Mc Melody Está Realmente a Salvo da Adultização/Sexualização?

Breves digressões sobre como o machismo molda injustamente o corpo de meninas e de adolescentes.

É madrugada. Em um palco, cercada de luzes, uma mulher de baixa estatura e com roupas curtas canta “Vai, rebola” para a multidão. Seus cabelos são longos e descoloridos, e sua maquiagem (cílios postiços, sombra escura e batom vermelho) lembra muito das makes “reboco” (camadas e camadas de maquiagem) ensinadas por youtubers famosas.

A mesma mulher tem um perfil no Instagram, onde posta diariamente poses sensuais para seus quase 4 milhões de seguidores, ostentando suas curvas e seios, em meio a olhares sedutores. Nos comentários, milhares de pessoas (especialmente homens) não só elogiam a beleza da mulher, como fazem propostas com conotação sexual.

A vida dessa mulher seria muito semelhante à de diversas outras cantoras do pop, as quais também são submetidas à objetificação pela indústria machista (um conjunto apetitoso de peitos e bundas a serviço do olhar masculino, como bem mostrou este artigo), se não fosse um pequeno detalhe: ela ainda não é uma mulher. Mc Melody, como é conhecida a criança cuja trajetória diária foi narrada nos parágrafos anteriores, tinha tão somente 11 anos de idade em 2018, quando as mídias sociais começaram a questionar se os “elogios” que a criança recebia online não eram, na verdade, pedofilia.

Alguns comentários para uma foto postada pela criança – em padrões claramente objetificados – em 2018.

Comentários pedófilos após a postagem da foto que consta no topo da página (onde a menina aparece vestida de diabinha).

 

Em dezembro de 2018, a youtuber britânica Glare, do canal “Ready to Glare”, se mostrou espantada ao analisar o perfil do Instagram de Melody e descobrir que ela era apenas uma criança de 11 anos. Com o vídeo de título “Melody precisa de ajuda”, ela afirmou que a menina provavelmente estava sendo compelida pelos responsáveis a se portar de forma sexualizada, para ganhar maior número de seguidores e aumentar seu capital.

Após a grande repercussão do vídeo, diversas medidas foram tomadas para preservar a criança. Seu pai (que é também seu empresário) foi chamado a fazer um acordo junto ao Ministério Público, comprometendo-se a proibir que Melody se portasse (nas músicas e no visual) de forma sexualizada. Ele também fez um acordo com um dos principais patrocinadores da criança no Youtube, Felipe Neto, fazendo com que a menina passe a ter acompanhamento psicológico.

A reação de grande parte das pessoas diante do desfecho da vida pública de Melody é um suspiro de alívio: “Ufa! Ainda bem! Melody foi salva”. Só que as coisas não são bem assim. Apesar das medidas tomadas para que a cantora mirim tenha uma infância saudável, infelizmente nada a priva de viver em uma sociedade onde a cultura de adultização/sexualização de adolescentes está na ordem do dia.

Melody está longe de ter sido um caso isolado de sexualização precoce. Seu caso ganhou notoriedade nas redes sociais sobretudo porque a menina possui visibilidade nacional – é famosa como cantora, já tendo aparecido em diversos programas de TV e canais famosos do Youtube. Porém…quando paramos para pensar nas milhares de garotas anônimas que todos os dias são objetificadas, percebemos que passam pela mesma opressão vivenciada por Melody. A diferença é que infelizmente não podem contar com o aparato que a estrela mirim contou.

Enquanto Melody teve uma míngua de seguidores conscientes, os quais tomaram sua sexualização precoce como algo negativo e o expuseram, fazendo com que patrocinadores da cantora, bem como o Ministério Público tomassem as medidas cabíveis, as garotas anônimas forçadas pela mídia à adultização tem como principais guardiões unicamente seus pais. Pessoas estas que, em sua grande maioria, costumam ver com naturalidade o fato de as filhas que até ontem estavam brincando no quintal, estarem hoje bombando no Instagram com fotos sensuais (o pai de Melody inclusive se portou de tal forma, se pronunciando por diversas vezes no sentido de que “não via nada de mal” no comportamento sexualizado exposto pela filha).

Essa naturalização da objetificação é iniciada ainda na infância, quando as pressões midiáticas são projetadas na menina de forma discursiva: ela deve ser “feminina” e a construção de seu corpo deve ser algo agradável aos olhos masculinos. Ela deve aprender que seu corpo não pode ser moldado, mostrado e utilizado a seu bel-prazer. Dentro do patriarcado, seu corpo deve servir inteiramente como um objeto sexual.

Algumas amostras de como a mídia endossa a manutenção do padrão sexualizado de meninas:

– há grande percentual de roupas infantis femininas nas principais lojas de departamentos que possuem características sexualizadas;

– mundialmente são vendidas bonecas que, embora representem crianças ou adolescentes, passam a imagem de sexualização adulta;

– concursos de beleza infantis, em que, para se destacarem, garotas usam maquiagem pesada, roupas curtas, e se submetem a procedimentos estéticos adultos;

Coleção de bonecas Bratz, vendidas mundialmente ao público infantil. As bonecas representam amigas adolescentes e são claramente sexualizadas: lábios carnudos, maquiagem completa, salto alto, cabelos longos e roupas coladas.

 

Matéria da revista americana “People” sobre o programa televisivo americano “Toddlers & Tiaras”, retratando a transformação de uma garota em miss mirim. Note que para que ela ganhe o concurso de miss infantil é necessário que ela deixe para trás toda a beleza propriamente de criança. O vestido curto, a maquiagem carregada e o penteado elaborado dão a conotação de adulta. Uma mini adulta bastante sexualizada.

Desse modo, com o despertar da puberdade (a qual dá as primeiras mostras aos 8 anos de idade) e a obediência rigorosa aos padrões  impostos, a menina deixará de lado sua condição infantil e se transformará em uma “novinha”. O termo “novinha”, aliás, representa uma pré-adolescente com o corpo sexualizado, e que possui uma vida sexual ativa. É o substitutivo moderno para os substantivos igualmente objetificadores “ninfeta” e “Lolita”.

De acordo com a antropologia, o apelo sexual à pré-adolescentes e adolescentes está relacionado com a visão arcaica e machista mantida por séculos, de que a mulher ideal é aquela com o corpo apto para ter filhos. Isso ocorria porque, em geral, nos primórdios da existência humana, a expectativa de vida não era longa, e uma adolescente logo no início da puberdade teria condições de ter mais filhos se iniciasse sua vida sexual mais cedo. Saliente-se que, naquele período, “aumentar” a família era algo importante, já que as primeiras sociedades se desenvolveram a partir da formação e trabalho dos clãs.

Outro costume arcaico e patriarcal era que homens mais velhos se relacionassem com adolescentes. A explicação para isso está não só na baixa expectativa de vida e a constante necessidade de se aumentar um grupo familiar, como visto anteriormente; mas também devido ao fato de que a idade era (e é) associada à sabedoria. Desse modo, um homem mais velho sempre seria visto como o mais esperto, o mais sábio – enquanto a mulher, por sua vez, seria considerada como intelectualmente medíocre.

Em ambos os hábitos, pode-se verificar o processo de objetificação do corpo feminino. O que se buscava, de modo geral, com a adultização de adolescentes, era o estabelecimento de posições de poder: o patriarcado ditava as regras da sociedade e a mulher era obrigada a segui-las. Não importava o que pensavam a respeito das situações em que eram obrigatoriamente impostas. Afinal, a noção geral era de que elas sequer pensavam.

A herança desse hábito pode ser observada ao longo dos séculos. Basta nos lembrarmos das histórias de nossas ancestrais, as quais, em grande parte das vezes se casaram ainda na adolescência, e com homens mais velhos. Naquele período a visão de que o espaço da mulher estava limitado à maternidade e à vida doméstica era muito mais sedimentada do que nos dias de hoje. Casar-se cedo e ter filhos o mais breve possível era uma forma de significância à limitada vida feminina. Era adequar-se ao espaço imposto e ser obediente às regras do patriarcado.

Infelizmente, mesmo com o correr dos anos e os avanços obtidos no reconhecimento de direitos às mulheres, o seu corpo ainda não lhe pertence. As pré-adolescentes, conhecidas como as “novinhas”, sofrem constantemente pressões por parte da mídia para seguirem sendo objetificadas. Embora não apareçam de forma tão explícita, os mesmos mecanismos patriarcais de dominação feminina que perduram há tantos séculos, permanecem na atualidade por meio de apelos midiáticos travestidos de normalidade.

Exemplos não faltam em relação à como isso ocorre

– A “novinha” é enaltecida em músicas populares como sinônimo de uma mini-mulher, que é elogiada por seu corpo objetificado e por posições de dança sensuais, sendo considerada como uma “tentação” e chamada de “gostosa”;

– É também uma das palavras mais pesquisadas em sites de vídeos pornográficos disponíveis no Brasil, juntamente com as palavras “menina”, “Lolita”, “garota” e “ninfeta”.

Britney Spears no videoclipe da música “Baby one more time”, enquanto dança de forma sensual. A cantora e as dançarinas de fundo atuam como se fossem estudantes de escola.

 

Em um hit mais recente, também se pode notar a postura sensual e a atuação de estudante da cantora e das figurantes,  no videoclipe de “Fancy”, de Iggy Azalea.

 

– Ainda a título de exemplo, vale mencionar o número considerável de filmes que apresentam as pré-adolescentes e adolescentes de forma sexualizada. Especialmente nos filmes com temática colegial, é comum que a sexualização precoce seja vista, inclusive, como sinônimo de popularidade, de elevação do status junto aos demais colegas.

Quem não se lembra de “Jingle Bell Rocks” e sua famosa coreografia, em “Meninas Malvadas”? No filme, as atrizes que interpretavam Regina, Cady, Karen e Gretchen interpretam adolescentes de 16 anos. A coreografia da cena, no entanto, é extremamente sensual.

 

E o que dizer das personagens de “Pretty Little Liars”? As personagens acima estão no Ensino Médio – são adolescentes –  e nem preciso dizer o quanto são sexualizadas.

 

Ao observar as imagens acima, podemos ter uma ideia clara acerca do que a sexualização de adolescentes representa: poder.  E isso se torna ainda mais claro quando se percebe que em geral, todas as adolescentes e todas as mulheres que são consideradas “bem-sucedidas”, seguem os padrões de sexualização expostos anteriormente (por motivos óbvios, é bem mais fácil para o patriarcado aceitar tais mulheres). Isso dá às adolescentes a noção de que só alcançarão o sucesso se – assim como as “divas” que admiram na tv e na internet – se submeterem ao padrões estéticos objetificadores definidos pelo patriarcado.

Um exemplo, nesse sentido, é a socialite e empresária americana Kylie Jenner, que aos 21 anos foi considerada a mais jovem bilionária do mundo. Kylie já é conhecida mundialmente há muito tempo, por fazer parte da famosa família Kardashian, mas começou a ganhar mais notoriedade somente quando, ainda na adolescência, começou a postar fotos no Instagram. Nas fotos, Kylie passou a aparecer totalmente diferente do que parecia quando ia às coletivas de imprensa com a família: aos 16 anos, a jovem já ostentava lábios carnudos, maquiagem carregada, e fazia poses sensuais. Hoje, ela ainda segue o mesmo padrão sensual de quando era adolescente, atraindo com isso cada vez mais likes, elogios e seguidores (fazendo dela, inclusive, a 7ª pessoa com maior número de seguidores no mundo).

O que a imensa visibilidade e sucesso de Kylie mostram às adolescentes? Que se quiserem uma posição similar, deverão seguir as regras do patriarcado. Afinal, ser vista meramente como pré-adolescente, ou adolescente é comum. Já ser vista como uma precoce exponente sexual é sinônimo de poder.

À esquerda, Kylie Jenner em 2011, com 14 anos; e na foto seguinte, no início de 2015, aos 17 anos – quando já havia se tornado uma estrela na internet e na televisão. Atualmente Kylie conta com quase 130 milhões de seguidores no Instagram, sendo a 4ª mulher no mundo com o maior número. Seu sucesso crescente é a inspiração de milhares de adolescentes que passaram a acreditar que para alcançarem uma posição de poder precisam ser sexy.

À esquerda, Kylie Jenner em 2011, com 14 anos; e na foto seguinte, no início de 2015, aos 17 anos – quando já havia se tornado uma estrela na internet e na televisão. Atualmente Kylie conta com quase 130 milhões de seguidores no Instagram, sendo a 4ª mulher no mundo com o maior número. Seu sucesso crescente é a inspiração de milhares de adolescentes que passaram a copiar esse modelo em busca de sucesso.

 

Diante de tudo isso, retoma-se à pergunta apresentada no título: Mc Melody está realmente a salvo da adultização/sexualização? E a resposta é não. Nem Mc Melody, nem nenhuma das pré-adolescentes e adolescentes estão livres da pressão da sociedade para que sejam mais e mais objetificadas – e consequentemente, pensem que estão atingindo mais sucesso, quando na verdade esse poder é ilusório.  

Sem perceberem, essas garotas repetem os mesmos modelos de subserviência ao patriarcado, aqueles criados como uma definição de poder masculino e sem nenhum espaço para a voz da mulher. Sem perceberem, se expõe diariamente em uma vitrine – tal qual uma costeleta pendurada em um açougue. Assim, toda dignidade feminina é esmagada no bel-prazer deles. A voz ativa é a deles. Os espectadores principais são eles. O corpo feminino mais valorizado é o corpo jovem. Quanto mais jovem, mais “usado” pode ser. Mais objetificado pode ser. E, de seres humanos, somos reduzidas a corpos. De corpos, a objetos.

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