Por que Brinquedos são Segmentados por Gênero (mas não deveriam)?

Estamos em 2015, mas as marcas de brinquedos seguem estereótipos de gênero da década de 1950. Entenda por quê.

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Outro dia tive uma experiência perturbadora. Enquanto procurava a seção de utensílios de cozinha, me perdi brevemente dentro de uma loja de departamento qualquer. Temendo danos cerebrais permanentes caso ficasse por muito mais tempo ouvindo a seleção musical especialmente abominável escolhida pela gerência da loja, tratei logo de me orientar e tentar identificar a saída. Mal sabia eu que o pior dessa situação ainda estava por vir. Pois enquanto andava a esmo pelos corredores, sem querer adentrei a seção dos brinquedos “de menina”.

Por um momento achei que estava sendo acometida por algum tipo muito específico de daltonismo. Estava tudo rosa. Parecia que alguém tinha baixado um filtro de Instagram concebido pela própria Barbie no local. Aturdida, me aproximei das prateleiras para observar os brinquedos. E para o meu horror, me deparei com coisas assim:

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Mini fogõezinhos. Mini vassourinhas. Mini kitzinhos de maquiagem e produtos de beleza. Ah sim, tinha também alguns brinquedos que saíam um pouco dessa linha, como patins, bicicletas, e até alguns carrinhos. Mas mesmo nesses casos eram todos rosa. Vacilante, porém intrigada, prossegui até o corredor que abrigava os brinquedos “de menino”. Para a surpresa de absolutamente ninguém, eu não encontrei versões masculinas (oi?) de mini-fogões e mini-aspiradores de pó. Ao invés disso, encontrei coisas assim:

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Agora, embora eu ache que não tem nada de errado em incentivar uma criança a aprender a cozinhar, a consertar coisas, ou a limpar a casa, não dá para ignorar o fato de que a indústria de brinquedos infantis pirou completamente o cabeção nos estereótipos de gênero. Pesquisando mais sobre o assunto, descobri oficialmente o que ficou claro para mim naquele dia fatídico: apesar de o mundo estar fazendo avanços sem precedentes rumo à igualdade entre homens e mulheres, a segregação de gênero no mundo dos brinquedos nunca foi tão intensa como é hoje.

Quem é especialista no assunto diz que foi a partir dos anos 1980 que os brinquedos infantis se especificaram de maneira exacerbada de acordo com estereótipos de gênero restritos e antiquados. Até 1920/30, a distinção entre brinquedos “de menina” e “de menino” era leve e até as cores eram fluidas. Durante muito tempo, por exemplo, o azul foi considerado cor de menina, por ser a cor do manto da Nossa Senhora. Mais tarde, o rosa foi considerado cor de menino, por ser mais forte. Houve até uma época em que coisas azuis eram presenteadas a bebês de olhos claros, enquanto coisas rosas eram tipicamente dadas a crianças de olhos castanhos. Foi só entre 1920 e 1950 que a noção atual de “rosa para meninas” e “azul para meninos” foi reforçada pelo marketing das lojas.

Foi a partir dessa época que a segregação de gênero nos brinquedos começou a se intensificar, com uma breve parada nas décadas de 1960 e 1970, quando a segunda onda feminista gerou um repúdio generalizado a brinquedos “de menina” e “de menino”. O feminismo da época, no entanto, não foi páreo para o que viria na década de 1980.

Em primeiro lugar, houve a popularização do ultrassom. Sabendo o sexo da criança antes do seu nascimento, pela primeira vez os pais tiveram a oportunidade de comprar o enxoval de acordo com essa distinção – fato que não passou batido pela indústria dos brinquedos e produtos infantis. Além disso, mudanças nas leis que limitavam a publicidade direcionada a crianças nos EUA somadas à adesão das massas à TV por assinatura (que permitiu uma segmentação de públicos nunca antes experimentada pela mídia) fizeram com que o marketing descobrisse de repente todo um grupo demográfico altamente lucrativo que foi ignorado durante décadas.

brinquedosO grande triunfo da publicidade: saber o quê os seus filhos assistem na televisão e quando.

 

E foi com a descoberta dessa mina de ouro que a segmentação de brinquedos por gênero decolou a níveis nunca antes vistos.

A verdade é que é muito mais lucrativo para a indústria de brinquedos segmentar intensamente os seus produtos. Uma das vantagens dessa segmentação é o fato de os produtos não serem mais intercambiáveis. Isto é, você não vai mais querer passar a bicicleta da sua filha mais velha para o seu filho mais novo, porque ela é rosa e tem pompons com glitter no guidão. Isso quer dizer que você terá que comprar uma bicicleta nova.

Outra vantagem é que é possível agrupar os consumidores em grupos e direcionar produtos teoricamente específicos a eles. Chamada segmentação de mercado, essa técnica de marketing define as preferências de compra de todo um grupo demográfico. Dizendo “esse é um brinquedo de menino”, a indústria faz com que o grupo demográfico “meninos” tenha interesse e queira comprar esse brinquedo.

A separação de corredores de brinquedos por gênero nas lojas também contribui fortemente para a divisão desses grupos. Sabendo em qual corredor os meninos estarão em uma loja de brinquedos, as marcas podem colocar ali outros brinquedos que elas também querem que os meninos comprem, e assim por diante. Em suma, quanto mais intensa a divisão entre meninos e meninas, mais certeira a venda, pois as marcas sempre sabem o que vender e onde estão os seus consumidores.

“Tá. Mas quem compra os brinquedos são os pais, não as crianças. É só os pais procurarem e comprarem brinquedos neutros e variados para os filhos e pronto”. – alguém aí vai dizer.

Hum, é. Isso é verdade. Em parte. É verdade que são os pais, no fim das contas, que decidem o que comprar. Mas não é verdade que comprar somente brinquedos variados para as crianças tirará de suas cabecinhas todos os estereótipos de gênero que as marcas jogam em cima delas todos os dias.

O problema é que o mundo infantil é regido por regras sociais extremamente rígidas. Psicólogos explicam que com apenas três anos de idade, as crianças já entendem o que é gênero e em qual grupo elas se encaixam – o das meninas, ou o dos meninos. No seu entendimento, no entanto, essa identidade é muito importante, mas não é permanente. Ou seja, uma menina pode ficar realmente ansiosa ao ter seu cabelo cortado curtinho, pois cabelo curto é “coisa de menino”. Da mesma forma, se um menino aparecer na escola com um caderno cor-de-rosa, os coleguinhas provavelmente tirarão sarro, chamando-o de menina. Por isso, em um movimento de auto-socialização, as crianças fazem todo o possível para se encaixar nos estereótipos de gênero que aprendem, como uma forma de preservação de identidade.

Veja esse caso, por exemplo, relatado ao jornal The Guardian:

“Em Durham, Reino Unido, a filha de seis anos de idade de Tricia Lowther, Marianne, amou o filme “Carros”, da Pixar, quando o assistiu. Um dia, quando estava no supermercado, Lowther teve que escolher entre caixinhas de suco estampadas com princesas da Disney ou com os personagens de Carros. “Eu comprei o de ‘Carros’, certa de que minha filha gostaria”. Ao invés disso, ela escondeu as caixinhas de suco. Quando Lowther perguntou qual era o problema, a resposta foi “É de menino”. Eu disse: “Mas você gosta de Carros, não gosta?”. E ela respondeu: “Gosto, mas não quero que ninguém fique sabendo'”.

Meninos também sofrem com essas distinções. Porque em nossa sociedade machista ser como uma menina é tido como algo ruim (fazer coisas “como uma menina” é até xingamento), meninos que gostam de “coisas de menina” são vistos com desconfiança e escárnio. Por esse motivo, meninos ativamente buscam e pedem brinquedos “masculinos”, muito mais do que meninas pedem brinquedos “femininos” para seus pais. Essa assimetria já foi documentada em vários estudos e a explicação é sempre a mesma: o estigma  de serem identificados como meninas faz com que os meninos evitem ao máximo qualquer coisa que os aproximem desse gênero.

E nisso reside um grande problema. As crianças assimilam boa parte do que a indústria de brinquedos diz a elas sobre o que significa ser menino e menina. E o que a indústria diz é que meninos são fortes, inventivos e violentos, enquanto meninas são belas e ótimas donas de casa.

Ou seja, sem querer querendo as marcas de brinquedos reforçam estereótipos (e às vezes até os criam), e isso acarreta consequências a longo prazo. Brinquedos, afinal, têm papel formativo na educação das crianças e, querendo ou não, acabam influenciando interesses e gostos. Quando uma menina passa a infância inteira ouvindo que construir coisas é “coisa de menino” e que o seu maior valor na vida é ser bonita, não é absurdo pensar que isso pode influenciar consideravelmente os seus gostos e ambições quando adulta.

“Ah, mas isso tudo é biológico. Meninas naturalmente gostam mais de brincar de bonecas e meninos de carrinho!” – alguém aí está dizendo.

Ah, o argumento “biológico”. Não posso acabar esse texto sem falar dele. Sim, é verdade que meninos e meninas são diferentes biologicamente. Mas não existe nenhum estudo conclusivo sobre como o gênero define o gosto das crianças por seus brinquedos. O máximo que os estudos descobriram foi que é mais provável que meninos brinquem com uma boneca de forma diferente de como meninas brincariam, por exemplo. Nada foi provado, no entanto, sobre se eles gostariam menos de bonecas do que elas.

E mesmo se o fator biológico fosse conclusivo, não parece que a indústria de brinquedos liga muito para isso. Um estudo, por exemplo, diz que meninas tendem a gostar mais de movimentos biológicos, enquanto meninos gostam mais de movimentos mecânicos. Isso explicaria o gosto delas por bonecas e ursinhos de pelúcia, por exemplo, e deles por carrinhos e caminhãozinhos. Mas sabe quais foram os brinquedos que ganharam o prêmio de Brinquedo do Ano da indústria em 2015?

 

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Pois é. Na categoria de brinquedos de menino, ganhou um dinossauro – um brinquedo que remete ao biológico. Já na categoria de meninas, ganhou a esteira de compras bizarra, um brinquedo que remete ao mecânico.

Então, por mais que você acredite e defenda a segmentação dos brinquedos do seu filho com base em estereótipos de gênero da década de 1950, não fique achando que a indústria está ao seu lado. A indústria está do lado do que dá mais dinheiro. Nossa melhor chance é apostar em conscientização e em campanhas contra essa divisão intensa de gênero, como a Let Toys be Toys, que em menos de um ano conseguiu convencer doze grandes lojas no Reino Unido a remover as sinalizações de “Para meninos” e “Para meninas” de suas prateleiras de brinquedos. A esperança é que em um futuro muito próximo as marcas comecem a segmentar seus brinquedos por interesses, ao invés de gênero.


FontesThe Guardian, Boston Globe, Cracked, Slate, Parenting Science, Let Toys be Toys

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