haver tantos casos de violência e mesmo assim não sabermos? Quanto mais nos questionamos mais entendemos como essas pessoas sofrem com a violência praticada por uma sociedade inteira, que a cada ato – ou ausência – se mostra não apenas ignorante, mas também desumana.
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