Eu, Mulher, Definitivamente Não Sou o Que Eu Como
Não dá mais pra achar que está tudo bem em fazer dieta. Apesar de talvez não estarmos doentes, nossa relação com a comida pode não estar nada bem.
Tenho acompanhado e vivido a ampliação dos debates sobre alimentação e nutrição consciente e intuitiva nas redes sociais e isso tem sido a minha pequena revolução cotidiana. Como muitas mulheres, passei a maior parte da vida de um transtorno alimentar pra outro sem ter a oportunidade de refletir sobre nenhum deles. E se você é mulher e acha que não tem nenhuma relação com a minha realidade, continue lendo.
Quando alguém fala em transtorno alimentar, imediatamente associamos essa ideia a algo muito distante, a uma doença grave que com certeza não temos. Afinal, quem quer estar doente, não é mesmo? E em todos os lugares parece que transtorno alimentar só tem duas formas: a anorexia e a bulimia. Logo, se você come e não vomita em seguida, maravilha, cumpriu os dois requisitos para não estar doente e ter pena das pessoas – em sua ampla maioria, mulheres – que estão numa situação diferente.
Pois bem, vamos fazer um exercício rápido de ignorar terminologias médicas, especializadas ou do senso comum sobre “transtornos alimentares” e simplesmente se perguntar: “minha relação com a comida é transtornada?”. E com transtornada quero dizer: a minha relação com a comida sofre perturbações externas à minha vontade de comer? Ou ainda: comer um determinado alimento me causa sofrimento?
Não sou nutricionista, não sou médica, não sou psicóloga, então não tenho nenhuma pretensão de abordar dados dessa natureza na nossa conversa. Sou cientista política e posso contribuir aqui questionando o senso comum onde enxergo o conflito. E não tenho dúvidas de que há conflitos profundos entre mulheres e sua alimentação a cada segundo. Poderia aqui ainda discorrer longamente sobre as raízes desses conflitos hoje: o machismo, o patriarcado, a sociedade de consumo, etc., mas prefiro te trazer a minha experiência para refletirmos juntas a partir daí. Só por hoje.
Desde a infância era uma menina fora dos padrões de beleza vigentes: sou negra (embora de pele mais clara), tenho cabelo encrespado e sempre fui grande. E com grande quero dizer grande mesmo, última da fila do hino na escola, manja? Porque embora todos quisessem me convencer do contrário, hoje eu sei que jamais fui gorda. E soma-se a isso um fato determinante pra relação que estabeleci com a comida: eu era pobre, só que isso ninguém dizia. Chocolate era um item raro e disputado, o biscoito recheado era dividido precisamente entre eu e meus irmãos (quando a gente não tinha que deixar no mercado a hora que o caixa batia o orçamento do mês). E isso valia para toda sorte de alimentos industrializados, tidos como gostosos e que eram inacessíveis.
Já adolescente numa escola extremamente elitizada, entendi que meu corpo era percebido de uma maneira diferente do que os das outras meninas e quis me adequar o máximo possível para tentar passar despercebida. E pra isso valia tudo: desde me sujeitar a um alisamento de cabelo gratuito em uma perfumaria até, e principalmente, não comer quando não tinha ninguém pra me obrigar ou observar. Eu só comia em casa, ou quando ia à casa de uma amiga, e só se alguém notava que eu não estava comendo.
Entre o terceiro ano do ensino médio e a minha entrada na universidade, eu entendi que não comer não adiantava de nada e passei a comer qualquer coisa e em grandes quantidades, porque simplesmente tinha a possibilidade – mas ainda assim longe dos olhares da galere. Foi então que atingi meu maior peso, com 1, 73 m de altura, cheguei nos 90 Kg ou mais (parei de contar). E depois de algum tempo na universidade, vi uma foto minha com esse corpo e aquilo foi destruidor: eu, uma menina de 17 anos que todo mundo dizia ser inteligente, determinada, que tinha passado na universidade pública no curso que sempre sonhou era, apesar de tudo isso, uma fracassada. Era preciso fazer alguma coisa. E essa coisa se chamava dieta. Quer coisa mais pop e bem vista do que uma “boa” dieta?
Ainda morava com a minha mãe, que fez o que uma mãe deve mesmo pensar ser o melhor: vou com a minha filha ao médico. Fomos a uma endocrinologista que me recomendou uma dieta de 1200 calorias por dia, em que eu deveria cortar todo açúcar e a gordura, e que me receitou um redutor de apetite. Não só pra mim, mas também pra minha irmã, dois anos mais nova, com muitos menos quilos que eu. Saí de lá feliz e motivada. Iria resolver esse problema de uma vez por todas.
Em quatro, cinco meses, seis no máximo, perdi cerca de 25 quilos ou muito mais (novamente, parei de contar). Era uma vitória, uma conquista. Todo mundo parabenizava, fui mais reconhecida do que quando passei no vestibular, um verdadeiro milagre pra igreja glorificar de pé. E na minha cabeça quem tinha operado este maravilhoso milagre era eu.
Enfim, eu estava magra, magra mesmo, era oficial. Mas eu ainda estava infeliz. Achei que era um milagre, um milagre pra que mesmo? Sem dúvida me tornei mais visível, minha vida social deu um upgrade, e hoje eu sei que não era só o meu corpo, era o fato de estar na universidade, finalmente entre pares. O que faltava então? Não sabia, mas eu queria que aquilo significasse mais. Talvez se eu emagrecesse ainda mais. Afinal, minha barriga não estava como eu queria. Era isso, eu não tinha atingido a meta, a meta tinha que ser mais. Só que a meta era inalcançável e isso foi outra coisa que ninguém me disse.
Se eu já tinha cortado todo açúcar e gordura da minha alimentação, o que mais dava pra fazer? Comer menos e não comer, é claro! E foi assim, querendo restringir mais o que já era restrito, que comecei a pular refeições, ou simplesmente não comer. A cada alimento ou refeição ignorada, uma vitória pra minha lista de troféus da semana.
Então, meu crush com a anorexia começou, adquirindo umas nóias. A primeira foi “não dá pra bandeijar sozinha”. A segunda foi “não posso comer na frente dos caras que eu fico”. A terceira foi “posso substituir todas as refeições do dia por uma barra de cereal se ninguém perceber”. Dali um tempo já não tinha mais barra de cereal, e também já não dava pra disfarçar.
Embora eu morasse em república, passava o dia todo na universidade e quem convivia comigo passou a estranhar. “Você não vai almoçar?”, “não te vi comendo hoje”, “quero ver você comer um pedaço disso, pega”. Isso quando eu não ficava tonta e começavam os desmaios públicos. Com o tempo, eu desenvolvi estratégias para não desmaiar e pra ninguém duvidar se eu tinha comido. Só que eu também já não sabia do meu corpo, não olhava ele no espelho, fiquei desconectada dele completamente por meses.
Até que um dia uma amiga nem tão próxima me disse “eu percebi o que você está passando, você está muito magra, está estranha, ainda dá tempo de você pensar sobre isso e voltar a comer”. Foi a parte mais chocante de todo esse processo, eu quase chorei no meio da geral, e hoje percebi que nem todas nós tem essa sorte de ser interrompidas por alguém que compreenda. O milagre tinha se tornado uma derrota e eu precisava voltar a comer. Mas comer também era um fracasso, um sofrimento, então eu mantive algumas das nóias como parte da sensação de vitória.
Se eu quisesse comer um doce que eu não comia há mais de um ano, eu comia, mas eu não almoçava. Se eu saía com um cara, não podia comer – dá um Google em imagens de “mulheres famosas comendo” – o horror. Eu podia comer, mas me associar publicamente àquele ato, de jeito nenhum. Aos poucos fui voltando a engordar, e enquanto meu corpo estava visivelmente mais equilibrado, minha mente tinha apenas uma mensagem: FRACASSO. Segui comendo, mais para cumprir tabela do que pra suprir minha vontade. Então eu comia o que meu dinheiro pudesse pagar, tanto fazia mesmo. Só que o longo tempo de restrição trouxe de volta o sentimento da infância de querer comer o inacessível financeiramente. E enquanto eu comia o que dava, passei a desejar outros alimentos que não dava pra bancar.
Em algum dia do futuro, depois de muito trampo e estudos, eu passei a poder bancar. E poder bancar em vários sentidos: eu tinha um companheiro que não me oprimia em relação ao meu corpo, eu passei a ter alguma grana sobrando, e eu me aprofundei nas discussões sobre feminismo, passando a colocar a aprovação masculina no seu devido lugar. Logo, eu passei a comer toda e qualquer coisa só porque eu podia e tinha a oportunidade. Virei uma comedora compulsiva. Comia muito até não aguentar, quase todos os dias. A comida compensava o tédio, a alegria, a falta, a tristeza. A comida tinha o poder mágico de compensar tudo. Em dois anos, eu voltei ao meu peso de antes de entrar na universidade, e novamente vi uma, duas, três, quatro fotos minhas – hoje elas se reproduzem infinitamente, socorro! – e eu entendi que apesar do que eu achava, eu não podia bancar aquela comida.
Grande erro.
E não é porque eu comia demais, me achei feia, fracassada, e precisava buscar um estilo de vida mais saudável. Não! E hoje, aliás, eu não admito que ninguém me diga alguma dessas coisas, nem eu mesma. Mas porque minha relação com a comida estava e sempre esteve deturpada de muitas maneiras. E é preciso refletir sobre isso todos os dias, em toda e qualquer refeição.
Eu sei que não posso, nem quero, nem devo fazer uma dieta. Restringir minha alimentação – esse é um caminho que já percorri. Eu sei que não adianta eu comer de tudo que eu quiser e puder, porque o vazio continua lá. Eu sei que não adianta eu me agredir fazendo uma série de exercícios diários que eu detesto e parecem zombar da minha inteligência. Eu sei que não adianta eu ouvir o palpite da tia e da amiga da colega que perdeu 30 Kg e tem uma dica, um super alimento e um cardápio nutricional infalíveis. Eu já sei todos de cor.
Tá, eu sei de tudo. Você talvez saiba de tudo. A gente sabe tudo isso. Inclusive, você deve estar aí se perguntando: “Onde minha história encontra a dela? Porque a Larissa claramente foi ou é doente, sei lá, e eu ainda não me enxergo doente”.
Miga, nem eu. Não quero que você se enxergue doente. Em nenhum desses momentos que eu vivi, eu me enxerguei doente. Até porque os meus exames e os médicos todos que me encontravam na vida diziam que estava e está tudo bem. Mas olhe ao seu redor, pense na sua relação com a comida, as chances de estar tudo bem, de verdade, são muito baixas. “Então por que raios eu li esse textão, 100or?!” É porque agora que eu contei parte da minha história, eu posso te fazer umas perguntas rápidas:
- Você já se constrangeu de comer na frente de um boy ou amigue?
- Você conta ou pensa nas calorias de coisas que você come?
- Você compra chia, linhaça, gojiberry e óleo de coco com fins alimentares?
- Quando você come um lanche ou um doce daora, como você se sente?
- Quando você come mais de um lanche ou de um doce daora na mesma semana, o que você pensa sobre si mesma?
- Antes de você ir pra academia ou correr de manhã ou de noite, qual sua sensação?
- Você tem certeza absoluta de que existem alimentos saudáveis, outros nem tanto, e outros nem um pouco saudáveis?
- Você já se sentiu bem, vitoriosa mesmo, por fazer um jejum? Ou um dia detox de ingestão apenas de líquidos
- Você já odiou seu corpo com todas as forças? Até com vontade de ter uma faca mágica que pudesse cortar aquele pedaço do que dizem ser “gordura localizada”?
Pera, eu sei que deu um xabu por aí, mas vamos passar pras próximas perguntas:
- Você já saiu com um boy ou amigue que te estimule a comer de tudo, independente de quantos quilos você tenha?
- Você já simplesmente teve a sensação de que nem passou pela sua cabeça contar as calorias daquilo que você acabou de comer?
- Você sempre tem na sua casa um pouco de chocolate, creme de leite fresco, e sua fruta favorita?
- Você já se sentiu plenamente realizada de comer o lanche ou o doce que você ama?
- Você já se sentiu plenamente maravilhada consigo mesma de comer esse lanche ou esse doce mais de uma vez na mesma semana?
- Antes de você ir pra uma balada em que você vai dançar a noite inteira, qual a sua sensação?
- Você já se permitiu pensar que todo e qualquer alimento pode ser saudável?
- Você já se sentiu bem, vitoriosa mesmo, de participar de um banquete ou uma festa daquelas que você teve que dar uma afrouxadinha na calça? Comemorou horrores ter ido de vestido?
- Você já amou seu corpo com todas as forças? Até com vontade de ter uma máquina mágica que fizesse mais corpos como o seu pra outras mulheres entenderem a maravilhosidade que é ser você?
Pois então, esse textão é um convite. Nada mais que isso.
Algumas páginas legais pra acompanhar e pensar mais nessas questões: 3o Dias sem Gordofobia; Não Conto Calorias; Nutrição sem Modismo; Não sou Exposição – Imagem não determina valor; O Corpo é Meu.
Leia também Gordofobia for Dummies; e Identidade GG.
Amanda
December 29, 2016 @ 4:12 am
Oi Larissa, adorei seu texto e o jeito que tu desabafou com o leitor. Tenho 16 e entro nesse site várias vezes (quando vejo algo legal no facebook) e fico horas lendo matérias. Eu não passei por o que tu passou, principalmente por ser uma adolescente, mas é difícil saber se um dia começarei a contar calorias, quanto mais entro no feminismo e vejo amigas também, amigas gordas (sem nenhuma ofensa no adjetivo), mais eu me sinto bem comigo mesma e sei que é algo que a sociedade diz para nós mulheres que a aparência é o que devemos nos preocupar. Porém o pior, é ver minha família conservadora me dizer sempre que eu preciso e devo sempre emagrecer, mesmo os homens da família sendo gordos, se eu tivesse o apoio da família e menos “olha como tu tá gorda e feia” ou “se a mulher pagasse um nutricionista ou academia ao invés de cuidar desse cabelo de salão”, acho que eu seria uma mulher feliz com meu corpo.
Xin
April 18, 2017 @ 3:13 am
Ih, me vi muito na sua história…Desde que me entendo por gente sempre lutei contra a balança. Meu pai morava em outro Estado, minha mãe trabalhava o dia todo, morava num lugar hiper longe. Minha única companheira: a comida. Bolos, pães, biscoitos, o que tivesse disponível em casa eu devorava. Já cheguei a comer um pacote de pão inteiro, puro. Só queria me sentir cheia, estufada e ir dormir assim.
Claro, fui uma adolescente obesa. Mas sempre escondi meus hábitos alimentares. Eu me recusava a comer na frente dos outros, com medo de perder o controle. Passava no mercado e comprava todas as porcarias que podia com o dinheiro que arranjava (as vezes até pedia por aí falando que precisava pra outra coisa, que loucura).
Já perdi a conta de quantas dietas restritivas já fiz. Eu até conseguia segui-las por um tempo, mas uma hora a compulsão falava mais alto e engordava tudo de novo.
Acredite se quiser, meu primeiro namorado me conheceu na época que eu estava mais gorda, com quase 90kg. Na época eu não acreditava nas declarações de amor dele, achava que um cara se apaixonar por uma gorda era um mito. Detalhe: ele era MUITO magro.
Ele tentava flertar, mas eu fugia com medo dele estar me zombando, até que um dia resolvi aceitar o convite de sair junto com ele. Ele me tratou de um jeito que nunca havia sido tratada antes. Um carinho sem igual…Me apaixonei, até esqueci da minha compulsão por comida no tempo em que ficamos juntos (curto, digasse de passagem).
Nossa relação só durou 4 meses e eu sei bem o porquê. Não comia na frente dele, tinha vergonha. Ele insistia em me dar presentes e eu não aceitava, achando que não merecia porque era gorda. Eu me autocriticava demais, nunca queria sair pra lugares publicos. Ele sempre tinha de ir na minha casa (ou vice versa). Um dia ele se encheu e com razão. Fiquei noiada achando que ele tinha terminado comigo porque eu era gorda e fiz a dieta mais radical da minha vida, perdendo 20kg em 3 meses.
Voltei ao trabalho dele me achando, pensando que ele cairia aos meus pés. Estava profundamente enganada…A conversa foi desagradavel e por último escutei que ele sempre preferiu garotas mais gordas e que preferia meu corpo antes de emagrecer. Fiquei no chão!!!
Apesar de todos do meu convivio terem me parabenizado pelo emagrecimento, além de eu perceber que estava sendo bem mais notada na rua, eu estava infeliz pra caramba, com um vazio no peito mesmo. Resultado: larguei tudo e voltei a comer COMPULSIVAMENTE, todos os dias. Não importava o que fosse, eu comia até me esfolar. Engordei tudo de novo em pouco tempo. Aliás, escrevo esse texto no momento devorando 8 pães de queijo. Já devorei os 3 pães Franceses e a barra de chocolate que trouxe comigo, mas ainda não estava satisfeita. Saí de casa para comprar pão de queijo antes que a padoca fechasse. E dane-se o mundo.
Uma hora voltarei a tomar vergonha na Cara, mas não agora. Estou muito íntima com a comida, e amanhã já tenho planos do que quero comer.