Controle e Machismo – Uma Análise de Mídias para Mulheres da Década de 1950
Anos 1950, a era dos anos dourados, quando todo mundo sabia como as coisas deveriam ser. E quem não soubesse, ficava sabendo rapidinho.
(imagem: Flickr/CC)
Sim, você não leu errado. Controle. Sabe quando o Leo nos contou no filme A Origem que: “uma ideia é como um vírus. Resistente. Altamente contagioso. A menor semente de uma ideia pode crescer para definir ou destruir você”? Pois então. Leo, muito antes do seu glorioso Oscar, estava certo: ideias são armas poderosas.
Crítica social que merecia um Oscar.
Em outro ponto do filme, ele fala: “Nenhuma idéia é simples quando você tem que plantá-la na mente de outra pessoa”. Gosto muito deste filme, pois ele sintetiza bem o que ocorre numa sociedade. Ideias surgem, são plantadas, e quando suas raízes estão bem firmes, dificilmente alguém consegue arrancá-las. E isso ocorre conosco – vários textos aqui no blog mostram como nosso mundo é infestado de referências e jogadas de mídia para que estejamos sempre obedientes. Mas quando isso se iniciou? Na igreja? Adão e Eva? Ou junto com medidas econômicas?
Uau, esse assunto assusta, né? Bem teoria da conspiração! Bom, vou dar um resumão histórico pra gente não se perder.
O capitalismo mudou muita coisa nas sociedades que o adotaram. Antes dele, as pessoas acostumadas a obedecer o sol nas suas rotinas tiveram que se acostumar com as máquinas e horários rígidos das fábricas (e a ganhar pouco por isso, e perder dias e mais dias fechados num galpão com péssimas condições e ofícios que literalmente poderiam te matar).
Chaplin mandando o recado.
Então, como esperado para qualquer grupo depois de uma mudança tão brutal, um colapso social se tornou eminente e surgiu a necessidade de algo que organizasse essa sociedade. Mas como? Como fazer com que as pessoas seguissem um rígido sistema de trabalho que poucas vantagens lhes traziam sem gerar rebeliões? Ora ora, que tal influenciar o comportamento delas – tanto dentro, como fora do trabalho – de modo a fazer com que o sistema de produção fosse o seu próprio sistema de vida?
Bingo!
Seguindo o ótimo exemplo do período medieval com o seu controle social massivo (que rendeu quase mil anos de poder total papal), iniciaram-se as pesquisas sociais para observar, entender e influenciar o comportamento humano. As pesquisas geraram muitos frutos, e logo leis e um sistema forte que atingisse todas as camadas da população foram sendo implementados. E qual a melhor forma de aplicar isso? Simples: plantando ideias nas pessoas. E que melhor lugar para isso do que uma escola?
Com o acesso universal à educação, as pessoas de classes mais baixas passaram a também frequentar a escola. Claro, ninguém aqui quer que você ache que uma escola vai te manipular. Contudo, o acesso universal à educação está, sim, relacionada ao desejo de quem está no poder de sempre receber mão de obra eficiente (e obediente). Aliás, isso explicaria bem a distância que as escolas mantêm de matérias questionadoras, como Sociologia e Política.
Bem, nos anos 1940, muitos homens foram enviados para lutar na Segunda Guerra Mundial, o que fez com que muitas mulheres tivessem acesso ao mercado de trabalho. Foi um dos primeiros passos das mulheres rumo à independência. Mas, ao fim da guerra os homens voltaram, e junto com eles chegou também um resgate dos papéis de gênero do pré-guerra.
Não preciso fazer mistério para dizer o que rolou, não é? Sim, mulheres voltaram para casa – não só porque foram demitidas, mas também por acreditarem que nem deveriam estar fora dela. Mas aí você poderia perguntar: como alguém que tem o poder nas mãos pode se sujeitar a voltar a ficar trancada em casa?
Bem, neste período a imprensa no Brasil ganhou algo especial: uma licença de Vargas para financiamento privado. Ou seja, as propagandas começaram a surgir e a se popularizar. E como quem ficava ouvindo rádio era quem ficava em locais privados, as donas de casa foram a isca fácil para patrocinadores, que obviamente criaram propagandas em massa voltadas ao público feminino. E não parou por aí: a mídia impressa também chegou bombando, com revistas e partes de jornais inteiras destinadas a elas. Assim, muitas informações tidas como necessariamente femininas começaram a surgir.
Mas espere, como assim “tidas como necessariamente femininas” ? Bem, é agora que chego exatamente onde queria chegar. (Aleluia chega de enrolação). Gostaria de iniciar com esta imagem:
É uma venda de calmante – sim, só calmante! Contudo, observem o texto para a propaganda. Qual solteira numa sociedade em que o casamento era o objetivo e ápice da vida da mulher não bateria o olho e começaria a ler com receio de nunca ser amada? Nenhum noivo vai querer uma mulher que fala demais, reclama demais, chora, sente emoções, respira… ops, acho que exagerei, desculpa, são meus nervos combalidos. E ainda temos o bônus ao lembrar que móveis bonitos são os que receberam um lustre de óleo de peroba, tá?
Confesso que na minha busca por matérias várias coisas me faziam rir, mas imaginem uma moça aos 20 anos, nos anos 1950, lendo algo assim, que seria o conselheiro comportamental em sua vida. Agora, cá entre nós, quem nunca leu “dicas para ser a garota mais desejada”, “como fazer ele te notar”, “como ser a namorada perfeita”? Desculpa, Capricho, mas você é só uma requentada de matérias que datam de décadas atrás! Aliás, que tal fazer um teste para ver se você é uma boa namorada, cortesia da Capricho em pleno século XXI?
E o que dizer desta matéria sobre ”o marido ideal”, que mostra que além de policiar as mulheres havia também um esforço de fazê-las desejar um padrão de homem?
Nem a moça na figura estava gostando do papo com o futuro esposo.
Lembrando que as revistas eram direcionadas a mulheres de classe média, que foram à escola e de preferência já tinham filhos. As matérias eram quase um manual da mulher, que falava de todos as aspectos (até mesmo como agradar o marido). Espera, acho que li uma matéria dessa numa revista este mês, ou foi dicas que alguém na minha timeline no Facebook compartilhou?
Extrato de tomate salvando casamentos desde 1954!
Aquela alegria e realização pessoal de ter gordura de coco em casa.
Adolescentes e o Início da Socialização
Observando a mídia temos uma boa noção de quando se inicia a conversa com a leitora e vemos bem como escolhiam seu público-alvo. Bem, o público-alvo era composto por mulheres, e isso inclui, claro, as adolescentes já de olho nos crush da vida, né? E nada melhor nessa fase do que uma carta de recomendação instruindo como ser uma boa menina.
Lembre-se de regular as emoções. Sabe, ninguém vai querer alguém que tem EMOÇÕES – e muito menos alguém que as demonstre.
Talvez se eu tivesse feito este curso, já estaria casada, com meus 2 filhos e 5 cães.
E se você acha que mulher semi nua em propaganda de cerveja é novidade…
Desculpa, são muitas informações a processar.
Vamos recapitular. Temos um sistema econômico que permitiu que mais pessoas estudassem e tivessem acesso a rádio e revistas, mas que ao mesmo tempo as manipula para que seu bem-estar esteja sempre vinculado a um consumo feroz que resulta em padrões tanto estéticos como comportamentais.
Como Leo disse lá em cima: “Nenhuma idéia é simples quando você tem que plantá-la na mente de outra pessoa.” E claro que as ideias plantadas também repassam opressões. Notou que até agora não apareceu nenhuma mulher negra?
Racismo
Vou te poupar o trabalho de voltar nas imagens: não tem mesmo, nenhuma das fotos acima tem uma mulher negra. Mas por que? Na verdade, aparecem sim, mas acho que você deve primeiro dar uma olhada antes que eu fale qualquer coisa.
E temos esta imagem fofinha de uma menina lendo nesta propaganda de revistinhas.Mas pera, tem algo ali no canto.
Vamos problematizar estas imagens curiosas.
Estas fotos são de um anuário. Seria como uma colação de todas as matérias de revistas voltadas às mulheres entre os anos de 1951 até 1955. Nestes cinco anos, tivemos apenas três imagens de mulher negra, e essas três imagens são nada mais que estereótipos – mais especificamente, o estereótipo da Mammy, ou Mãe Preta. Todas em função de empregada e próximas a fogões e crianças, sendo a perfeita “mãe preta”- sabe, quase da família, mas só se estiver ali na cozinha, trabalhando para os patrões brancos. E como uma ideia plantada segue firme até o fim, vemos o quanto a sociedade é racista, reproduzindo racismo até em revistas infantis com uma representação estereotipada de mulheres negras sempre em posições subalternas. Nesta última imagem, até o menino negro é representado de forma diferente dos meninos brancos.
Da Infância a Fase Adulta
Podemos ver como os preconceitos são enraizados desde a infância com estas revistinhas e seguem até a fase adulta com a imagem das mulheres associada sempre a produtos de cozinha. Se está com dúvida vou mostrar a primeira folha do anuário de 1951:
Que diferença não acha?
Além de “conselhos” estapafúrdios, racismo e opressões diversas,vemos também um movimento claro dos produtores de mídia de definir o que é de interesse feminino, sendo que nenhum assunto como política, economia e outros assuntos “sérios” são incluídos nessas publicações, pois mulheres “devem ser donas de casa e se preocupar apenas em aprender como ser uma esposa melhor”. De todo meu reviramento de revistas, a uma matéria em especial dedico minha atenção.
Uma matéria sobre como deixar a casa para seu marido caso tenha que viajar. Porque, sabe né, ele não pode se aventurar pela cozinha, já que é necessária uma vagina para mexer em panelas. Vai que ocorre uma tragédia e ele talvez APRENDA A SE ALIMENTAR SOZINHO. Coisa perigosíssima para a tradicional família brasileira.
Bem, como nos traz a historiadora Carla Bassanezi Pinskyt, no livro Mulheres dos Anos Dourados, essas mídias acabam se tornando companheiras de suas fiéis consumidoras, e assim seu conteúdo serve de instrução para a sua vida doméstica.
A questão está em como este material circulou nas mãos das mulheres e como ele reproduziu a voz machista para e entre elas. Não vemos nenhum conteúdo revolucionário, provocativo nessas revistas. Pelo contrário – vemos um reforço aos papéis de gênero e o impulsionamento de cobranças internas e externas que limitam a vivência das mulheres ao âmbito doméstico
Aos poucos as coisas foram mudando, mas ainda hoje vemos muito do discurso machista da década de 1950. Hoje em dia, ele pode parecer mais sutil, mas continua lá, sem sombra de dúvida.
Para finalizar meu texto, deixo esta imagem feliz de uma mulher que nunca teve TPM na vida, nunca ficou com raiva, é feliz 365 dias ao ano graças ao Tônico Anti-Doloroso.
Isso sim é uma mulher perfeita.
Leia também 10 Propagandas Absurdas do Passado (e seus pares absurdos atuais); e 13 Propagandas Feministas para Vencer o Machismo no seu próprio Jogo.
ERISVELTON SÁVIO S. DE MELO
August 31, 2016 @ 3:02 am
Querida Gisele, parabéns pela excelente pesquisadora e pensadora que você está se tornando, correção, que você é. O seu texto está maduro, bem trabalhado teoricamente, simples em palavras e com uma densidade grande em reflexões e no despertar para um tema que muitas vezes as pessoas querem invizilibilizar. Estar na mídia é estar a disposição de todos em um “supermercado” em que somos consumidores ou produtos. Mas tudo o que é disposto como mercadoria tem um valor a ser negociado, valor nem sempre meritório, mas meritocrático de uma sociedade injusta e impositiva em suas ideias divisórias para dominação e conquista de quem é tido como “pessoa mais fraca ou diferente” do poder dominador. Seu texto nos chama a realizarmos algumas reflexões que merecem ser compartilhadas para ser disseminadas. Assim, como a mídia foi utilizada como instrumento de formação de mentalidades e cauterizações, vamos usar ela (a mídia) para trazer a revolução do pensamento à tona e mostrar que cauterizações podem ser transformadas em belas tatuagens, desde que se tenha a coragem de mudar e protagonistas como você a incentivar e mostrar que nos tempos chegaram e novas mentalidades devem ser formadas, resultando em atitudes diferentes.