Dois Livros com Personagens Bissexuais para Você se Apaixonar

Representatividade importa. No caso da comunidade bissexual, é de extrema importância lutar contra a invisibilidade e os estereótipos negativos atribuídos aos integrantes dela.

Há muito tempo, entre as leituras da faculdade ou do TCC, que eu não lia por lazer. Por isso, estabeleci recentemente uma meta como incentivo: ler todos os livros indicados nesta thread do twitter sobre livros com personagens bissexuais.

Assim, em vez de ter a minha alma sugada por horas na rolagem infinita de redes sociais ou maratonando pela décima vez algum seriado, decidi fazer um exercício mental e pensei: por que não ler neste tempo livre em vez disso?

O resultado foi surpreendente. Além de deixar o coração quentinho por me lembrar como ler pode ser instigante, também foi muito bom ver personagens bissexuais sendo representados de forma justa – principalmente não tendo sua sexualidade como única característica que os define.

Sempre dizemos: representatividade importa. No caso da comunidade bissexual, é de extrema importância lutar contra a invisibilidade e os estereótipos negativos atribuídos aos integrantes dela, como já falamos neste texto sobre a representação dos personagens bissexuais na mídia.

Vamos aos livros!

Minha versão de você

Escrito por Christina Lauren, “Minha versão de você” foi publicado no Brasil pela Hoo Editora e está disponível na Amazon. A obra conta a história do norte-americano Tanner Scott, um jovem bissexual que se apaixona pela primeira vez por outro rapaz.

Esta seria só mais uma paixão adolescente LGBT na sua antiga cidade na Califórnia, Palo Alto, na qual o adolescente era abertamente bissexual para seus amigos e familiares. Mas o cenário muda quando a mãe de Tanner, uma desenvolvedora de softwares (ponto para a representatividade de mulheres na tecnologia), recebe uma proposta de emprego irrecusável. Isso leva a família Scott a se mudar para Provo, uma cidade do interior do estado de Utah povoada por uma grande comunidade de mórmons.

Em Provo, o jovem passa a frequentar um colégio religioso e se vê obrigado a esconder sua sexualidade até mesmo de sua melhor amiga Autumm.

Um garoto bissexual em uma cidade de mórmons

Apenas com essa breve descrição nossa atenção já é fisgada: como é ser um jovem LGBT em uma cidade de mórmons? Esta é a questão que a autora responde com muito talento. Não foi por acaso que o livro foi tão bem recebido pela crítica.

“Sou apenas um garoto bissexual, meio-judeu, que está apaixonado por um garoto mórmon. Para mim, o futuro não é tão claro.” – Tanner

Primeiramente percebemos que a ambientação do livro foi fruto de um grande trabalho de pesquisa. Isso me agrada muito, pois umas das coisas que mais amo é essa experiência imersiva em outras realidades que a leitura proporciona.

Nos livros há o bônus de não estarmos limitados ao que vemos e ao que cabe no tempo de tela, como no audiovisual. Por isso, os fãs de adaptações literárias ficam por vezes desapontados com a condensação da história nas adaptações cinematográficas.

Assim, além da ambientação da cidade de Provo, há a descrição dos costumes e crenças dos mórmons, que foram escritos com extremo cuidado e respeito, sem cair no senso comum de Mocinho vs. Vilão, ou Bem vs. Mal.

Fanart: https://rivetedlit.com/2017/10/09/autoboyography-art-roundup-and-exclusive-excerpt/

O conflito inevitável: adolescentes se apaixonam

Esta imersão na cultura mórmon é fruto do conflito central da trama, apresentada logo no começo do livro. Nosso protagonista embarca em uma aventura romântica com grandes chances de sofrimento. Tanner se apaixona por um garoto mórmon – Sebantian.

“Somos ensinados a entregar a vida a Cristo e Ele vai nos mostrar o caminho. Mas, quando eu oro, o Senhor diz que sim. Ele me diz que sente orgulho de mim e que me ama. Quando beijo você, sinto que é certo, mesmo quando tudo o que leio diz o contrário” – Sebastian

Um bônus do livro é o amor pela escrita compartilhado pelos personagens do livro. Toda a trama amorosa acontece porque Autumm convence Tanner a entrar em uma disciplina na escola na qual ele deve entregar um livro como trabalho final. É nesta aula que ele conhece Sebastian. Este enredo literário inspira o título em inglês “Autoboyography”, algo como “Autobiografia de um garoto”.

Além do romance, o livro tem contribuições maravilhosas em questões sobre sexualidade, aceitação, expectativas familiares e religiosidade. A forma como é mostrada a descoberta da sexualidade de Tanner e os pensamentos que lhe ocorrem sobre é natural e verossímil. Isso se dá principalmente pela narração em primeira pessoa de Tanner – um personagem muito cativante.

“Não gosto de ser melodramático, mas a dor é melhor do que a culpa; é melhor do que o medo; é melhor do que o arrependimento; é melhor do que a solidão.” – Tanner

Apenas por estas características eu já indicaria o livro, mas a obra foi além do básico e trouxe uma representação livre de estereótipos, com um personagem com profundidade.

Mais do que poderíamos esperar

O livro aborda também a questão do reconhecimento de privilégios de diversos tipos, como, por exemplo, Tanner ter uma família que aceita sua sexualidade e o apoia abertamente, até mesmo usando camisetas e adesivos.

Outro ponto é  o protagonista reconhecer que é favorecido na escola por ser filho de um médico de renome da cidade, conseguindo facilmente coisas que sua amiga Autumm tem que se esforçar muito para fazer parte. Assim, com situações e diálogos muito bem colocados, a autora passa sua mensagem.

“Minha versão de você” é um livro que os bissexuais mais velhos gostariam de ter lido quando eram mais jovens. Há muitas quebras de estereótipos importantes em suas páginas recheadas de romance adolescente.

A figura do homem bissexual é desconstruída e sua atração também por mulheres encarada com naturalidade. O livro também mostra que a sexualidade não é uma escolha, e sim algo inerente ao indivíduo.

Fanart: https://rivetedlit.com/2017/10/09/autoboyography-art-roundup-and-exclusive-excerpt/

 

Recheado de cenas românticas como bilhetinhos no caderno de Tanner e também outras típicas de romances adolescente, como os dois pombinhos serem pegos no flagra pelo pai de Tanner. “Minha versão de você”, como dito em sua capa, é um romance essencial sobre descobertas, amor e aceitação.

Estamos bem

Este livro chamou a atenção em seu lançamento por ter um romance LBGT entre meninas. Escrito por Nina LaCour e publicado no Brasil pela Plataforma 21, também está disponível na Amazon, sua história está longe de ser centrada no relacionamento amoroso de Marin com sua melhor amiga.

O grande coadjuvante da história não é uma pessoa, mas sim o sofrimento da protagonista. A obra é desenvolvida em duas linhas temporais: o presente e flashbacks que pouco a pouco dão ao leitor pistas sobre o trauma que Marin enfrentou.

Tudo começa com Marin se preparando para passar as festas de fim de ano no alojamento de sua universidade, no frio do inverno de Nova York. Como apontou Tamires Santos, em sua resenha sobre o livro: “o que LaCour consegue passar claramente ao leitor, através do nosso coração que palpita com tristeza, é a imensa solidão que mora com aquela menina”.

“O problema da negação é que, quando ela chega, você não está pronta.” – Marin

A estudante passou sua vida toda na Califórnia, mas se viu obrigada a ir embora sem olhar para trás. Mas, como sua melhor amiga do passado, Mabel, irá visitá-la, Marin se vê obrigada a lidar com as memórias de sua vida antes do ocorrido e também com ele próprio.

Quando dizemos que está tudo bem

Como as cores frias sugerem nas bonitas artes do livro – a tristeza é um dos sentimentos mais presentes no livro. Assim, Estamos Bem apresenta ao leitor – atenção para gatilhos – o que é passar por um sofrimento mental profundo. Marin apresenta sinais muito claros de um quadro depressivo e também indícios de ansiedade e até síndrome do pânico.

“Todos (os cobertores) estão dizendo: deite. Ninguém vai saber se você passar o dia inteiro na cama. Ninguém vai saber se ficar com o mesmo moletom o mês todo, se fizer todas as refeições vendo TV e limpar a boca na camiseta. Vá em frente, escute a mesma música sem parar, até o som perder o sentido. Você pode passar o inverno dormindo.” – Marin

A grande questão é a negação do trauma, que a protagonistas tenta com todas as suas forças evitar lidar, tentando seguir com sua vida como se estivesse tudo bem – quando claramente não está. Por isso o título (we are ok em inglês).

Há também o isolamento, que é uma condição que decorre deste sofrimento. Marin acredita que precisa estar sozinha e por isso se isola cada vez mais, afastando as pessoas queridas de seu passado e também evita construir novos laços.

“Sei que estou sempre sozinha, mesmo quando cercada de pessoas, então deixo o vazio entrar.” – Marin

Onde fica o romance nisto tudo? Aos poucos vamos revivendo através dos flashbacks de Marin de seu último ano do colegial e revivendo com a personagem como a amizade com Mabel se transforma em algo mais. Nos apegamos ao passado, querendo que a história volte a ser como era antes, assim como Marin. Nesse ponto a autora é minuciosa: sentimos através da própria estrutura narrativa o que se passa na mente da protagonista.

Onde entra a bissexualidade?

Fanart: https://www.deviantart.com/birnenbrinchen/art/We-Are-Okay-664895052

 

E quem é bissexual nesta história (ou pan, pois isto não é deixado claro)? Mabel, com quem Marin divide uma profunda conexão que mesmo passado tanto tempo desde a última vez que se viram seguem se importando uma com a outra. A grande missão de Mabel inclusive é convencer Marin que ela não está sozinha e levá-la para passar as festas em sua casa. Isso ocorre mesmo que Marin esteja em um novo relacionamento, com um garoto.

Acerca da questão da representatividade, mesmo que o foco da história não seja o romance, como vimos, a naturalidade como é apresentado é importante. Os sentimentos e o envolvimento amoroso entre Marin e Mabel não são anulados como inválidos porque neste momento Mabel está em relacionamento heterossexual. A relação das duas garotas é mostrada de forma poética e com uma sensibilidade admirável.

“Foi um verão de negação. De descobrir o que o de Mabel podia fazer pelo meu, e o que o meu podia fazer pelo dela. Um verão passado na cama branca da casa dela, com seu cabelo espalhado no travesseiro. Um verão passado no meu tapete vermelho, com o sol no nosso rosto. Um verão em que o amor era tudo.” – Marin

Além disso, é quebrado o comum estereótipo de mulheres bissexuais  que são infiéis aos seus parceiros, podendo trocá-los a qualquer momento por alguém do outro sexo/ou do mesmo sexo. O que serve como desculpa para inseguranças e cobranças nos relacionamentos e entre bissexuais.

Embora Marin não faça menção a este preconceito abertamente, entende sem cobranças infundadas que sua ex seguiu sua vida acabando por namorar um garoto. Porque, pasmem, bissexuaisl também se relacionam com pessoas de outros gêneros. E mesmo assim Marin continua a amizade com Mabel, o que é sem dúvida uma forma de combater esta tipo de pensamento.

Estamos bem e a saúde mental

Fanart: https://www.deviantart.com/birnenbrinchen/art/hiding-640202942

 

Além destas questões, a história também vai abordar outros tipos de neuro-atipicidade. Não entrarei em mais detalhes para não dar spoiler sobre a história. Mas, é muito interessante a forma como a autora apresenta todas estas questões, pela perspectiva de Marin.

Sem um narrador onisciente – que tudo sabe – surgem inúmeros questionamentos para o leitor, que é obrigado a refletir sobre questões que são deixadas de lado na sociedade. Escondidas e, principalmente, negadas.

Apresentar um quadro de neuro-atipicidade na família é visto com maus olhos. Isso quando se tem um diagnóstico. Você pode ler mais sobre o sofrimentos e o preconceito enfrentado pelos neuroatípicos ou neurodivergentes aqui.

Apesar da grande quantidade de pessoas que dia após dia descobrem-se com sinais de depressão e ansiedade pela visibilidade na mídia que estes transtornos mentais vem ganhando, outros quadros são deixados em um campo nebuloso da desinformação. Assim, a falta de suporte psicológico e informações para o neuroatípico e seus familiares é causa de grande sofrimento.

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Com certeza são dois livros muito diferentes, mas cada um ao seu modo apresentam questões muito pertinentes ao nosso tempo. E você tem algum livro para indicar?

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