Cara Gente Branca – Entendendo o Racismo do Século XXI
Poucas produções falam sobre racismo na atualidade de forma tão rica, didática e explícita.
*Não contém spoilers.
Em 2017 a Netflix lançou Cara Gente Branca, uma das séries que eu estava mais ansiosa para ver. Baseada no filme de mesmo nome de 2014, a série traz dez episódios que contam a história de um grupo de estudantes negros em uma universidade predominantemente branca nos EUA.
Inteligente, lúcida e certeira, Cara Gente Branca não decepcionou. Apesar do boicote que alguns brancos tentaram engatar sob o fantasioso argumento “racismo reverso”, a série foi bastante elogiada e conseguiu inclusive um feito dificílimo: uma avaliação de 100% no Rotten Tomatoes. Aqui no Brasil a crítica também foi boa, com muitos textos que falam sobre a importância das questões abordadas – muitas delas discutidas há décadas pelo movimento negro, mas ignoradas pela população branca.
São muitos os méritos de Cara Gente Branca e as reflexões que a série pode inspirar (lá embaixo indico alguns outros textos importantes que podem ajudar nessas reflexões), mas nesse texto eu queria falar de um em especial: a maneira direta e atual que ela usa para falar sobre o racismo no século XXI.
Winchester, a rica universidade fictícia onde se passa a história, está localizada bem aqui na linha do tempo, exatamente onde estamos. O seu corpo discente e todas as situações de racismo que os seus alunos negros enfrentam também. Sob a lente certeira desses alunos e de um narrador que não só narra, mas também se posiciona, somos apresentados sem delongas ao racismo do século XXI: proibido no papel, mas dolorosamente presente e estrutural.
Pare para pensar um pouco na raridade que é Cara Gente Branca, uma produção com distribuição mais ampla que fala sobre racismo como ele se manifesta hoje em dia e do ponto de vista de quem o sofre, sem meias palavras ou papas na língua.
Diferente de outras produções que parecem ser sobre uma pessoa negra, mas na verdade são sobre o branco que a salva no final.
Embora não seja exatamente uma raridade ver seriados falando sobre racismo, normalmente essa discussão é apresentada em episódios específicos (episódios que mais tarde você identifica como Aquele que Fala sobre Racismo), e nem sempre a questão é abordada de forma explícita ou sensível.
Já o cinema deixa mais ainda a desejar, pois as produções que trazem o tema, além de escassas, costumam ser leituras ou retrospectivas históricas. Pouquíssimos dos maiores filmes que falaram sobre racismo nos últimos anos (excetuando-se documentários), trouxeram uma discussão sobre a situação atual. A maioria se passa em épocas em que a segregação racial era lei.
Selma: se passa durante o movimento de direitos civis norte-americano. Década de 1960.
12 Anos de Escravidão: como o título já entrega, é uma história da época da escravidão. Século XIX.
O Mordomo da Casa Branca: a história de vida de um homem que viveu a escravidão quando criança e trabalhou como mordomo na Casa Branca ao longo de oito mandatos presidenciais. Décadas de 1950 a 1980.
Django Livre: um ex-escravizado se alia a um alemão caçador de recompensas para libertar sua esposa da escravidão. Século XIX.
Estrelas Além do Tempo: mulheres negras colocam um homem em órbita durante a corrida espacial. Década de 1960.
Loving: o casamento interracial é proibido, mas Richard e Mildred decidem viver seu amor. Década de 1950.
Fences: um jogador de beisebol aposentado, que sonhava em se tornar uma grande estrela do esporte durante sua infância, agora trabalha como coletor de lixo para sobreviver. Década de 1950.
Não me entenda mal. Filmes sobre o passado devem ser feitos, até para entendermos melhor a situação em que estamos. Mas o problema é que quando se trata de racismo, pouquíssimas pessoas (principalmente nós brancos) sequer sabem que situação é essa. E isso vale tanto nos EUA, que supostamente superou o seu sangrento passado de segregação, como no Brasil, que vive em estado de negação constante, sob um persistente mito de democracia racial.
A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil.
Nesse contexto, Cara Gente Branca aparece com uma voadora com os dois pés no peito para mostrar qual é a real. E embora alguns tenham dito que a série traz um microcosmo exclusivíssimo, dado que se passa em uma universidade de elite, fica claro que o cenário apenas reforça o argumento da série de que o racismo continua arraigado no século XXI, dado que mesmo jovens negros ricos e aculturados sofrem com ele.
Sim, mesmo em uma sociedade supostamente “pós-racial”, pessoas negras de todas as classes sociais ainda enfrentam estereotipização, violência policial, invisibilidade, preterimento afetivo, micro-agressões, e mesmo agressões explícitas. Mesmo sem amarras legais que os proíbam de ingressar em uma universidade de elite, eles ainda são subjugados e desumanizados. Mesmo com um (ex) presidente negro e uma Oprah, eles ainda são mortos ou encarcerados em massa.
Racismo pode não ser mais aceitável no papel, mas ainda está impregnado na estrutura, crenças e ideais da sociedade no século XXI. Em suma, a proibição da exclusão não garante a inclusão. A solução não parece fácil ou definitiva, mas um passo na direção certa me parece ser olhar para o agora tanto quanto para o que já aconteceu. Não à toa algumas pessoas brancas se sentiram incomodadíssimas com Cara Gente Branca. O presente, afinal, ainda não superou o seu passado.
Outros textos recomendados sobre a série:
- Cara Gente Branca – Humor Negro e Verdades (Preta, Nerd e Burning Hell)
- Dear White People e o silêncio ensurdecedor da internet (Gabriela Moura, Medium)
- Os temas importantíssimos de Dear White People (Revista Trip)
- Cara Gente Branca: A quebra do mito da inclusão racial (Delirium Nerd)
Leia também 100+ Filmes e Documentários com Protagonismo Negro; e O que Estrelas Além do Tempo pode nos ensinar sobre Privilégio Branco.
lara
February 27, 2019 @ 3:56 pm
qUE ARTIGO EXCELENTE! eU GOSTO MUITO DE COMO ESSA HISTÓRIA SE DESENROLA. indico um filme que assisti ontem, Diga o nome dela: A vida e Morte de Sandra Bland, um dos bons documentários atuais muito impactante, sobre um caso que em que uma ativista morreu e que contribuiu em muito para o movimento Black Lives Matter. Acho fundamental para repensarmos sobre a nossa sociedade. Super recomendo.