Simplesmente Amor – Desconstruindo o meu Clássico de Natal Favorito
Foi doloroso, mas precisava ser feito.
Sim, pode me julgar. Simplesmente Amor, a comédia romântica mais lotada de celebridades britânicas de todos os tempos, foi durante muito tempo um clássico natalino na minha casa. Nos últimos treze anos, perdi a conta de quantos natais já passei na companhia de Billy Mack e seu péssimo hit de Natal, começando com as longínquas festividades de 2003, quando vi o filme pela primeira vez no cinema, até o Natal de 2013, última vez que coloquei meu surrado DVD para tocar.
Desde então, por algum motivo, tenho evitado sequer olhar ou pensar sobre o meu clássico natalino favorito. Mas minto, porque eu sei exatamente o motivo. 2014 foi nada menos que o ano em que liguei o meu raio problematizador. E todo mundo sabe que esse é um caminho sem volta. Não existe um botão OFF no raio problematizador.
Por esse motivo eu venho simplesmente ignorando Simplesmente Amor (hêhê). Porque mesmo que inconscientemente, eu sempre soube que o filme não sobreviveria a uma reflexão mais longa que o tempo que leva para falar “Aww” pra alguma cena romantiquinha.
Aqui, diga “aww” comigo uma última vez. Porque o negócio vai ser tenso.
Esse ano, no entanto, eu disse chega! Afinal, não fui eu mesma que disse que precisamos ter o olhar crítico, principalmente para aquilo que a gente ama? Lara Vascouto, eu disse, você é uma mulher ou um rato? Então eu corajosamente resgatei o meu DVD surrado, tomei notas, e cá estou para dizer que o veredicto, como previsto, é bem ruim.
Comecemos, então, pelo problema principal, presente na própria essência de Simplesmente Amor e do qual decorrem todos os outros problemas: a reprodução desenfreada de clichês problemáticos sobre amor romântico. Mais especificamente, dos cansativos ideais do:
- Amor à primeira vista
- Homem conquista / Mulher é conquistada
- Grande Gesto Romântico
Vamos a eles.
Amor à Primeira Vista
Dentro do guarda-chuva do amor à primeira vista, incluo não somente o ato de se apaixonar por alguém logo no primeiro encontro, como também o ato de se apaixonar por alguém sem nunca ter tido nenhuma interação verbal significativa. E nesse tipo de romance Simplesmente Amor extrapola todos os limites.
David e Natalie apenas trocam algumas palavras ao longo do filme (e alguns palavrões). Sarah e Karl aparentemente são muito tímidos um com o outro para trocar mais do que cumprimentos no escritório. Sam afirma que Joanna nem sabe que ele existe e fica surpreso quando ela sabe o seu nome no final, portanto é seguro dizer que eles não devem ter tido nenhuma interação significativa na escola. O mesmo pode ser dito de Juliet e Mark, já que ele finge que a odeia, porque ela é esposa de seu melhor amigo. E por fim, Jamie e Aurélia nem falam a mesma língua! E quando ele aprende um pouco de português não é pra saber mais sobre ela, mas sim para pedi-la em casamento!
O brilho no olhar…de um psicopata.
Com isso, das sete subtramas verdadeiramente românticas do filme, cinco são baseadas em “amor à primeira vista”. Ou seja, mais da metade do romance do filme é baseado quase que puramente na aparência dos personagens.
E disso decorrem dois problemas grotescos do filme. O primeiro deles é o humor gordofóbico, que aparece principalmente em relação à irmã da Aurélia no final, mas também nas referências a Monica Lewinsky na subtrama do David e da Natalie. E o segundo é a objetificação das mulheres, escancarada não somente nas cenas em que a câmera passeia nos corpos da Aurélia e da Mia, como também em toda a subtrama do Colin nos EUA…
(que inclusive traz duas mulheres de volta para a Inglaterra com ele, como se fossem dois souvenirs),
e na própria forma como as histórias de cada casal são construídas. O que nos leva ao próximo item.
Homem conquista / Mulher é conquistada
Desde os primórdios da idealização do amor romântico, esse é o entendimento: um homem deve fazer de tudo para conquistar uma mulher. Além disso ser problemático por colocar a mulher na posição de prêmio, temos também nessa crença uma dose colossal de desempoderamento feminino, pois nessa estrutura quem age é sempre o homem. Entendidas, portanto, como prêmios que só ficam esperando a ação dos outros, somos todas irremediavelmente objetificadas no ideal de amor romântico. A própria construção gramatical em volta do verbo “conquistar” nos mostra isso. Afinal, quem conquista é o sujeito – no caso, o homem. E quem é conquistado é o objeto – no caso, a mulher.
Pois bem, mas onde Simplesmente Amor entra nessa história? Bem, o filme é quase que inteiramente baseado nesse ideal. Em nada menos que cinco das sete subtramas românticas do filme o romance é mostrado a partir do ponto de vista masculino. Isso acontece porque são eles os personagens que agem, enquanto as mulheres – os seus objetos de desejo – apenas reagem às suas ações. Jamie, Sam, Mark, David e mesmo John, personagem de uma das únicas subtramas que eu ainda consigo engolir sem grandes problemas: são eles os apaixonados e os que devem agir para que o romance se desenvolva. Não é à toa que o filme mal e mal passa no teste Bechdel. A única conversa entre duas personagens femininas é mínima, e acontece entre Karen e sua filha. Se bem que tecnicamente elas estavam falando sobre Jesus, então não sei se vale.
“Tinha mais de uma lagosta presente no nascimento de Jesus?
E já que estamos falando de Karen, é importante notar que as únicas duas subtramas românticas em que temos mulheres no centro acabam mal. Karen descobre que é traída pelo marido, mas decide continuar o casamento “sabendo que a vida vai sempre ser um pouco pior”.
E Sarah abre mão do seu romance com o Rodrigo Santoro por causa de sua dedicação ao irmão que tem deficiência mental. O que, sinceramente, não faz muito sentido, dado que ele já vive internado em um hospital psiquiátrico com cuidadores 24h. É quase como se o filme desse um jeito de punir as únicas personagens femininas que realmente têm espaço na trama e saem do papel de objetos.
Simplesmente Amor para as mulheres: seja bonita, não fale muito, e você terá um final feliz.
Enquanto isso, todos os homens apaixonados conseguem o que querem no final. Como? Bem, aí entra nosso último clichê.
Grande Gesto Romântico
Não importa se a mulher que você ama mal te conhece e está seguindo com a vida dela de boa. Simplesmente Amor mostra aos homens que basta fazer um Grande Gesto Romântico para ser recompensado. Vejamos cada caso.
- Aurélia não sabe praticamente nada sobre Jamie, mas aceita se casar com ele simplesmente porque ele aparece no trabalho dela com metade do vilarejo no encalço e fala que a ama em um português quebrado.
- Mesmo tendo sido um babaca ao punir Natalie quando o presidente americano a assedia, David é plenamente recompensado depois de bater de porta em porta procurando por ela.
- Joanna beija Sam depois que ele corre um aeroporto inteiro dando olé em todos os guardas pelo caminho para poder alcançá-la antes que ela embarcasse para os EUA.
- E Mark aparece na casa de Juliet com uns cartazes cretinos professando o seu amor por trás das costas do seu melhor amigo, e embora ela não deixe o marido por isso, ele ganha um beijinho de consolação no final!
O melhor amigo dele estava logo ali, no andar de cima!
O grande problema dos grandes gestos românticos é que raramente eles são isso. A linha entre romance e assédio é bem tênue, mas por algum motivo as comédias românticas continuam romantizando comportamentos invasivos ou abusivos por parte dos caras.
O que filmes como Simplesmente Amor (e tantos outros) reforça é que amor é uma questão de persistência e esforço. Deusolivre, por exemplo, o Sam simplesmente ir dizer ‘oi’ para a Joanna na escola e começar uma conversa. Não, ele tinha que aprender a tocar bateria e burlar todo o sistema de segurança de um aeroporto para “conquistá-la”. Em um filme, tudo isso pode parecer muito romântico. Mas na vida real, a coisa não é bem assim.
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Como eu disse lá no começo, foi doloroso voltar o olhar crítico para o meu filme natalino preferido, mas também muito necessário – até para discutir esses clichês do ideal romântico que são tão entranhados na nossa cultura machista. Vale observar que além dos problemas apontados, o filme também falha tanto na representatividade não-branca, como na representatividade LGBT (o que é bem triste, pois teria sido uma ótima oportunidade de trazer outras configurações românticas em um blockbuster natalino). Mas felizmente, vale apontar também, que apesar dos problemas do filme, as subtramas do Billy Mack e do John com a Judy ainda são bem amorzinho.
Um bom desfecho.
Como eu já disse antes, pensar criticamente – principalmente sobre aquilo que a gente gosta – é um processo doloroso. Mas isso faz parte de existir nesse mundo e assumir responsabilidade por ele. É por isso que eu faço reflexões como essa, apesar de muitas vezes me divertir e me emocionar com os filmes que estou criticando. O fato de eu gostar deles não significa que eu não gostaria que eles fossem diferentes. Eu quero que as coisas mudem. E isso só será possível se a gente estiver disposto a dar uma boa olhada até no nosso filme natalino favorito.
Leia também 4 Heróis Românticos que Eu Não Queria na Minha Vida nem Pintados de Ouro (Parte 2).
Erika
December 21, 2016 @ 1:41 am
Iara, adorei sua crítica. Simplesmente Amor também é meu filme de Natal favoritos e eu ainda o vejo religiosamente todos os anos. Foi doloroso ler seu texto e eu quase nem consegui terminar mas penso da mesma forma que você sobre termos de enfrentar. Não concordei com todos os seus pontos, principalmente sobre as tramas do Sam e do Mark, o restante realmente…
No mais, queria dizer que descobri esse site este final de ano e já se tornou um dos meus favoritos! Parabéns.
Erika
December 21, 2016 @ 1:42 am
Ah, pergunta. Apesar de tudo, ainda gosta do filme?
Abraços!
Lara Vascouto
December 21, 2016 @ 12:03 pm
Que bom que está gostando do site, Erika! Então, eu ainda gosto do filme, mas não consigo mais olhar pra ele do mesmo jeito. Simplesmente não tem mais o mesmo brilho. Mas como a Fernanda disse aqui em outro comentário, isso pode ser chato, sim, mas também é muito libertador. Beijão!
Fernanda Maria
December 21, 2016 @ 7:42 am
Adoro seus textos são sempre ótimos. Principalmente como alguém que sempre amou comedias românticas e depois teve que problematizar tudo, rs. Descobri o feminismo em algum lugar entre 2009/2010. E desde então o raio problematizador é está ligado. O que pode parecer chato, mas na verdade tem sido libertador. E amo ver gente como você falando de cultura pop e feminismo. Podemos e devemos!
Lara Vascouto
December 21, 2016 @ 12:05 pm
Exato, Fernanda. O raio problematizador liberta! Obrigada pelo apoio! 😀
Mirella
December 21, 2016 @ 12:09 pm
Adorei a coragem em problematizar seu clássico de Natal favorito e acabei ficando com a pulga atrás da orelha sobre o meu… E só de lembrar dele já vejo algumas falhas… Mas não rolou a coragem ainda de revê-lo sob o raio, hehe. Estou falando do The Holiday (O Amor não tira férias). Você já escreveu sobre ele?
Aproveito para comentar sobre uma publicação recente sua no Facebook com link para um texto sobre uma das minhas séries favoritas, Gilmore Girls, que eu quase não li por medinho também, mas que depois adorei (o texto não era seu, mas se você recomendou, é coisa boa).
Continue com o excelente trabalho!
Lara Vascouto
December 22, 2016 @ 9:53 pm
Oi Mirella! Preciso rever O Amor não tira férias – sei que gostei quando assisti, mas não me lembro direito dos detalhes. Vou escrever sobre em breve, aí veremos se ele sobrevive ou não, rs! Muito obrigada pelo apoio! <3
Giovana Moraes Baroni
December 22, 2016 @ 9:38 pm
Oi, você poderia escrever sobre o amor não tira férias, por favor?
Obrigada
Lara Vascouto
December 22, 2016 @ 9:54 pm
Coloquei na lista, Giovana! 🙂
Amanda
December 31, 2016 @ 6:19 pm
Eu adoraria ler por aqui sobre filmes românticos/comédia romântica no mesmo estilo do texto sobre filmes de terror liberados para feministas. Eu leio muitos livros desse gênero e me sinto bem com eles, agora com filmes é muito comum me sentir incomodada com alguns aspectos.
Lara Vascouto
January 2, 2017 @ 11:58 am
Boa ideia, Amanda!