Personagens Femininas em dois Blockbusters de 2017 – Uma Análise
Analisamos a presença feminina em dois filmes de sucesso de 2017: “Rei Arthur: A Lenda da Espada” e “Planeta dos Macacos: A Guerra”.
*Contém spoilers.
Como já foi discutido pela Lara aqui no Nó, no texto O Homem como Padrão: Os Efeitos do Androcentrismo no Cinema e na Televisão, a figura masculina é entendida como padrão de ser humano, e por isso a esmagadora maioria dos personagens que compõem as produções cinematográficas são do sexo masculino (mesmo no caso de filmes com personagens femininas principais ou até com o público alvo explicitamente feminino, como é o caso das princesas Disney).
Pensando nisso, hoje iremos analisar a presença feminina em dois Blockbusters de sucesso de 2017: “Rei Arthur: A Lenda da Espada” e “Planeta dos Macacos: A Guerra”. A origem da palavra blockbuster vem dos anos 40, quando ela servia como codinome de um tipo específico de bomba lançada por aviões de guerra que era capaz de destruir um quarteirão inteiro. Por isso o nome “block” (quarteirão – em inglês) e “bust” (quebrar – em inglês).
No cinema, classificar um filme como blockbuster significa que houve um alto investimento em sua produção e divulgação, e que este alcançou uma grande bilheteria (lucro). Ou seja, se trata de um produto popular – pensado para ser consumido massivamente. Seu objetivo, então, é o retorno financeiro. Por conta de sua natureza mercadológica, em geral os blockbusters investem em fórmulas prontas para garantir o retorno financeiro do grande investimento neles empregados.
Blockbusters – explodindo quarteirões e nossas esperanças de representatividade feminina decente no cinema desde 1940.
Dito isto, vamos lá: existe a crença Hollywoodiana de que mulheres se interessam por filmes considerados femininos e também pelos ditos masculinos, enquanto o contrário não acontece. Por isso, investir em filmes “masculinos” seria um melhor investimento já que estes atrairiam mais público. E como sabemos, o cinema é uma indústria e trabalha com número + público, que em suma significaria + lucro. Há de se perguntar, porém: se os filmes com protagonistas femininas nunca receberam o mesmo investimento que os filmes com protagonistas masculinos, o quanto dessa crença é baseada em fatos?
Simples: não é.
No ano passado (2016), o número de protagonistas femininas em filmes bateu recorde: das cem maiores bilheterias do ano, 29 foram estreladas por mulheres. Isso representou um crescimento de 7% em relação ao ano anterior, de 2015. Já este ano vimos o estrondoso sucesso de Mulher Maravilha, que conquistou nada menos que US$ 800 milhões no mundo todo.
De fato, a grande revolução foi, como assinalou Natalia Engler para o UOL Cinema, o filme da princesa Diana, que “além de ter uma heroína à frente, a maior parte da equipe por trás das câmeras também era formada por mulheres, da diretora Patty Jenkins à designer de produção, passando pelas decoradoras de set, técnicas de efeitos especiais e coordenadora de efeitos visuais”.
Jogos Vorazes foi uma das produções protagonizadas por mulheres que abriram o caminho para essa revolução.
Esse crescente interesse por produções com protagonistas femininas é resultado de um intenso movimento que luta pela igualdade da presença feminina tanto na frente quanto atrás das câmeras. Com isso, quanto mais investimento os filmes protagonizados por mulheres vão recebendo, mais a crença de que homens não se interessam por filmes com protagonistas femininos vem sendo quebrada. O blockbuster Mulher Maravilha – dirigido por uma mulher, inclusive – teve seu público 50%/50% nos Estados Unidos, mesmo se tratando de um filme de herói, que em média tem 60% de seu público masculino.
Ainda assim, os filmes com protagonistas masculinos continuam sendo regra. Mas o que vamos tratar hoje não são os protagonistas e sim a presença feminina em dois filmes com protagonistas masculinos de aventura. Não preciso dizer que embora estes filmes sejam considerados “masculinos”, eles também são assistidos por mulheres.
Planeta dos Macacos, ou seria Planeta dos Machos?
Vamos começar com “Planeta dos Macacos: A Guerra”. O filme é o terceiro da franquia recente de “Planeta dos Macacos”. Sua sinopse é a seguinte: “César e seu grupo são forçados a entrar em uma guerra contra um exército de soldados liderados por um impiedoso coronel. Depois que vários macacos perdem suas vidas no conflito, César luta contra seus instintos e parte em busca de vingança. Dessa jornada, o futuro do planeta poderá estar em jogo”.
No filme encontramos três mulheres: uma menina humana que é incapaz de falar por conta da praga e duas macacas: a esposa de César e a namorada de seu filho. Convenientemente, estas três personagens não tem falas, porém elas se comunicam a seu modo: a menina aprende linguagem de sinais com o grupo de macacos que a acolhe e que as duas macacas dominam também. Agora vamos ver o papel destas personagens em ordem de aparição na trama de que fazem parte.
Logo no começo do filme somos apresentados à esposa de César e aos dois filhos do casal, um mais velho que já faz parte na luta contra os humanos com o pai e um que ainda é uma criança de colo. A mulher nesse caso aparece como elemento familiar, marginalizada aos cuidados da família enquanto seu marido e filho mais velho participam da guerra. Que patriarcal da parte dos macacos, não é mesmo?
Já Lake, a namorada do filho de César, aparece para saudar seu amado depois de voltar vivo de uma operação da resistência dos macacos. Sua função na trama aparece intrinsecamente ligado ao seu amor pelo filho de César, como veremos mais adiante.
Neste ponto, antes de aparecer a nossa terceira personagem feminina, ocorre algo muito comum nas produções cinematográficas: a família do herói é morta (só sobrando seu filho mais novo). Ou seja, a aparição da esposa de César acaba por aí, já que ela vira um motivador do desejo de vingança do personagem principal contra o cruel coronel que os matou.
Como já vimos nos textos Mulheres na Geladeira e Estupro Não Forma Caráter – e outros 3 Problemas na Representação de Violência contra a Mulher na Cultura Pop esse é um dos tipos mais comuns de uso das personagens femininas na cultura pop. Como escrevemos anteriormente: “quando a violência não engole a vida e complexidade das personagens femininas, ela é muitas vezes usada apenas para impulsionar a história de outros personagens (99% das vezes, masculinos). Nesses casos, a personagem em si nem chega a ser realmente explorada” e muitas vezes “uma personagem se torna vítima de uma violência apenas para servir de recurso narrativo, ora avançando a história, ora informando o público sobre o caráter dos personagens masculinos.”
Praticamente acabamos de descrever o que aconteceu com a esposa do César no filme. César, como um herói honrado pai de família, parte sozinho em busca vingança para a morte de sua família. Em seguida, como já era de se esperar, os amigos fiéis do herói aparecem para ajudá-lo e assim se forma um grupo para combater o mal.
Depois da partida de César e seu grupo de amigos, encontramos nossa terceira personagem feminina – a menina humana que ganhou o nome de “Nova” no decorrer da trama. Depois de os macacos matarem em confronto com o adulto que cuidava da criança (que podemos supor que era seu pai), os heróis não conseguem abandonar uma criança inocente na neve para morrer e decidem leva-la consigo.
Nova vivia escondida na floresta com seu provável pai, pois ela tinha contraído a praga dos macacos. Se por um lado a praga despertava uma inteligência superior nos símios, ela tirava a capacidade de fala articulada dos humanos, que eram executados para não espalhar ainda mais a epidemia. Então, a menina vivia escondida para não ser morta antes de se juntar ao grupo de macacos. Pronto, o grupo está completo: temos a nossa smurfette, ou seja, a única personagem feminina dentro um grupo de homens.
Mas vamos lá, apesar de a personagem não ter falas e ser a única integrante feminina do grupo de heróis ela tem um papel muito importante na franquia “Planeta dos Macacos” em si, pois ela representa a bondade e a inocência da humanidade ficando amiga dos macacos e os ajudando. A personagem, longe de ser uma garotinha indefesa, ajuda com coragem seus amigos e é parte essencial da história. Ela inclusive ajuda a libertar o protagonista em uma das ocasiões! Nova é um “Fight like a girl” e tanto, apesar dos pesares.
Voltando a Lake, a namorada do falecido filho de César, César deixa seu caçula aos cuidados dela: “Você amou meu filho, agora cuide do irmão dele”. Vemos mais uma vez o papel da mulher como centrado no cuidado dos filhotes e do núcleo familiar, enquanto os homens vão a guerra. Clássico…
Já no exército humano – onde poderíamos ver mais personagens femininas, pois, como sabemos, mulheres sempre lutaram em guerras, de uma forma ou de outra – surpresa! Essa possibilidade não foi explorada. Como sempre, uma personagem só é escrita como mulher, quando o ser mulher é algo essencial a ela. Caso contrário, a regra é ser homem.
Mas que bela bost*.
Isso acabou fazendo com que uma superprodução como esta tenha apenas três mulheres em seu enredo, sendo que apenas uma tem um papel de destaque na trama. Por outro lado, a escassa aparição feminina do filme o livra de um dos pecados cinematográficos mais comuns: a objetificação feminina – já que objetificar crianças, mães e namoradas dos mocinhos pegaria muito mal.
Assim, um filme de nota 7,9 no IMDb, um dos mais respeitados sites de crítica de filmes e séries do mundo, apesar de ter uma produção invejável com uma fotografia e produção elogiáveis, quando se trata de representatividade feminina peca como qualquer outro filme hollywoodiano. Utilizando-se de clichês como o Princípio Smurfette e a morte da família do personagem como motivação para a vingança, ele se sustenta sobre fórmulas prontas e repetidamente exploradas nas produções audiovisuais.
Rei Arthur e como matar e/ou colocar em perigo todas as mulheres que aparecem no filme
Agora vamos ao nosso próximo filme: “Rei Arthur: A Lenda da Espada”. Mais um remake de um clássico: sucesso garantido não é mesmo? Vamos lá, o filme com certeza tem a presença de mais mulheres. Será isto uma coisa boa? Veremos…
A primeira mulher que aparece é a mãe de Arthur, que é assassinada na sua frente pelo vilão do filme quando ele é apenas uma criança. Já temos aqui o primeiro uso do filme da violência/morte de mulheres para a motivação do personagem principal (mesmo que ele só descubra esse incidente traumático mais para frente na história).
A seguir, Arthur consegue escapar da cena inicial do filme e desce rio abaixo até ser encontrado por uma prostituta nas docas da cidade. O garotinho será criado por ela como filho e será querido por todas as rameiras do bordel de sua mãe.
Bom, os anos passam e Arthur cresce sendo um bem-sucedido e boa pinta trapaceiro das docas. Até que uma das prostitutas que o criou, Lucy, apanha de um dos clientes do bordel e Arthur vai acertar as contas com ele. Bingo! É a 2ª vez que a violência/morte de uma mulher funciona como motivação do personagem principal.
É brincadeira né?
Mas a esculhambação não para por aí, porque por conta do episódio anterior, a verdadeira identidade de Arthur é revelada. Ele é capturado pelo vilão que matou seus pais e é sentenciado a morte. E adivinhem? Pela 3ª vez, mulheres são colocadas em perigo para motivar o nosso mocinho: para que ele não cometa nenhuma loucura durante sua execução, suas mães adotivas são colocadas sob custódia e Lucy é assassinada na sua frente. Isto é, “as outras serão as próximas” se ele tentar algo.
Enfim.
Vocês acharam que o filme ficaria sem nenhuma smurfette? Nesse imbróglio todo da execução, quem salva Arthur é Merlin, claro. Mas, numa jogada de mestre moderninha, os produtores do filme não esqueceram das mulheres, pois fizeram de Merlin uma de nós! Embora isso tenha sido muito interessante, poderia ter sido melhor explorado.
A maga é na verdade discípula de Merlin e incrivelmente poderosa…até ser colocada como interesse romântico do mocinho e precisar correr perigo para que Arthur despertasse os poderes da Excalibur! Isso mesmo: apesar de ser provavelmente o personagem mais forte do filme, num passe de mágica ela é capturada por UM SOLDADO COMUM e mantida como refém para que Arthur possa salvá-la e finalmente despertar seus poderes. Ou seja, temos nossa 4ª vez…enfim, você entendeu. Apesar disso, a personagem foi fundamental na trama e seu poder essencial para a vitória de nosso mocinho. Aliás, só por curiosidade, vocês já leram o texto Personagens Femininas Incríveis – A Síndrome da Coadjuvante Hiper Competente?
Bem, voltando, porque ainda não acabou. No decorrer da trama uma outra mulher interessante aparece: uma espiã infiltrada como dama na corte do vilão, que dá ao grupo de mocinhos uma informação que os permite montar um esquema para matá-lo. No entanto, infelizmente o nosso vilão foi muito esperto e descobriu como as informações estavam vazando.
Arthur percebe que foi uma armadilha e tenta suspender a operação, porém um dos integrantes do grupo atira assim mesmo matando o comandante do exército inimigo – ou seja, sacrificando nossa espiã que mal apareceu e já está mortinha da silva. Só que dessa vez não podemos dizer que ela foi usada para motivar nosso personagem masculino, pois apesar de Arthur tentar parar o ataque, a vida dela não teve importância nenhuma e foi simplesmente descartada.
Tinha que ser o Mindinho!!!
Bom, até agora só apresentamos as mulheres que morreram no lado do nosso mocinho boa pinta Arthur. Mas, elas surpreendentemente não foram as únicas! O vilão do filme é o tio do Arthur que, com inveja de seu irmão que era Rei e podia controlar a Excalibur, busca poder fazendo um pacto com uma criatura mística. O preço que ele pede é bem simples: o sangue de um ente querido…
Oh não.
Assim, para alcançar seu poder, nosso vilão apunhala pelas costas sua esposa e suas duas filhas – as únicas pessoas que amou durante toda a sua vida. Isso coloca nossa contagem para vejamos… já tínhamos 4 + 3 = 7 MULHERES que foram mortas ou colocadas em perigo para motivar/desenvolver personagens masculinos! O filme ainda faz questão de deixar evidente como foi doloroso para Vortigern apunhalar o coração de suas amadas, mas ele o fez mesmo assim.
Então, Rei Arthur consegue a façanha de colocar em perigo ou matar TODAS as mulheres que aparecem em sua trama. O filme alcança um 7 redondo no IMDb, porque vamos combinar: que roteiro mais fraco e com fórmulas prontas, não é mesmo? Não podemos negar, claro, que a fotografia é maravilhosa, a trilha sonora impecável, o mocinho é charmoso demais, e a ideia de fazer uma Merlin mulher foi louvável, mas não dá para ignorar como as personagens femininas foram tratadas como meros peões narrativos.
Há esperança?
Rei Arthur: A Lenda da Espada teve o orçamento estimado em US$ 175 milhões. Já Planeta dos Macacos: A Guerra teve orçamento ligeiramente menor, de US$ 150 milhões. Fica o questionamento: quantos milhões são necessários para que as mulheres sejam tratadas como personagens com profundidade que fazem parte da trama sem ser mero recurso narrativo nas mãos dOs roteiristas (em sua maioria) que as criam?
Segundo levantamento do Instituto Geena Davis, até o ano de 2012 somente cerca de 17% dos personagens animados em cenas de multidões foram mulheres. Esta não é nem de longe a representação feminina na sociedade. Porém, no imaginário social, quando pensamos em um personagem, imaginamos um homem, pois aprendemos que ser mulher é o desviante. “O homem chegou a lua”, “o homem descobriu o fogo”, o homem, o homem, o homem…
Para finalizar trazemos as palavras de Patty Jenkins (diretora de Mulher-Maravilha) em resposta às críticas de James Cameron:
“Se mulheres precisarem ser sempre difíceis, duronas e problemáticas para serem fortes, e nós não tivermos liberdade para sermos multidimensionais ou celebrarmos um ícone das mulheres porque ela é atraente e amável, então nós não fomos muito longe, fomos? […] Eu acredito que as mulheres devem e podem ser absolutamente tudo que os protagonistas masculinos são. Não há certo ou errado em mulheres poderosas, e eu acredito que as próprias mulheres que trabalharam na produção, gostaram dela e lutam por isso conseguem julgar sozinhas o progresso do filme”.
Por incrível que pareça, eu realmente me diverti quando fui assistir Rei Arthur e Planeta dos Macacos no cinema. Afinal, o que esperar de filmes Blockbusters, cheios de fórmulas prontas já testadas e desgastadas?
No entanto, precisamos lembrar que a arte influencia a maneira como pensamos e vivemos no mundo, o que significa que dependendo do que é produzido, ela pode reforçar ou combater as opressões da vida real. Por isso, a cada dia fica mais difícil de engolir uma indústria cinematográfica que não reconhece na metade da população mundial indivíduos que podem ser personagens complexos e compor histórias para além dos estereótipos do seu gênero.
Leia também O Homem como Padrão: Os Efeitos do Androcentrismo no Cinema e na Televisão.
agatha
September 9, 2017 @ 1:59 am
Lívia, ótimo texto, concordo com quase tudo, mas creio que há um porém.
No planeta dos macacos, o princípio smurfette não se aplica pois a macaca Maurice é fêmea. Eles não focam isso no filme, e retratam-na de uma maneira soldadesca, Não mencionando seu sexo. Achei inclusive que você fosse falar que coube a ela o papel de se importar com a nova, e como isso pode ser visto de maneira problemática.
Adoro o site de vocês ❤❤
soany cruz
September 9, 2017 @ 7:28 pm
adorei toda a ANÁLISE! mE DEU CURIOSIDADE DE LER O QUE VC TERIA A DIZER SOBRE OS PERSONAGENS FEMININOS Dos filmes da MARVEL, COMO WANDA mAXIMOFf e viúva negra.