Sobre ‘Broderagem’ (ou Por que Homens Não Confrontam seus Amigos Abusadores?)
Uma investigação sobre o silêncio de homens e o que noções tóxicas de masculinidade tem a ver com isso.
Há algo de podre no reino de Hollywood. Parece que a cada ano algum novo escândalo sacode os alicerces da indústria cinematográfica mais poderosa do mundo, a maioria deles relacionados a discriminação de gênero ou violência contra a mulher. No entanto, seja sobre abuso sexual, violência doméstica ou desigualdade salarial, é possível que o espectador desavisado se pergunte ocasionalmente: “e eu com isso?”.
Ou mesmo: “quem é esse cara esquisito que está inundando o meu feed e parece ser amigo de todas as celebridades?”
Bem, eu já disse isso antes e vou dizer novamente: Hollywood pode parecer distante em todos os sentidos, mas a realidade é que ela nos apresenta um microcosmo bem fidedigno no que diz respeito à discriminação de gênero e violência física e sexual – principalmente contra mulheres. Por isso, partir desses escândalos podemos discutir e entender como a violência em nossa própria realidade acontece e é naturalizada.
Pois bem, há muito a ser discutido sobre as dezenas de denúncias de abuso sexual contra mais de trinta homens influentes da indústria, desde o produtor magnata Harvey Weinstein, até outros produtores como Brett Ratner e John Lasseter; e atores, como Jeffrey Tambor (Transparent), Ed Westwick (Gossip Girl), o comediante Louis C.K. e Kevin Spacey (House of Cards). Mas o que me chamou muito a atenção foi o fato de que, pelo menos em relação a Harvey Weinstein (acusado por mais de 40 mulheres), muitas pessoas da indústria pareciam saber do seu histórico de abuso sexual contra mulheres.
De fato, a mídia americana se referiu frequentemente a Weinstein como o Maior Segredo Aberto de Hollywood. Tanto as mulheres (vítimas ou não), como os homens sabiam. Inevitavelmente, nos perguntamos: como é que isso ficou tanto tempo em segredo? Mais especificamente: por que os homens que sabiam nunca disseram ou fizeram nada para impedi-lo?
Quentin Tarantino é um entre muitos que admitiram que sabiam do comportamento criminoso de Weinstein.
Eu direciono a pergunta aos homens de propósito. Porque sabemos por que as mulheres permaneceram em silêncio. Como bem explicou nossa colaboradora Maria Eugênia, em outro texto aqui no site:
“Para qualquer mulher (ou qualquer pessoa que foi vítima de assédio ou abuso sexual), a denúncia é um processo extremamente doloroso. São poucos os incentivos, mas grandes as ameaças e os perigos, sem garantia de que o abusador realmente será punido. (…) Muitas mulheres têm medo de serem demitidas, de prejudicar suas carreiras, e justificaram seu silêncio dizendo que tinham muito a perder. Outras disseram que não tinham testemunhas e temiam retaliações, e se sentiam envergonhadas, culpadas e humilhadas. A violência sexual não tem nada a ver com sexo em si, tem a ver com poder, e como ele é exercido sobre a vítima. É sobre medo, intimidação e coerção.”
A probabilidade da vida de uma mulher ser arruinada após denunciar um homem por abuso sexual é altíssima. Por uma combinação de machismo e misoginia, denúncias femininas são historicamente desconsideradas, desacreditadas ou até mesmo ridicularizadas, e não raro elas são culpabilizadas pelo abuso que sofrem. Além disso, no caso de Weinstein havia um desequilíbrio de poder muito grande. É como disse a profissional Lauren O’Connor em uma carta aos executivos da Weinstein Company:
“Eu sou uma mulher de 28 anos tentando me sustentar e construir uma carreira. Harvey Weinstein tem 64 anos, é um homem famoso mundialmente e essa é a empresa dele. O equilíbrio de poder aqui é Eu: 0, Harvey Weinstein: 10”.
Mesmo assim, a maioria das pessoas espera que as mulheres – vítimas do abuso ou observadoras – sacrifiquem suas carreiras, sendo que temos toda uma cultura que nos mostra diariamente que mulheres raramente são ouvidas em casos assim. Por isso, a força da denúncia por parte das mulheres está nos números, muito embora nem isso seja garantido. Ainda há quem acredite na inocência de Bill Cosby, por exemplo, mesmo após 50 denúncias de estupro contra o ator. De acordo com a editora Jaya Saxena, neste artigo da Mic:
“É uma decisão terrível de ter que fazer: manter algo em segredo para se proteger e aqueles ao seu redor, ou denunciar e provavelmente sofrer mais abuso e nenhuma mudança real. Mas nessas situações, essa é única alternativa disponível para mulheres. Ou você mantém o segredo e alerta quem puder, ou revela o segredo e é culpada por outros por não tê-lo revelado mais cedo. É um ciclo vicioso.”
Mas homens não estão presos nas amarras da misoginia e do machismo. Eles têm alternativas e gozam do privilégio de serem ouvidos em casos de assédio e abuso sexual. Se alguém tem alguma dúvida sobre isso, basta lembrar o quão rápido a carreira de Kevin Spacey se desintegrou depois que homens o acusaram de abusá-los. Podemos pensar que é porque o caso dele envolveu o abuso de menores, mas oras, Roman Polanski drogou e estuprou uma garota de 13 anos e continua fazendo filmes.
A Sony está inclusive retirando o Kevin Spacey do filme Todo o Dinheiro do Mundo a um mês do seu lançamento, refilmando cenas inteiras para deletar o ator da produção.
Portanto, mesmo gozando de direitos negados a mulheres, muitos homens ficaram calados sobre Weinstein. Por quê? Quais são as amarras deles?
Bem, podemos pensar que também para eles o poder de Harvey Weinstein tenha tido um peso considerável. Certamente, o medo de perder o emprego ou ter a carreira arruinada teve também um papel no silêncio dos homens (dos que não são abusadores, isto é, porque sabemos que os que são silenciam para benefício próprio). Mas há algo mais por trás da cumplicidade masculina que protege abusadores, e esse algo mais tem muito a ver com própria definição de masculinidade.
Um outro artigo recente da Mic sobre o caso Weinstein trouxe alguns pontos interessantes sobre isso. Em primeiro lugar, temos a forma como meninas e mulheres são vistas na sociedade em relação a homens. De acordo com Andrew Smiler, psicólogo especializado em meninos, homens e masculinidade, meninos aprendem desde muito cedo a se ver como superiores a meninas. Essa noção se fortalece e ganha novas matizes conforme eles crescem, com todo um sistema cultural endossando isso ao objetificar meninas e mulheres e apresentá-las constantemente no papel de prêmios e troféus para homens.
Em filmes, sabemos, o herói sempre “ganha” a mocinha no final.
A mensagem que fica é que ser “pegador” ou mesmo sexualmente agressivo faz parte da experiência de ser homem, como parte fundamental de sua masculinidade. Por isso o assédio de homens contra mulheres é algo tão naturalizado. Quem nunca ouviu a trágica frase: “homem é assim mesmo”? Como a Maria Eugênia já disse:
“Infelizmente, vivemos em uma sociedade que permite – e ensina – que homens se comportem dessa maneira. Que aceita que isso é poder.”
Ao mesmo tempo, outra parte importante dessa masculinidade tóxica é o fato de não se poder falar sobre como as crenças, práticas e comportamentos associados à ela são nocivos e afetam negativamente as pessoas ao nosso redor – tanto mulheres, como homens. Afinal, vale lembrar que mulheres e homens vítimas de violência – seja ela física ou sexual – têm algo muito relevante em comum: na grande maioria dos casos, os seus agressores são homens.
Essa cultura do silêncio influencia tanto aqueles que endossam o comportamento abusivo de outros, como o dos que não endossam. Sim, em parte temos o endosso por parte de abusadores que protegem homens que também são abusadores. Mas por outro lado, temos homens que se sentem ofendidos ou incomodados com eles, e ainda assim não falam ou fazem nada, porque falar ou fazer nada é exatamente o que se espera deles, em termos de masculinidade. O Bro Code é exigido, esteja o homem de acordo ou não.
Portanto, um passo importantíssimo que homens aliados devem tomar é justamente desafiar essa lógica do silêncio. Embora isso possa parecer assustador, quanto mais homens falarem sobre e confrontarem comportamentos machistas e abusivos por parte de amigos, colegas, familiares, etc, mais aliados surgirão. De acordo com o professor de psicologia, Chris Kilmartin:
“Homens ofendidos com machismo frequentemente acham que são minoria, mas muitas vezes esse não é o caso (…). Quando você identifica homens aliados, aquele tipo de cumplicidade e conformidade de grupo cai muito, muito rápido – mesmo se você é minoria. É uma questão de liderança, de certa forma: quando o primeiro cara se posiciona, ele – e outros – percebem que há mais apoio na sala do que muito poderiam imaginar.”
É mais ou menos isso que o educador anti-sexista Jackson Katz argumenta. Educador, autor, cineasta e acadêmico, Katz é pioneiro na área de educação para a prevenção de violência de gênero e co-fundador do Mentors in Violence Prevention, uma organização que recruta homens na luta pelo fim da violência contra a mulher. Com mais de vinte anos de atuação, a organização se tornou referência na prevenção de violência sexual e doméstica nos EUA, atuando principalmente em universidades, organizações esportivas, escolas, centros comunitários e em todos os principais ramos do complexo militar americano.
E como Katz trabalha a prevenção de violência contra a mulher? Oras, ensinando homens aliados a se posicionarem contra o machismo e a misoginia de seus colegas. De acordo com ele:
“Bom, no que se refere aos homens e à cultura masculina, o objetivo é fazer com que os homens que não são agressores contestem os homens que são. E quando digo agressor, não me refiro apenas aos homens que batem em mulher. Não estamos apenas dizendo que um homem cujo amigo esteja agredindo sua namorada precisa impedir o cara no momento do ataque. Essa é uma forma ingênua de criar mudança social. É algo constante, estamos tentando fazer com que os homens impeçam uns aos outros. (…)
A abordagem do espectador é tentar fornecer às pessoas ferramentas para interromperem esse processo e para se manifestarem e criarem um clima e uma cultura de parceria, onde o comportamento abusivo seja visto como inaceitável, não apenas porque é ilegal, mas porque é errado e inaceitável na cultura da parceria. E se conseguirmos fazer com que os homens que agem de maneira sexista percam status, rapazes e meninos que agem de maneira sexista e vexatória contra meninas e mulheres, bem como contra outros meninos e homens, consequentemente, percam status por causa disso… adivinhem? Veremos uma queda radical da agressão. Porque o agressor típico não é doente e perturbado. É um cara normal em todos os aspectos.”
Já passou da hora de olhar mais a fundo para as noções tóxicas de masculinidade que são passadas de geração para geração e permitem que homens continuem a violentar e abusar de mulheres impunemente. É como Katz diz:
“Tem havido silêncio demais na cultura masculina a respeito dessa tragédia persistente, que é a violência dos homens contra mulheres e crianças, não? Tem havido silêncio demais.”
Sim. E esse silêncio precisa ser quebrado.
Leia também Harvey Weinstein – Abuso, Poder e Silenciamento.