A Diferença entre Retratar e Endossar Opressões em Obras de Ficção (e como identificar cada caso)

É possível escrever personagens machistas em uma história sem endossar o comportamento deles. Entenda.

retratar

Aqui vai uma pergunta capciosa: é possível escrever uma ficção medieval sem que as personagens femininas sofram machismo?

Bem, qualquer fã de Game of Thrones que gosta de falar coisas como “mas naquela época era assim!” vai dizer que não. E eu tendo a concordar com essa pessoa. Claro que tudo vai depender do que se trata a história, mas o contexto já nos prepara para um mundo que não será nem um pouco justo com mulheres.

Mas espera aí, aqui vai outra pergunta: é possível escrever uma ficção medieval sem reproduzir machismo para o público, mesmo que ele seja praticamente um personagem na trama? Ou seja, é possível escrever uma história sem endossar o machismo que ela retrata?

 Ora, ora. Parece que chegamos no cerne da questão, não é?

 

É sutil, e talvez por isso seja tão difícil para algumas pessoas entenderem quando fazemos críticas em relação às diversas formas de machismo e outras opressões que são retratadas diariamente na cultura pop. Afinal, o argumento dessas pessoas faz sentido: se vivemos em um mundo que sistematicamente oprime diversos grupos, como não incluir essas opressões na cultura que produzimos? A arte, afinal, não deveria refletir o que vivemos?

Sem dúvida alguma esse é o caso. E é até desejável que seja, pois a mídia e a cultura pop em geral são ferramentas de comunicação essenciais, que podem trazer à tona discussões muito necessárias para que as opressões sejam identificadas, reconhecidas e combatidas.

A arte precisa refletir a vida, senão não é arte. É comércio. É um tipo filtrado, diluído de arte. O que eu quero ver é a verdade. 

 

Acontece que existe um mundo de diferença entre retratar e endossar opressões. E o problema é que a maioria dos criadores tanto não está atenta para esses dois possíveis resultados, como não está disposta a fazer o que precisa ser feito para que suas produções não caiam nessa armadilha (talvez porque a maior parte deles faz parte de um grupo que não é oprimido).

Por esse motivo, o potencial que a mídia e o entretenimento tem de nos fazer pensar sobre o mundo em que vivemos acaba perdido. Ao invés disso, temos uma infinidade de produções que apenas reproduzem e reforçam a lógica opressora da vida real – endossando-a, portanto, mesmo que essa não seja a intenção de seus criadores.

Nem comédias românticas aparentemente inofensivas escapam.

 

Pois bem, diz você. E como é que eu sei quando estou endossando machismo ao invés de apenas retratá-lo?

Bom, existem muitas formas de retratar um comportamento ou um ideal problemático sem endossá-lo, mas a regra número um é levar a sério aquilo que está sendo retratado. Se o criador não entender tudo o que está por trás de violência contra a mulher, por exemplo, maiores são as chances de ele usar esse tipo de violência em suas histórias apenas para chocar, ou simplesmente como um recurso narrativo. Dessa forma, sem outros elementos na trama que façam com que o público realmente entenda a gravidade e consequências do que foi feito, muito provavelmente aquela produção estará contribuindo para naturalizar ainda mais a violência contra a mulher.

Além disso, existem muitas questões que devem ser levadas em consideração quando pensamos sobre a problemática retratar x endossar. Por exemplo:

  1. O personagem autor do comportamento problemático é o protagonista? Compreensivelmente, o público costuma ser muito mais rápido para julgar negativamente os antagonistas do que os protagonistas.
  2. O comportamento problemático é romantizado de alguma forma? Por exemplo, a história faz com que sintamos empatia pelo herói romântico stalker cujo comportamento nos aterrorizaria na vida real?
  3. O personagem autor do comportamento problemático é carismático? Ele é construído de forma a inspirar a simpatia do público?
  4. A história nos mostra claramente as consequências negativas resultantes do comportamento problemático?
  5. De que ângulo o comportamento problemático é retratado? Temos um amplo entendimento do ponto de vista das vítimas dele?
  6. Os personagens centrais reproduzem mitos nocivos em torno dos comportamentos problemáticos retratados e suas causas?
  7. Faz sentido para a narrativa mostrar um comportamento problemático, ou ele está lá apenas para chocar ou adicionar uma dimensão a um personagem?
  8. A produção em si faz uso de elementos que exploram negativamente grupos oprimidos sem fazer uma crítica ou trazer uma reflexão sobre o próprio comportamento?
retratar Exemplo: o uso de estereótipos e de objetificação feminina.

 

Um dos maiores exemplos de como uma produção pode retratar ou endossar uma opressão dependendo da sua abordagem é a série Game of Thrones e os livros nos quais ela é baseada. Como já foi dito aqui antes, sempre me choca como os produtores da série conseguiram passar por cima da mensagem anti-machista e anti-violência da obra de George R.R. Martin para criar um seriado que muitas vezes reforça uma mensagem contrária à original. Mesmo que essa não seja a intenção.

Mas como pode ser isso, se o mundo retratado nos livros é tão ruim para mulheres quanto o mundo retratado na série? Ora: retratar x endossar. Martin criou um mundo ultra violento, machista e misógino, mas tomou o cuidado de mostrar exatamente como esse machismo afeta os personagens, e de dar voz e amplo espaço às suas vítimas. Enquanto na série a violência é usada principalmente para chocar, nos livros o texto nunca nos deixa esquecê-la e sempre traz elementos que o ajuda a condenar e criticar o que foi retratado. Infelizmente, Dan Weiss e David Benioff não se atentam para isso na série, o que faz com que ela muitas vezes acabe endossando o machismo que apresenta para o público.  

Dica: leia os livros.

 

Claro, é importante notar que a reação do público e como ele vai absorver e interpretar determinada informação pode variar, mesmo que todos os cuidados sejam tomados. Mesmo assim, é importantíssimo que tanto os criadores, como o público saibam reconhecer quando uma produção está retratando ou endossando uma opressão. Entender essa diferença é essencial para que possamos ter uma mídia capaz de provocar mudanças positivas na sociedade, ao invés de apenas reproduzir e reforçar o que já estamos cansados de viver na vida real.