Somos escravos gourmetizados: o trabalho e o consumismo nos aprisionam

Vivemos no piloto automático e nos deixamos levar pela ilusão do “ter” e do “ser” que o trabalho e o consumismo alimentam.

consumismo

“Posso recolher o prato, senhora?” – o garçom me interpelou no restaurante com o olhar afoito enquanto eu apreciava a sobremesa, demonstrando pressa em continuar o seu trabalho. Respondi que sim, com agonia pelo desespero dele. Restaurante lotado, dezenas de pessoas ansiosas para pesar os seus pratos e pelo menos três funcionários me oferecendo uma bebida a cada cinco minutos. De tão insistentes, às vezes acabo pedindo um refrigerante ou suco. Fico imaginando o quão penoso deve ser trabalhar num lugar lotado, com uniformes desconfortáveis e sob pressão. Um ambiente análogo à escravidão.

Refleti por um tempo e cheguei à conclusão de que, exceto para algumas atividades específicas, o nosso sistema de trabalho e a sociedade em geral não diferem muito da escravidão. Uma escravidão moderna, maquiada, com algum conforto (apelidado pelas empresas de benefícios) e algemas quase invisíveis. Mas bem presentes no nosso dia-a-dia.

Temos tecnologia pra tudo – se antes produzíamos um sapato em três dias, hoje o tempo gasto é de apenas duas horas. Se enviávamos fax e carta como correspondência de trabalho, hoje temos o e-mail, o aplicativo de mensagens instantâneas e a possibilidade de fazer videoconferências. Mas trabalhamos um terço do nosso dia. E seria lindo se tivéssemos metade do tempo livre (fora da empresa) pra descansar e fazer o que a gente gosta. Uma boa parte dessas horas, no entanto, é perdida no trânsito. É a conta de chegar em casa, preparar algum prato rápido, assistir meia hora de qualquer programa idiota na TV e irmos dormir, exaustos, para repetir tudo no dia seguinte. Sobram apenas dois dias por semana e alguns feriados – prolongados ou não – para poder relaxar de verdade, fazer uma viagem e dar atenção plena à nossa família.

Vivemos no piloto automático e o tempo todo somos bombardeados por incentivo ao consumo. Prisioneiros, nos deixamos levar pela ilusão do ter, cortesia do consumismo desenfreado. Do luxo e do “alto padrão de vida”. Adquirir coisas e mais coisas se tornou o objetivo principal. Dinheiro é a primeira delas. Ou melhor, MUITO dinheiro. Um iPhone todo ano, um carro novo e moderno, roupas além do que damos conta de vestir, produtos de beleza que irão passar do prazo de validade. Nos apegamos ao “ser” também: ser “bem informado”, acumular títulos e falar pelo menos mais dois idiomas, porque é isso que o mercado exige. Porque se dermos bobeira ficamos desempregados. E Deus nos livre de não termos estabilidade, segurança e um dinheiro certo no fim do mês, não é?

consumismoO consumismo nos consome.

Vivemos de aparências, em uma cultura do status – a essência é deixada de lado. Demora um pouco pra perceber que fomos projetados para ser peças totalmente substituíveis, que tenham conhecimento, mas não sabedoria. Que obedeçam como um animal adestrado e sempre digam amém. Que saibam matemática e raciocínio lógico, mas não questionem a própria vida. E nem esse mundo de interesses puramente capitalistas. Que fomos inseridos (sem sermos perguntados sobre isso) numa corrida dos ratos, e que ela é um círculo vicioso e só traz insatisfação crônica.

Tenho orgulho e uma pontinha de inveja dos “acomodados”, dos “vagabundos”, dos “hippies maconheiros que não querem nada com a vida”. Daqueles que sacaram qual é a da sociedade e colocaram o pé no freio. Que optaram por viver com menos, ou que não desejam mais se matar pra serem bem-sucedidos. Que não ligam mais quando a família os consideram fracassados, mesmo quando os parentes repetem exaustivamente nos almoços que o topo é para poucos, para os melhores, para os bem preparados. Admiro aqueles que não se importam nem um pouquinho com as comparações.

Felizes são aqueles que guiam a própria vida, que determinam o próprio conceito de sucesso. Que desfrutam a vida verdadeiramente enquanto os zumbis apenas passam, tentando devorar o mundo em uma única mordida.

Leia também sobre como a desigualdade social afeta a nossa vida; e sobre os efeitos colaterais bizarros da cultura do status. 
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