Black Mirror – USS Callister: Uma Alegoria de Críticas Sociais

O episódio de estréia da quarta temporada de Black Mirror nos faz refletir sobre temas como depressão, ética, abuso de poder, machismo e inteligência artificial.

Nanette Cole, uma das protagonistas de USS Callister

Contém spoilers.

O polêmico episódio de estréia da quarta temporada de Black Mirror, intitulado USS Callister, tem sido pauta de várias discussões. E em muitas dessas discussões e debates, existem dois lados principais: o dos que defendem Robert Daly, e o dos que defendem os clones IA (Inteligência Artificial). O que pretendo fazer nesse texto é discutir todas as questões abordadas de forma mais imparcial possível, sendo que nada do que será argumentado aqui é absoluto.

Dito isso, vamos ao texto.

Uma das principais discussões deste século diz respeito a Vida – seja em termos sociais, biológicos ou científicos. Tais questões discutem o caminho pelo qual a humanidade pode caminhar daqui para frente, pois uma nova revolução tecnológica se aproxima e, a cada revolução, novas problemáticas sociais são desencadeadas. Um dos principais problemas deste século me parece ser a solidão e, com ela, outros como depressão, ansiedade e até mesmo o suicídio. Este texto será dividido em partes, sendo que no primeiro momento vou utilizar Robert Daly e o seu ambiente de trabalho para falar sobre bullying, suicídio, exclusão do meio social e depressão.

Parte 1: Conhecendo as interações do ambiente

Robert Daly sozinho no escritório.

Em um primeiro momento do episódio, somos apresentados a uma boa dose de assédio moral em ambiente de trabalho. Robert Daly, um dos nossos protagonistas, se encaixa no perfil da vítima em potencial – uma pessoa educada, competente, extremamente ingênua e, acima de tudo, facilmente manipulável e controlável. Nas primeiras cenas do episódio, fica claro que Daly é capacho em sua empresa – mesmo sendo um dos chefes. Em especial, de seu principal agressor: seu sócio James Walton.

Fica claro que Robert foi condicionado a viver nesse sistema de hierarquia há muito tempo, possivelmente desde a escola, pois seu perfil é o mesmo de quem sofre bullying. Daly acaba fragilizado e adotando para si os comportamentos induzidos por seu agressor, fazendo tudo o que ele manda.

Por consequência, seus colegas de trabalho acabam fazendo uma segregação dentro do ambiente de trabalho, excluindo-o do ciclo social justamente por causa do seu perfil. Apenas poucas pessoas o tratam bem, como o estagiário Nate, seu colega Karbi e a nova contratada da empresa, Nanette. Mesmo assim, ele não possui um convívio social saudável. Segundo a Universidade Sauder School of Business, da Columbia Britânica, a exclusão no ambiente do trabalho chega a ser pior do que bullying, o que leva Robert a ter baixa auto-estima, estresse e, possivelmente, depressão.

Robert Daly sério em um elevador lotado, a caminho do escritório

Também fica claro que apesar de três pessoas o tratarem bem através de gestos bastante simples, ele se apega a elas de forma intensa, deixando a sua carência por convívio em um grupo social saudável transparecer. Isso fica mais claro ainda quando Shania (uma das funcionárias, interpretada pela maravilhosa Michaela Coel, de Chewing Gum) alerta a novata Nanette para não se aproximar muito de Robert, pois ele teria o costume de ficar no pé, querendo atenção. Nanette dá ouvidos a Shania, mas não ignora ou despreza Robert em nenhum momento.

Em suma, a vida de Robert Daly se limita às suas experiências no trabalho e à ficar em casa sozinho jogando Infinty, um jogo de imersão criado por ele. Levando todos esses elementos em consideração, podemos imaginar que Robert é um suicida em potencial. Porém, ele possui um meio de extravasar seus sentimentos. Ao invés de automutilação, ele utiliza a dor contra os outros.

Parte 2: De Vítima a Agressor

Daly coletando um pirulito do filho de Walton para roubar seu DNA.

Depressão, bullying, assédio moral e exclusão do meio social constantes podem levar uma pessoa a cometer atos terríveis. A vítima pode facilmente se tornar um agressor. No caso de Robert Daly, sua vingança é executada através de seu jogo.

O jogo Infinity funciona online e basicamente consiste em conectar a consciência do jogador ao jogo, com 100% de imersão. Fã de uma série de televisão antiga chamada Space Fleet (o Stark Trek do mundo de Black Mirror), Robert cria uma versão off-line com o mesmo universo da série.

Mas com quem ele jogaria, se sua versão está off-line?

Bom, para tornar a experiência completa, Robert pega amostras do DNA de cada funcionário ou colega com quem ele tem algum apego, mas que lhe fez mal em algum momento. Através de um aparato qualquer, ele consegue usar esse DNA para criar clones virtuais dessas pessoas e colocá-las dentro do jogo em modo off-line. Tais clones, embora “artificiais” (pois vivem somente dentro do jogo e de acordo com suas regras), possuem consciência e memória de suas vidas pregressas.

Todos os personagens na fantasia megalomaníaca de Robert Daly, em que ele manda em todos.

Robert, por sua vez, consegue manipular o universo que criou. Ele é basicamente um Deus ali e, embora cada uma dessas “pessoas” tenha tentado se rebelar contra essa prisão virtual, suas ações são inibidas pelas torturas e castigos que Robert inflige. O clone de James Watson, por exemplo, fica profundamente traumatizado depois que Robert colhe o DNA de seu filho e mata a sua versão virtual no jogo, na frente de Watson.

Enquanto isso, as versões dessas pessoas na “vida real” nem imaginam que Robert fez um clone de todas elas. Isso nos leva a outra discussão, sobre bioética, moral, conceito de vida e inteligência artificial.

Parte 3: A Humanização da Vida Tecnológica

Na série Humans, da AMC, e Westworld, da HBO, os robôs querem liderar uma revolução contra o sistema de escravidão no qual os seres humanos os inseriram. Em ambas as séries, a IA (Inteligência Artifcial) é tão avançada que eles são capazes de ter sentimentos tão profundos quanto qualquer ser humano. Enquanto isso, no nosso mundo real, Rinna – uma IA criada no Japão – tem a personalidade de uma adolescente com variação brusca de humor (atualmente ela está em estado de depressão). Sophia, por sua vez, foi a primeira “mulher” robô a conseguir cidadania e muito mais direitos do que qualquer Mulher Humana na Arábia Saudita (muito embora ela se demonstre solidária à causa e critique o sistema opressivo contra essas mulheres). Percebe-se que as questões éticas recentes levantadas na ficção científica têm cada vez mais relevância no mundo real.

A robô Sophia, da Arábia Saudita, dando uma entrevistaA robô Sophia, da Arábia Saudita, dando uma entrevista.

 

Tais questões são pauta em todos os episódios da série Black Mirror. Os clones dos funcionários de Daly possuem raciocínio e sentimentos, ao mesmo tempo que o jogo os enxerga como jogadores e NPCs (Personagens de um jogo não jogáveis). Com isso, eles têm muitas limitações. Uma delas é a falta de autonomia dentro do jogo. Somente Robert possui essa autonomia, pois o jogo o enxerga exclusivamente como um jogador. Sendo assim, ele detém todo o poder dentro dele.

Com isso, além das torturas contra os personagens, Robert consegue remover os órgãos sexuais dos clones na versão off-line, pois na versão on-line os personagens possuem e podem constituir uma família (lembra The Sims, não é mesmo?). Assim, o episódio nos condiciona a sentir alteridade pelos personagens clonados, fazendo com que nos questionemos se eles eles podem ser considerados “seres viventes” e se são “humanos”, não no sentido biológico, mas sim no emocional da palavra.

Nanette, Walton e Nate, três personagens punidos por Robert Daly

Nanette, um dos clones, indignada com as torturas e com a prisão virtual em que Robert os confinou, decide se rebelar contra ele e, com a ajuda dos outros clones, tenta se comunicar com alguém em busca de ajuda. No entanto, Robert descobre sua tentativa e decide torturá-la. Quando Shania se opõe e implora a Robert que perdoe Nanette, pois ela é novata, ele a transforma em um monstro horrendo, e deixa Nanette isolada como forma de punição. Tal sequência nos leva a uma outra discussão, sobre abuso de poder, machismo mascarado e a banalidade do mal.

Parte 4: “O Mal Mora nos Detalhes”

Depois da Segunda Guerra Mundial, a filósofa Hannah Arendt escreveu sobre o estado Nazista e seus seguidores. Esperava-se que uma mulher judia pudesse falar o quão patológico e demoníaco era o estado nazista, especialmente sobre Adolf Eichmann, cujo julgamento Arendt assistiu. A filósofa, no entanto, foi para outro caminho. Ela reconhecia o mal do nazismo, mas acima de tudo ela falou sobre como o mal se tornou algo banalizado sob o regime nazista; sobre como as pessoas foram condicionadas à ele como se estivessem fazendo algo “normal”, tomadas por um vazio de pensamento motivado por obediência cega, dever ou burocracia.

Dentro do seu jogo Infinity, Robert Daly mostrou uma outra face, diferente da vítima no “mundo real”. Ali ele era um tirano. No “mundo real” seus colegas de trabalho emularam o comportamento opressivo do chefe James Watson, enquanto no jogo Robert torturava a versão virtual desses colegas sem um pensamento sobre a sua humanidade. Os clones são de fato IA, mas têm a capacidade de sentir dor, raciocínio, memória e consciência. Mesmo quem o tratava bem, Robert torturava, numa atividade maléfica que se tornou banal para ele e para quem o defende.

Karbi assustado em um momento de violência de Daly contra WaltonKarbi assustado enquanto Daly tortura Walton logo atrás. 

 

O episódio, por sua vez, nos apresenta uma troca de ponto de empatia, humanizando a tecnologia e desumanizando o humano. Até que ponto é ético o que Robert fez? Era normal ele ter pego DNA de outras pessoas sem permissão? Era normal ele ter criado clones para descontar suas frustrações neles? Para ele era. Seria Robert o clássico caso da vítima que se torna o agressor, ou seria uma pessoa megalomaníaca sedenta por poder que por acaso também é (ou está disfarçada) de vítima?

Outro ponto interessante na personalidade de Robert Daly é o machismo mascarado. Na vida real, ele é quieto e recuado, enquanto no mundo virtual ele ganha o posto de maioral, “pegador”, dono da razão, sendo que todas as mulheres têm que servir somente a ele (qualquer semelhança com alguns internautas é mera coincidência). Sempre que Nanette entra em cena somos lembrados disso, pois afinal, o motivo de ter sido clonada é o fato de não sentir interesse ou atração romântica por ele. Ao ouvi-la conversando com Shania sobre isso, ele pega o seu DNA e a clona, motivado por “justiça” (ou Síndrome de Masculinidade Frágil).

Daly beijando ShaniaTodas as mulheres são obrigadas a beijar Daly ao final de cada “aventura” no jogo. 

 

Na análise de Beatriz Amendola do Oul, esse ponto de Robert é uma alegoria, assim como o episódio em si. Ela compara o comportamento tóxico e machista de Robert com certos internautas geek que atacaram Star Wars por investir em personagens femininas, e certamente Robert seria uma dessas pessoas.

Conclusão

O episódio termina com a Nanette Clone e a tripulação pedindo ajuda para a Nanette Humana, com um plano para fazer com que a versão do jogo de Robert seja excluída. No entanto, ele está imerso no jogo quando isso acontece, o que faz com que a sua consciência fique presa dentro dele. Enquanto isso, a tripulação – que esperava a morte – é transportada para a versão online do jogo, que agora os enxerga como Jogadores e não mais como NPCs (o que lhes dá autonomia).

A discussão entre os fãs diz respeito principalmente à “morte” de Robert. Os fãs que o defendem banalizam suas atitudes e punem os clones, enquanto os que defendem os clones banalizam a morte de Robert. O episódio em si não trata sobre quem está certo ou quem está errado. Ele é apenas uma alegoria para questões humanas e sociais maiores. E isso sim “é muito Black Mirror”.


Confira a discussão sobre Bioética de Ricardo Timm de Souza.

Leia também Nerdsplaining: O Silenciamento da Mulher na Cultura Nerd.

Comentários do Facebook