Slut-Shaming e o Complexo de Madonna-Prostituta Explicados Através de Produções Adolescentes

Produções adolescentes são um prato cheio de clichês e estereótipos quando se trata do controle sobre a sexualidade feminina.

slut shaming

*Contém spoilers de Dawson’s Creek e do filme A Mentira.

Puta, vagabunda, piranha, vadia. De acordo com a pesquisa conduzida por Valeska Zanello, do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB), esses são os xingamentos mais ofensivos direcionados a mulheres no Brasil. Por outro lado, para homens, a pior coisa é ser chamado de viado, mulherzinha ou broxa.

Pensando aqui sobre as pessoas que dizem que machismo e misoginia não existem, mesmo vivendo em um mundo em que ser chamado de “mulher” é uma ofensa.

 

Bom, já vimos isso antes. Xingamentos são uma forma eficaz de controle social e funcionam muito bem para reafirmar constantemente todos os “podes” e “não podes” de uma sociedade. Através deles, recebemos a deixa de como devemos e não devemos nos comportar desde a mais tenra idade. Por isso, não é nada surpreendente que em uma sociedade machista, os principais xingamentos para mulheres sejam aqueles que refletem o rígido controle exercido sobre os seus corpos e sexualidade (enquanto para homens a ofensa maior reside em ser comparado a mulheres).

Toda essa prática de xingar ou constranger usando como base o comportamento sexual da mulher tem um nome: slut-shaming. Resumidamente, slut-shaming é uma forma de restringir e controlar a sexualidade feminina usando xingamentos, ou fazendo com que ela se sinta culpada, humilhada ou inferior por comportamentos diversos, como ter vários parceiros, transar sem compromisso, usar roupas curtas, etc. A implicação por trás é a de que quanto mais sexualmente ativa uma mulher, menos valor ela tem como ser humano.

slut shamingVale sempre notar que o mesmo não se aplica para homens. Aliás, homens são livres para transar com “vadias”, mesmo desprezando-as.

 

É importante observar, no entanto, que o controle da sexualidade feminina é tão rígido, que uma mulher nem precisa necessariamente ser sexualmente ativa para ser vítima de slut-shaming. Falar sobre sexo, usar roupas mais reveladoras, ter desejos sexuais, ou mesmo somente pensar sobre sexo podem render uma dose de humilhação e culpa a meninas e mulheres. O que significa que todas as mulheres provavelmente já foram humilhadas ou se sentiram culpadas por serem, bem, humanas.

Não há momento em que esse fenômeno é mais presente do que a adolescência, no limiar da Pureza x Decadência feminina. Talvez por esse motivo, os maiores exemplos de slut-shaming que a cultura pop já produziu e ainda produz acontecem em produções com temática adolescente. É quase impossível assistir a um desses filmes ou séries sem passar pelo menos uma vez por algum episódio de slut-shaming. Pensando aqui nas produções que marcaram a minha adolescência e ajudaram a construir a minha percepção sobre sexualidade feminina, os exemplos são vários.

slut-shamingSim, Dawson, vamos começar por você.

 

Dawson’s Creek é o primeiro que vem à mente, com a exploração exaustiva de como a suposta promiscuidade de Jen arruinou a sua vida e fez com que ela fosse enviada para morar com a avó em Capeside – para desgosto da Joey, a nossa heroína virgem.

Então, Jen, você é virgem? – Joey para Jen.

 

Apesar de tentar se redimir ao longo de toda a duração da série, Jen é constantemente vilanizada por seu comportamento sexual passado – por Joey, por Dawson, por seus colegas de escola -, e mesmo anos depois, ela ainda acaba grávida de um cara que a abandona com a criança. E não podemos esquecer que, sim, ela morre no final. Porque esse é o destino esperado para garotas más afinal, não é?

Pelo menos é isso o que a cultura pop passou longos anos nos dizendo, principalmente através de seus filmes de terror slasher (o famoso terror de assassinatos). Sabe aquele clichê super manjado do gênero, que traz uma protagonista feminina como o maior alvo e sobrevivente da trama? Pois é, apelidada de Final Girl por Carol J. Clover em 1992, até meados da década de noventa esse tipo de personagem quase sempre se encaixava nos estereótipos conservadores de como uma mulher deve ser: virgem, recatada e pura, que não bebe, não usa drogas e nem fuma. Como um contraponto, as vítimas clássicas do assassino costumavam ser as personagens femininas loiras, peitudas e promíscuas, normalmente mortas logo no início da história.

Existem certas regras que devem ser obedecidas para se sobreviver em um filme de terror. Por exemplo: ser virgem.

 

Tudo mudou, no entanto, com a quadrilogia Pânico, que não só trouxe uma protagonista que perde a virgindade logo no primeiro filme e sobrevive para contar a história, como ridicularizou ao longo de todos os quatro filmes as motivações dos assassinos, baseadas principalmente em slut-shaming (da mãe da Sidney, no caso).

É a sua vez de gritar, babaca!

 

Pânico certamente é um raiozinho de sol que merece ser celebrado, mas mesmo assim inúmeras personagens femininas já sofreram algum tipo de slut-shaming em filmes e séries adolescentes. O bacana de olhar para esse tipo de produção, no entanto, é que de alguma forma (saudável ou não), elas costumam trazer as contradições presentes nas pressões sociais impostas à meninas e mulheres. Por isso, ao mesmo tempo em que vemos personagens femininas sofrendo slut-shaming, também vemos muitas delas atormentadas por ainda serem virgens.

Toda mulher passa por isso na adolescência. Queremos beijar, queremos transar, e somos cobradas a isso por amigos, familiares e mesmo por chefes e colegas de trabalho (Silvio Santos, estou olhando pra você). Mas se mostramos que queremos isso e se, deusolivre, conseguimos, então somos putas, vadias, vagabundas. Um dilema bem resumido pela Alison em Clube dos Cinco.

slut-shamingSe você diz que nunca fez, é uma pudica. Se diz que fez, é uma vadia. É uma armadilha.

 

A ideia de que mulheres só podem ser santas ou putas é conhecida como o Complexo de Madonna-Prostituta. Obviamente, essa é uma contradição que atormenta as mulheres durante toda a vida e aparece em todos os gêneros da ficção, mas por trazerem o elemento da virgindade – que representa o ápice da pureza feminina -, as produções adolescentes são um prato cheio de clichês e estereótipos relacionados a ela.

slut-shamingMuitas vezes, temos uma vilã traiçoeira e sexualmente ativa contra uma mocinha adorável e virginal.

 

Na maioria das vezes, a trama pune e condena a personagem sexualmente ativa, mas como não podia deixar de ser, muitas vezes a mocinha virgem é ridicularizada justamente por não ser sexualmente ativa. Quer dizer, não tem como ganhar sendo mulher.

Por que estou te dando ouvidos? Você é uma virgem que não sabe dirigir. – No clássico Patricinhas de Beverly Hills vemos novamente que uma mulher sempre será julgada e humilhada por seu comportamento sexual – independente de como ele for.

 

Um filme mais ou menos recente que traz essa dicotomia de uma forma crítica e bem escancarada é A Mentira (Easy A), com a Emma Stone. O filme conta a história de Olive, uma garota que, cansada de ser invisível na escola, inventa para a amiga que transou com um universitário x. Nesse momento, temos a virgindade como algo ruim, sendo que na cabeça de Olive, não ser mais virgem a tornaria mais interessante.

slut-shamingE você é uma virgem invejosa!

 

Na sequência, o boato se espalha e Olive ganha a antipatia do grupo de Marianne Bryant, a garota mais religiosa e fofoqueira da escola. Para completar, Olive finge que transou com um amigo gay para ajudá-lo, e a situação vira uma bola de neve quando outros caras impopulares começam a lhe pagar para que ela faça o mesmo por eles. É então que temos a virgindade como algo bom, na medida em que vemos Olive vivenciar com força total o slut-shaming na escola, perdendo amizades e o respeito de praticamente todo mundo. Olive se torna uma pária na escola, enquanto os caras com quem ela supostamente transou se tornam populares da noite pro dia. Dois pesos, duas medidas.

O filme é uma comédia, então tudo acaba bem no final, graças principalmente ao senso de humor e espírito bem resolvido da protagonista. Mas sabemos que na vida real não é sempre que as coisas acabam bem para garotas com uma má reputação. Aliás, é em parte por isso que é não só ofensivo, como perigoso ser chamada de vadia. Além do xingamento nos diminuir e desvalorizar, ele ainda nos transforma em alvo fácil para machismo hostil, do tipo que fala coisas como “ela estava pedindo” (uma surra, um estupro, um assédio, etc).

slut-shaming13 Reasons Why é uma série que mostra até que consequências o slut-shaming pode chegar. Felizmente, as vítimas não são vilanizadas pelo roteiro. Infelizmente, uma delas morre.

 

É difícil acertar sendo mulher. O molde a que devemos nos adequar é pequeno demais, rígido demais, e pior – dependendo da situação, muda magicamente de formato, de quadrado para redondo, de triângulo para losango. Em uma sociedade machista e patriarcal, com papéis de gênero rigidamente impostos isso não tinha como ser diferente. Afinal, a subjugação das mulheres não seria tão completa se não fosse assim.


Leia também O Duplo Padrão “Homem é Pegador, Mulher é Vadia” explicado através de um episódio de How I Met Your Mother.

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