Personagens Empoderadas e…Misóginas? Uma Reflexão sobre Misoginia Internalizada na Cultura Pop

Em uma sociedade misógina, muitas das personagens favoritas do cinema e da televisão são mulheres que odeiam mulheres.

Foto da personagem Robin Scherbatsky, da série How I Met Your Mother

De acordo com a maioria dos dicionários, misoginia é o sentimento de aversão, desconfiança, ódio ou desprezo por mulheres. É, portanto, uma importante base para o exercício do machismo e da opressão feminina, e pode se manifestar de diversas formas – desde piadas aparentemente inofensivas, até exclusão social, discriminação, objetificação sexual, controle e violência contra as mulheres.

Pela definição da palavra, seria de se esperar que misoginia fosse um sentimento compartilhado somente por homens, certo? Afinal, por que mulheres odiariam e boicotariam a si mesmas?

Na verdade, todas sabemos que isso acontece. E muito.

Misoginia internalizada é a internalização, prática e reforço de crenças misóginas e machistas por mulheres contra si mesmas e outras. Ela acontece porque somos criadas para acreditar que mulheres são inferiores aos homens, com uma existência subordinada à deles.

Então, por exemplo, se você é mulher e automaticamente dá mais moral para um profissional homem do que a uma mulher, você tem misoginia internalizada.

Se você, digamos, tem orgulho de ser uma mulher “sem frescuras”, “diferente das outras garotas”, “mais macho que muito homem”, então surpresa: misoginia internalizada.

Se você olha com maus olhos a coleguinha que tem uma vida sexual bastante ativa ou justifica assédios e estupros pela roupa ou comportamento da vítima, lamento, mas: misoginia internalizada.

Se você menospreza atividades tradicionalmente femininas enquanto glorifica as tradicionalmente masculinas: sim, misoginia internalizada.

Se você pensa que mulheres são estúpidas, fúteis e interesseiras no geral, mas que você é a grande exceção, sejamos claras: misoginia internalizada.

Na verdade, sejamos mais claras ainda: todas nós somos acometidas por misoginia internalizada em alguma medida.

“Ah, mas ninguém nunca me disse que meninos são melhores que meninas ou que sou menos importante que eles!” – alguém aí pode estar dizendo.

Pode ser que ninguém tenha te dito isso…diretamente. Mas indiretamente somos alimentadas com essa mensagem o tempo todo. Nossa criação e socialização são um lembrete constante do que a sociedade espera que sejamos no futuro: mães, esposas, objetos e, claro, rivais umas das outras. Lembrando que o problema não está em ser mãe, esposa ou dona de casa, mas sim em nos limitarem ao doméstico e nos manterem como tuteladas e coadjuvantes na vida de homens. Percebe a diferença?

Obviamente, a mídia é um instrumento poderoso nesse sentido, com uma capacidade ímpar de nos fazer internalizar todo tipo de mensagem. Como a sociedade em que vivemos é misógina, boa parte de sua mídia e das mensagens que ela reforça também são, mesmo que não percebamos isso logo de cara. De fato, a internalização da mensagem é tão efetiva justamente porque é subliminar. Absorvemos tudo, mesmo o que está nas entrelinhas.

Montagem de posteres de filmes objetificando mulheres. Embora muito esteja escancarado.

 

Nos desenhos que assistimos, por exemplo, a maioria dos heróis e protagonistas são masculinos. Nos filmes e séries também, e é difícil vermos personagens femininas conversando sobre qualquer coisa que não seja homem ou futilidades. Aliás, se somos as protagonistas, nossas trajetórias e objetivos são frequentemente associados aos deles. Já a publicidade traz o seu próprio show de horrores, com mulheres repetidamente retratadas como objetos sexuais.

Não é à toa, portanto, que crescemos internalizando a mensagem de que mulheres são eternas coadjuvantes na vida de homens, com importância e valor atrelados à existência e necessidades deles. A arte imita a vida, e vice-versa.

Infográfico com informações sobre a representação feminina em filmes, mostrando que a proporção é de uma personagem feminina a cada dois e meio masculinos, que as falas são apenas 30% femininas e que um terço das personagens femininas são mostradas de forma provocativa ou seminuas.

 

Com isso, as mulheres estão sempre travando uma batalha constante e incrivelmente contraditória dentro de si. Como bem explicou Glainá Boucinha no seu icônico texto De Sonsa a Sansa: Como Fomos Criadas para Odiar Sansa Stark:

“Ao mesmo tempo que somos criadas para obedecer a essa cartilha pronta sobre o que é ser mulher, as mesmas características que nos impõem são desvalorizadas pela sociedade. Nos dizem que precisamos ser delicadas e belas, mas tratam mulheres delicadas como frágeis e incapazes, e mulheres bonitas como fúteis e burras. Ao mesmo tempo que nos exigem habilidades na cozinha, na costura e em atividades semelhantes, nos resumem a apenas isso, fazendo com que acreditemos que não podemos ser tão brilhantes em outras áreas. Ao mesmo tempo que nos impõem a pureza e a busca pelo casamento com um homem de status e dinheiro, nos tratam e categorizam como interesseiras ou preguiçosas. A verdade é que as características “femininas” são e sempre foram DESVALORIZADAS e LIMITADAS. Ser feminina é obrigatório e ser subestimada por isso vem no pacote.”

Disso decorrem muitos dos transtornos psicológicos que enfrentamos. O sentimento de culpa é uma constante, independente da circunstância. Sofremos de baixa autoestima, depressão, distúrbios alimentares. E tudo de ruim que jogam para cima de nós, jogamos em cima de outras mulheres. Não é maluco isso?

Claro que isso varia de mulher para mulher. Todas são afetadas, mas há diferenças no quanto cada uma absorve e age em relação a isso tudo. Vemos isso na vida real e também na ficção, embora muitas das personagens gravemente acometidas por misoginia internalizada sejam apresentadas como Mulheres Empoderadas™. Aliás, para ver como a mídia é misógina, basta reparar como muitas dessas personagens “fodásticas” favoritas do cinema e da televisão são mulheres que odeiam mulheres.

Arya Stark dizendo "A maioria das garotas são idiotas"“A maioria das garotas são idiotas”.

 

Arya Stark, da série Game of Thrones, logo vem à cabeça. Além da célebre frase dita acima (uma das favoritas dos fãs), a personagem deixa claro que menospreza tudo o que é tradicionalmente feminino. Na sétima temporada, ela chega a ridicularizar todas as características femininas da irmã, de sua habilidade com bordados até a perfeita letra cursiva.

Seu machismo também é apresentado sob formato benevolente quando, também na sétima temporada, ela poupa as mulheres Frey da chacina que promove no primeiro episódio. Arya desconsidera tanto as mulheres que não pensa que algumas ali poderiam ter tido alguma atuação no Casamento Vermelho, ou mesmo que poderiam buscar vingança pela família assassinada. O que é bizarro, já que ela própria é uma garota que teve a família assassinada e agora busca vingança.

Arya Stark sorrindo cretinamente na sétima temporada de Game of ThronesUma irritação: esse sorrisinho cretino e incoerente.

 

Vale notar que a série fez uma leitura totalmente equivocada da personagem original dos livros. Neles, Arya é uma garota que sofre muito por não se encaixar nos ideais femininos da sociedade em que vive e se afasta deles como uma forma de autoproteção. Toda garota que não consegue ser tão “feminina” quanto se espera que sejamos sabe o quanto isso dói e como isso pode nos levar a praticar misoginia contra outras mulheres, embora a misoginia internalizada de Arya nos livros seja bem mais atenuada do que na série. Seus maiores conflitos acontecem dentro si, e muitos deles tem a ver com a ideia que ela faz de feminilidade e as contradições de suas próprias ações, sentimentos e vulnerabilidades. A questão principal no arco de Arya é a da identidade, mas a série reduziu a personagem a uma ninja sedenta de vingança.

O curioso é que a personagem que realmente tem misoginia internalizada escorrendo pelas orelhas nos livros acabou sendo bastante atenuada na série.

Cersei Lannister é um terror em As Crônicas de Gelo e Fogo. Gêmea de Jaime e criada pelo pai, a personagem aprendeu desde pequena como mulheres são inferiorizadas e subestimadas e internalizou a ideia de que elas são inferiores e fracas – sendo ela própria a exceção. Por isso, o seu grande ressentimento não é nem a forma como as mulheres são tratadas, mas sim o fato de ela própria ter nascido mulher.

“Se os deuses tivessem lhe dado a força que deram a Jaime e àquele imbecil fanfarrão de Robert, ela poderia fugir. Oh, por uma espada e pela habilidade de empunhá-la. Ela tinha o coração de um guerreiro, mas os deuses, em sua malícia cega, haviam lhe dado o corpo fraco de uma mulher.”

Cersei é extremamente cruel com outras mulheres e desconfia de todas elas. Usa-as quando precisa e as descarta – muitas vezes para um destino de morte e tortura – sem um pingo de dor na consciência. No entanto, ao invés de trabalhar a seu favor, sua misoginia trabalha contra ela e a faz decair em uma espiral de caos, destruição e péssimas decisões realmente notável (uma crítica que, acredito eu, é deliberada por parte do autor).

Talvez tal trajetória não tenha agradado os roteiristas da série, dado que eles parecem acreditar que desprezar mulheres torna as personagens femininas Empoderadas™. O que sabemos é que a Cersei da série foi bastante atenuada, com sua identidade amplamente definida por sua maternidade. Parece que a Cersei dos livros confrontou a visão de mundo dos roteiristas, que ao invés de se refestelar na complexidade da personagem, preferiram planificá-la para deixá-la mais palatável.

Game of Thrones é um prato cheio, mas há muitas outras personagens femininas misóginas na cultura pop. Robin Scherbatsky, de How I Met Your Mother, é uma clássica Cool Girl, que em determinado momento percebe que odeia outras mulheres. Criada por um pai profundamente frustrado por ter tido uma filha ao invés de um filho, é fácil imaginar que a personagem internalizou rapidamente o desprezo dele por mulheres. Ao mesmo tempo, ela não só foi uma mulher criada em uma sociedade patriarcal, como foi também uma estrela adolescente que provavelmente teve que respeitar todas as expectativas de gênero impostas a meninas sob escrutínio do público.

Saudades Robin Sparkles.

 

Talvez isso explique por que Robin tem momentos tão contraditórios ao longo das temporadas. É uma pena que a série em si não tenha se aprofundado nessas questões, preferindo emplacar a personagem no longo rol de personagens femininas que são admiradas principalmente por não serem como “as outras garotas”.

Por último, eu queria falar sobre uma outra representação de machismo e misoginia internalizados que, para variar, foi muito bem feito na televisão.

Cena da série The Handmaid's Tale em que Tia Lydia ataca June com um bastão de choque.

Ano passado, The Handmaid’s Tale nos levou a uma realidade distópica em que as mulheres perderam todos os seus direitos. Curiosamente, no entanto, alguns dos personagens mais aterrorizantes da produção são justamente mulheres. As Tias controlam e doutrinam as jovens na base da humilhação e da violência; as Esposas e as Marthas desprezam as Aias; e mesmo as Aias desconfiam e por vezes rivalizam umas com as outras.

Entretanto, todas estão subordinadas ao poder masculino, e a série é brilhante em mostrar como a manutenção da rivalidade feminina beneficia imensamente o patriarcado. Desunidas, nos tornamos mais fracas e vulneráveis, afinal.

Margaret Atwood, autora do livro no qual a série é baseada, já falou sobre essa questão e sobre como essa rivalidade pautada em misoginia pode ser exercida como uma disputa por poder e até proteção. Principalmente em sociedades em que mulheres morrem diariamente simplesmente por serem mulheres.

“Sim, mulheres vão se voltar contra outras mulheres. Sim, elas vão acusar outras para se manter fora da mira: nós vemos isso muito publicamente na era das redes sociais (…). Sim, elas aceitarão contentes posições de poder sobre outras mulheres, até – e, possivelmente, especialmente – em sistemas em que as mulheres como um todo tem pouco poder: todo poder é relativo e em tempos duros, qualquer quantidade dele é visto como melhor do que nada. Algumas das Tias são devotas verdadeiras, e acham que estão fazendo um favor às aias: pelo menos elas não serão enviadas para limpar lixo tóxico, e pelo menos nesse bravo novo mundo elas não serão estupradas, não de verdade, não por estranhos. Algumas das Tias são sádicas. Algumas são oportunistas. E elas são adeptas de pegar alguns alvos declarados do feminismo de 1984 – como campanhas anti-pornografia e maior segurança contra violência sexual – e usá-los em seu favor. Como eu digo: vida real.”  

Infelizmente, tal cuidado em representar a complexidade da situação das mulheres e das relações entre elas ainda é uma raridade na mídia e na cultura pop. Como vimos, ainda prevalece o estereótipo da mulher empoderada misógina e isolada em si mesma. Que tenhamos o olhar aguçado e o senso crítico para rejeitar tais representações. Pois na realidade, quanto mais unidas, mais fortes nos tornamos.


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