A Polícia Inglesa e o Assédio Sexual: O Depoimento de uma Brasileira

O relato de uma brasileira sobre o tratamento dado a vítimas de assédio sexual em Londres. 

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Escrevo esse texto anonimamente por motivos de: mãe. Ela se preocupa constantemente comigo e saber que isso me aconteceu será capaz de causar a ela um ataque cardíaco. Ou uma briga homérica sobre minha vida sexual. Melhor evitar.

Recentemente viajei sozinha pela Europa. E  uma das minhas histórias começou ruim, mas tem final feliz, graças a polícia inglesa. E eu acho muito importante que mulheres brasileiras saibam como o tratamento a vítimas de assédio sexual deveria ser.

Eu fui para Londres e, em uma das noites, saí junto com um Pub Crawl, bebi e me diverti e conheci um cara em um dos Pubs.  Ele era inglês, branco como papel, importante destacar, se chamava George. Ele estava lá com o primo, inglês e branco também. O nome do primo eu não lembro.

Eu e George ficamos e George sugeriu irmos a um hotel. Aceitei sem problemas, estava na Europa para me divertir. O primo de George nos deu uma carona. Me despedi educamente do primo, dizendo “boa noite, prazer em te conhecer, feliz natal, etc”. Destaco também que meu inglês é excelente, não tenho a mínima dificuldade de me fazer entender. Eu e George fomos para o quarto, dormimos juntos (perfomance de George foi decepcionante) e George disse que ia sair para comprar comida. Eu cochilei.

Acordei com o primo de George tocando meu tornozelo.

Estava nua debaixo do cobertor. Uma das luzes estava acesa. Quando meu cérebro se deu conta de que havia algo errado, eu gosto de dizer que ele entrou em “modo estupro”. Eu só gritava. Só. Gritei para ele ir embora, gritei “RAAAAPEEE” (estupro), gritei e gritei. Assustado, o primo fugiu.

Levei uns 10 minutos para parar de tremer. Me vesti e voltei para meu hostel. Já havia amanhecido quando cheguei lá. Ao me verem tão abalada, um dos balconistas, um homem jovem, me perguntou se eu estava bem. E agora que vem a parte importante. Graças ao feminismo, aos textos que me empoderaram ao longo dos anos, eu decidi não ficar calada. Eu era uma vítima e não iria esconder isso.

Contei o que havia acontecido. O balconista não hesitou: “vamos ligar para a polícia”. Mas antes, ele descobriu (apenas pelas descrições que eu dei) em qual hotel isso havia acontecido e, ligando para lá, conseguiu a identidade e o nome completo de George.

Como eu estava muito nervosa e chorando, ele ligou para a polícia para mim. Lembro de ter ouvido algo como “ela é nossa hóspede e precisamos protegê-la” enquanto ele conversava com a polícia. Por fim, ele me passou o telefone: “precisam que você explique o que aconteceu. Você está pronta pra falar?” Comovida com o acolhimento, respondi que sim.

Ao telefone, uma voz feminina. “Você está bem querida? Pode me contar o que aconteceu?”. Enquanto eu fazia meu relato, essa mulher perguntou umas cinco vezes “Mas como você está se sentido?” “mas você está melhor agora?” e disse algumas vezes “sentimos muito que isso te aconteceu.”. Me deram um código e explicaram: “precisamos que você vá até uma delegacia para fazer seu relato. Leve esse código com você.” Eu já estava de passagem marcada para o interior da Inglaterra para aquela manhã e voltaria no final do dia. Não queria que aquele acontecimento estragasse minha linda viagem, e resolvi ir na polícia depois que voltasse para Londres.

Quando cheguei na delegacia mais próxima ao meu hostel, eram 17h30. Na recepção, um senhor branco, por volta de seus 50 anos. “Pronto” pensei. “Lá vem o slut-shamming do século.” E foi assim que conheci o Officer Williams, um senhor adorável, de coração puro e bom.

Expliquei o ocorrido e ele me disse: “Essa delegacia fecha às 18h e eu não vou poder te atender, porque seu relato completo vai precisar de no mínimo uma hora. Você pode ir em uma delegacia 24 horas ou podemos conversar amanhã, o que for melhor para você”. Mas havia outra coisa me preocupando, e perguntei a ele: “você acha mesmo que devo fazer esse relato? Em alguns dias irei para a Alemanha e não estarei aqui para dar seguimento à ação policial”. Officer Williams me olhou profundamente e disse “acho que você deve fazer esse relato sim, a polícia precisa estar ciente de acontecimentos como esse.” Gostei tanto da firmeza das palavras desse homem, que resolvi deixar para o dia seguinte, só para fazer o relato com ele.

Voltei na tarde seguinte e conversamos por quase duas horas. Em nenhum momento ele me perguntou sobre minha roupa, se bebi. Mas ele fez muitas perguntas sobre os suspeitos, o carro dos suspeitos, a idade dos suspeitos. Tudo sobre os agressores e nada sobre mim. Ao final, eu já estava contando como a polícia brasileira trata as vítimas de abuso sexual e violência doméstica e ele ouvia, chocado. Me explicou que foi escolhido para aquela função de receber relatos de vítimas justamente por ter índole acolhedora e jamais fazer julgamentos iniciais. Que recebeu treinamento psicológico para ajudar as vítimas a não se inibirem e falarem abertamente sobre as violências que sofreram. No final, já estávamos conversando animadamente de como ele passaria o natal com a esposa.

Nunca esquecerei do Officer Williams nem do acolhimento que recebi dele. Ele me avisou o seguinte ao final: “não posso te dizer o que acontecerá em seguida, pois não farei a investigação. Isso será passado para outro departamento. Como você não se machucou, vou ser sincero. Talvez chamem esses rapazes para vir à delegacia, mas só para uma conversa, difícil que sejam realmente indiciados.” Então ele riu: “Mas o susto que vão tomar, há!”

Eu ri também. Percebi que já estava me sentindo muito melhor. O acontecido já não me abalava tanto após falar dele, e principalmente, o acolhimento que recebi do hostel e da polícia aliviavam meu fardo. Ninguém me culpou, então eu não me culpei também. Recebi inclusive um Victim Care Card (que traduz livremente para Cartão de Cuidado à Vítima). Podem ver pelas fotos – tem número para contato, guia e, ao final: “Te trataremos com dignidade e respeito”.

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Na véspera de natal, uma semana depois, eu já estava na Alemanha, rindo com minhas amigas. Meu telefone tocou e, quando atendi, uma voz feminina se identificou como do Centro de Atendimento às Vítimas. Ela queria saber se eu estava bem nessa véspera de Natal, e me perguntou como eu passaria as festas.

Creio que meu caso tenha sido arquivado, já que não me procuraram para identificar os suspeitos. Mas fui tão bem acolhida, como um ser humano precisa ser em momento de vulnerabilidade, que mal me importo. Graças ao hostel e à polícia, em vez de ter uma história sobre abuso manchando minha viagem, eu tenho uma história sobre humanidade, carinho e respeito ao próximo.

*Relato recebido por e-mail de uma leitora do Nó de Oito, postado com a sua autorização.

*Para ter uma ideia de como muitas vítimas de violência sexual e doméstica são tratadas aqui no Brasil, confira o relato de Clara Averbuck, do Lugar de Mulher.

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