Alias Grace, The Sinner e a Comoção Diante de Mulheres Assassinas

Por que assassinatos cometidos por mulheres provocam tanto espanto e perplexidade?

Protagonista de Alias Grace sentada em sua cela.

Contém spoilers de Alias Grace. Não contém spoilers de The Sinner.

No comecinho de 2018, Nahir Galarza confessou ter assassinado o namorado com a arma do pai policial. Horas depois do crime, com o corpo do rapaz abandonado ao lado de uma estrada com dois tiros no peito, a jovem de dezenove anos deixou a ele uma mensagem romântica em seu Instagram: Cinco anos juntos, brigando, indo e vindo, mas sempre com o mesmo amor. Te amo para sempre, meu anjo”.

O caso aconteceu na Argentina e provocou comoção em todo o país. Como frequentemente acontece quando uma mulher é autora de um assassinato, a mídia entrou em polvorosa. E o show midiático pode ainda se prolongar por muito tempo, dado que a justiça do país exige mais do que uma confissão para condenar.

Com o caso ainda em aberto, a defesa de Galarza está trabalhando a todo vapor. A própria Nahir mudou o testemunho algumas vezes, enquanto seu pai conta que o rapaz era abusivo fisicamente com a filha, que já havia aparecido em casa bastante machucada. Por outro lado, a família de Fernando Pastorizzo, o jovem assassinado, afirma que a garota era abusiva, e que ela e uma amiga agrediram o jovem no domingo anterior ao crime.

Seja como for, todo o caso Nahir Galarza me chamou muito a atenção, pois assisti recentemente duas séries cuja premissa é justamente a investigação de assassinatos cometidos por mulheres: Alias Grace e The Sinner (ambas na Netflix).

Imagem de Alias Grace e The Sinner, lado a lado.

Num clássico caso de “a arte imita a vida” (ou seria o contrário?), é possível traçar alguns paralelos entre ambas as séries e o crime na Argentina. Assim como no caso Galarza, a ideia de que as suspeitas foram vítimas de abusos e violência de gênero também é amplamente explorada em Alias Grace e The Sinner. Além disso, apesar de circunstâncias e épocas diferentes, todos os três casos causaram grande comoção no público de seus respectivos cenários. Para mim, ficou a pergunta: por que assassinas mulheres provocam tamanho espanto e perplexidade?

Talvez o melhor veículo para tentar responder essa pergunta seja Alias Grace. Baseado no livro de mesmo nome escrito por Margaret Atwood (a mesma que escreveu O Conto da Aia – ou The Handmaid’s Tale, no original), a série levanta uma série de questões intrigantes sobre assassinas mulheres. Em um momento muito relevante da produção, Grace reflete:

“A razão para quererem me ver é que sou uma célebre assassina. Ou pelo menos foi o que escreveram. Quando li isso pela primeira vez, fiquei surpresa, porque costumam dizer Cantor Célebre, Poeta Célebre, Espiritualista Célebre e Atriz Célebre, mas o que existe de célebre em assassinato? De qualquer modo, Assassina é uma palavra forte para estar associada à sua pessoa. Tem um odor característico, essa palavra, almiscarado e sufocante, como flores mortas em um vaso. Às vezes, à noite, eu a sussurro para mim mesma: Assassina. Assassina. Ela produz um som farfalhante, como uma saia de tafetá pelo assoalho. Assassino é meramente brutal. É como um martelo ou um pedaço de metal. Eu prefiro ser uma assassina a ser um assassino, se essas forem as únicas escolhas.”

Fazer o leitor refletir sobre isso foi certamente a intenção de Atwood, uma escritora famosa por cuidadosamente tecer questões de gênero em suas narrativas. Não à toa, a autora escolheu um caso verídico (e muito célebre) do Canadá do século XIX para desenvolver a sua história.

Sim, Grace Marks, a protagonista de Alias Grace, foi uma pessoa real. E grande parte dos acontecimentos de sua vida aconteceu como vemos na série. No dia 30 de julho de 1843, a governanta Nancy Montgomery foi estrangulada e morta com uma machadada na cabeça. Algumas horas mais tarde, o proprietário da residência, Thomas Kinnear, foi morto com um tiro no peito ao chegar em casa. Grace Marks e James McDermott, ambos empregados na casa de Kinnear, foram presos no dia seguinte. Ele foi executado pelo crime. Ela não.

Ilustração real de Grace Marks e James McDermott

Por quê? Bem, o que a história conta é que o advogado de defesa, Kenneth McKenzie, pediu que eles fossem julgados separadamente e usou as discrepâncias nos testemunhos para dizer que McDermott obrigou Grace a ajudá-lo. Após um julgamento amplamente noticiado, ambos foram condenados à forca, mas o júri pediu clemência à Grace. Ao fim de trinta anos, ela foi libertada.

De acordo com a historiadora Ashley Banbury, gênero, raça e classe tiveram um papel fundamental na diferença de tratamento dado a Marks e McDermott. Ela conta que os tribunais canadenses do século XIX estavam muito preocupados em se mostrar civilizados e eram fortemente influenciados pelo quanto os acusados se encaixavam em ideais da época de masculinidade e feminilidade.

A mulher ideal, no caso, seria sensível, agradável, educada, passiva, submissa. Já o homem ideal seria hetero, respeitável, integrado na comunidade, bom trabalhador e, acima de tudo, protetor das mulheres. Das mulheres ideais, isto é. As que falhavam em se encaixar nas caixinhas de gênero abriam mão do direito de serem protegidas, e as criminosas eram severamente punidas, pois não só teriam cometido um crime contra a sociedade, como também contra a sua própria natureza.

Com isso, muito dependia do quanto uma mulher ou um homem em julgamento conseguia convencer o júri de que aderiam a ideais de gênero, pois isso sinalizava que eles compartilhavam dos mesmos valores e, portanto, eram confiáveis. O que Banbury argumenta é que Grace foi bem-sucedida em sua performance de gênero e conseguiu convencer o júri não só de que fora vítima de McDermott, como de que deveria ser protegida. A solução foi livrá-la da forca, pois como os membros do júri – todos homens “ideais” – poderiam se negar a protegê-la?

De acordo com Banbury:

“Há muitas provas que sugerem que Marks foi vista como dentro do padrão ideal de feminilidade colonial. (…) Mesmo sessenta e cinco anos depois do julgamento, um vizinho da propriedade Kinnear na época do assassinato escreveu um artigo de jornal descrevendo o terrível evento. W.M Harris escreveu que Marks era disposta e possuía maneiras agradáveis. De acordo com as transcrições do julgamento, o vizinho de Kinnear, John Wilkie, descreveu Marks como uma garota decente e respeitável. James Newton, outro vizinho chamado como testemunha, confirmou o bom comportamento de Marks e afirmou que nunca ouviu Kinnear reclamar dela. As vestimentas, atitude e beleza de Grace Marks foram todas gravadas como objeto de inquérito nas transcrições. (…) Vizinhos como Harris concluíram que por causa de seu caráter irrepreensível, natureza maleável e boas maneiras era impossível que ela fosse uma assassina.(…)”

Já McDermott não teve sucesso em sua performance de gênero, em parte por causa da boa impressão causada por Grace Marks. Sua defesa consistia em dizer que foi ela quem concebeu os assassinatos e o convenceu de participar, o que parecia ao público cada vez mais improvável a cada novo detalhe do comportamento irrepreensível de Grace. Aliás, quanto mais McDermott a atacava, mais o júri desconfiava de sua aderência a ideais clássicos de masculinidade. Pois que tipo de homem atacaria dessa forma, ou colocaria em perigo uma mulher como Grace Marks?

Além disso, McDermott também foi prejudicado pelo fato de ser visivelmente estrangeiro – algo que foi neutralizado no caso de Grace por causa de sua conduta (ambos eram imigrantes irlandeses). Ainda segundo Banbury:

“Ramos argumenta que os júris relutavam em condenar um homem que possuísse as qualidades da ‘verdadeira masculinidade’. Mas se o acusado era considerado estrangeiro, recém-imigrado, ou sem laços com a comunidade, ele era identificado como um ‘estranho estrangeiro’ e, portanto, não confiável e mais provável de ser condenado. A recém imigração de McDermott, também da Irlanda, combinada com sua compleição morena explicitamente anotada nas transcrições do julgamento, o marcaram como o ‘estranho estrangeiro’. (…) Com esses julgamentos do caráter de McDermott, Marks pôde se apresentar como uma mulher ideal que foi vítima das intenções violentas e estrangeiras de McDermott.”

Até hoje não se sabe a extensão da culpa de Grace Marks e James McDermott nos assassinatos de Montgomery e Kinnear. A série e o livro no qual ela é baseada também deixam a questão em aberto, ao mesmo tempo em que trazem o histórico de abuso e violência sofrido por Grace ao longo de sua vida – algo que poderia explicar (mas não justificar) seus atos até certo ponto, caso ela de fato tenha sido uma assassina. Independente disso, no entanto, é interessante notar como os mesmos ideais de gênero que influenciaram o seu julgamento ainda nos influenciam atualmente.

O que nos leva aos dias de hoje.

Imagem da protagonista de The Sinner na prisão.

Em The Sinner temos uma história totalmente diferente de Alias Grace, mas com paralelos interessantes. A plot gira em torno de uma mulher, Cora, que em um belo dia com sua família no lago, aparentemente surta e mata um homem a facadas. Ela não sabe explicar por que fez isso e a série segue com um investigador tentando desvendar o seu passado para entender o que aconteceu.

O caso de Cora gera comoção na cidade. Assassinatos sempre geram espanto, independente do autor, mas o espanto causado por assassinas permanece mais intenso e mais complexo. As reações que se seguem a ele também são mais variadas. Vale resgatar mais um trecho de Alias Grace sobre isso:

“Penso em tudo o que foi escrito a meu respeito – que sou um demônio desumano, uma vítima inocente de um canalha, forçada contra a minha vontade e com a própria vida em risco, que eu era ignorante demais para saber como agir e que me enforcar seria um crime judiciário, que eu gosto de animais, que sou muito bonita, com uma pele radiante, que tenho olhos azuis, que tenho olhos verdes, que meus cabelos são ruivos e também que são castanhos, que sou alta e também de estatura mediana, que me visto com propriedade e decência, que para isso roubei uma mulher morta, que sou ligeira e esperta em meu trabalho, que tenho má índole e um temperamento genioso, que tenho a aparência de uma pessoa acima da minha humilde condição social, que sou uma pessoa dócil, de natureza afável, de quem nunca ninguém se queixou, que sou astuta e insidiosa, que sou fraca da cabeça, quase uma retardada. E eu me pergunto: como posso ser todas essas coisas distintas ao mesmo tempo?”

Cora é hostilizada pelos habitantes de sua cidade, mas também desperta a curiosidade e simpatia do investigador. Confusa, ela chora praticamente vinte e quatro horas por dia pela tragédia que não consegue explicar. É relevante perguntar: se não se mostrasse tão vulnerável, confusa e complacente, será que o empenho do investigador para buscar a verdade seria o mesmo? Quanto de suas motivações podem ser explicadas por um desejo de proteger Cora, influenciado pelos clássicos ideais do Homem e da Mulher Ideal?

Cora algemada enquanto o investigador a conduz.Clássico: um homem em posição de poder e uma mulher que precisa ser protegida. 

 

Para além do comportamento pontual de suspeitas de assassinato – fictícias ou não – me interessa muito pensar em como a própria ideia patriarcal de natureza feminina influencia o nosso olhar sobre elas. É como Grace diz em Alias Grace: as próprias palavras “assassina” e “assassino” suscitam sentimentos diferentes. A comoção íntima é certa quando ouvimos falar de um assassinato cometido por uma mulher, esteja o caso escancarado na mídia ou não.

O motivo para isso me parece ser que mulheres assassinas contrariam tudo que a concepção machista do que é ser uma mulher nos ensinou.

Passividade, submissão, docilidade, fragilidade, sensibilidade são algumas das características clássicas atribuídas à mulheres que são destruídas quando nos confrontamos com atos violentos cometidos por elas. Mas mais do que isso está a própria ideia de autonomia e poder que um assassinato implica. Tirando os casos de legítima defesa, assassinos são os autores de um crime, e é a própria ideia de uma mulher como autora de algo – especialmente de algo tão gigantesco como tirar a vida de alguém – que causa estranheza.

Isso nos parece estranho não só porque na prática somos aquelas que trazem vidas ao mundo – embora isso com certeza também seja muito relevante -, mas também porque a sociedade patriarcal não vê a mulher como sujeito. Para ela, o sujeito é o homem – é ele quem age, quem faz e acontece. Já a mulher apenas reage, ou age apenas em relação a ele, no sentido de servi-lo. É a mesma lógica por trás da objetificação feminina na mídia. A Mulher Ideal é a mulher objeto, a serviço do olhar masculino.

Publicidade que mostra quatro mulheres dentro de uma máquina de venda, com um rapaz escolhendo qual deseja.Exemplo didático. 

 

Já quando um homem assassina, o espanto não chega a ser tão grande, tanto porque ele já é visto como sujeito pela sociedade, como porque violência e poder são características que são associadas à masculinidade clássica. A mídia, aliás, é muito boa em reforçar essa relação. De acordo com Jackson Katz, educador anti-sexista:

“O que a mídia faz é ajudar a construir masculinidade violenta como norma cultural. Ou seja, violência não é vista como desvio, mas como uma parte aceita da masculinidade. Temos que começar a examinar esse sistema, e a oferecer alternativas, porque uma das principais consequências disso tudo é que tem havido uma conexão crescente em nossa sociedade entre ‘ser homem’ e ‘ser violento’.”

Vale notar que essas expectativas de gênero influenciam o nosso comportamento e tem muita relevância na vida real. Não por acaso homens são 95% dos autores de homicídios no mundo. Como eu já disse antes, o ideal atual de masculinidade produz homens que agridem mulheres, e homens que agridem homens. Uma coisa puxa a outra e talvez por isso não sintamos choque quando descobrimos que o autor de um assassinato é um homem. Pouco nos prepara, no entanto, para assassinas mulheres.

Para finalizar, é importante lembrar como expectativas em relação a raça e classe também podem obscurecer o nosso julgamento. Vivendo em uma sociedade que é estruturalmente racista, é válido se perguntar, por exemplo, se o caso da garota argentina Nahir Galarza causaria tanta comoção se ela não fosse branca, de classe média e não tivesse essa aparência:

Nahir Galarza é branca, magra, bem vestida, loira, com longos cabelos lisos.

Em suma, os ideais vigentes aos quais aderimos limitam o nosso entendimento e muitas vezes não dão conta de abarcar a complexidade do ser humano, homem ou mulher. Somos todos muito mais complexos do que os papéis que nos são atribuídos.  


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