O que vale mais: o boicote ou a boca no trombone?
Pensar criticamente e promover mudanças positivas naquilo que a gente ama: não é esse o caminho para um entretenimento de melhor qualidade?
Uma onda recente de chamadas para o boicote de filmes, séries, novelas, perfumes (!) que de alguma forma ofendem um determinado grupo de pessoas vem tomando proporções cada vez maiores na internet. Grande parte dos boicotes que pulularam na rede esse ano foram incentivados por grupos que não sabem viver nesse mundo sem vomitar intolerância sempre que têm a oportunidade. Tivemos, por exemplo, o caso do Boticário, em que grupos no Facebook pediam o boicote à marca por causa de sua campanha de Dia dos Namorados, que incluía casais homoafetivos; tivemos o boicote promovido pela “família tradicional brasileira” ao se deparar com duas senhoras lésbicas se beijando amavelmente na novela Babilônia; e tivemos o grupo Men’s Rights Activists (algo como “ativistas pelos direitos do homem”) pedindo o boicote do filme Mad Max: Estrada da Fúria por ser feminista demais para um filme de “homem”.
Eu sei, é hilário!
Mas houve uma discussão sobre boicote que realmente me interessou de forma séria: o boicote a Game of Thrones devido a inclusão constante de violência contra a mulher (particularmente através do estupro), que tomou grandes proporções após certo episódio dessa última temporada.
Em 17/05, o que parecia mais um episódio em uma temporada meio parada logo se tornou o assunto da internet. A origem de tal mal-estar foi uma cena em que a personagem Sansa é estuprada por seu novo marido, enquanto seu irmão de criação é obrigado a assistir. Na ocasião, aquilo realmente pesou para mim e pensei que deveria seguir o conselho do Joey, de Friends, e colocar a série no freezer por um tempo. Após algumas semanas longe dela, no entanto, não resisti e voltei a assisti-la todo domingo.
Inicialmente, eu me senti meio mal com isso. Afinal, não só eu não estava gostando nada de como a série estava tratando e distorcendo suas personagens femininas, como todo mundo que eu prezo na internet estava me dizendo que eu deveria participar do seu boicote. Mas depois de um tempo, parei para pensar melhor e não pude deixar de me perguntar: será que o boicote é mesmo a solução para melhor guiar escritores / produtores / diretores sobre a forma como retratar a violência contra a mulher? Ou sobre qualquer outro assunto?
Game of Thrones é hoje uma das séries mais assistidas no mundo, sua popularidade é imensa. É verdade que o seu poder de venda tem muito a ver com isso, mas também não é possível lhe tirar o mérito de ser um dos veículos com personagens femininas mais bem desenvolvidos da televisão (mérito dos livros que lhe deram origem). Sim, em alguns momentos a série faz incrível mal uso de suas personagens femininas (a cena na prisão de Dorne onde Tyene Sand pergunta se é a mulher mais linda do mundo para Bronn é péssima!), mas em geral as personagens são complexas, poderosas, bem desenvolvidas e com motivações reais. Quando penso nisso, acho difícil simplesmente boicotar essa série. Em seu lugar, eu que amo TV, devo ver o quê? Two and a half men?
Por favor, não me obriga…
A verdade é que uma vez que os roteiristas decidiram casar a Sansa com o sádico Ramsay Snow (Bolton), não haveria outra alternativa para a personagem senão a violência. Alterar isso implicaria em uma mudança radical para o personagem Ramsay. Não que isso faça com que a decisão dos roteiristas de se afastar tanto da história original dos livros seja aceitável, claro. A revolta contra a série é totalmente justificada – não só porque os roteiristas estão ultrapassando todos os limites ao usar violência contra mulher de forma tão insistente e corriqueira, mas também porque essa cena inevitavelmente influenciará o futuro da personagem Sansa. Não quero de forma alguma que o estupro seja o catalisador para que a personagem se torne uma badass. Estupro e violência não fortalecem ninguém, muito pelo contrário. Fazer a Sansa passar por isso é fazer um desserviço para o desenvolvimento da personagem, que desde a primeira temporada estava em uma trajetória consistente de amadurecimento. Os escritores terão uma árdua tarefa nas próximas temporadas para lidar com o ocorrido e com o desenvolvimento da personagem.
De certa forma, o futuro da Sansa e como a série lidará com o passado é o que me instiga a continuar assistindo. Mas se nós, que temos algo a dizer sobre essas cenas, sairmos do diálogo sobre a série, então onde ficará o senso crítico? Quem vai se pronunciar no futuro? Não é melhor permanecermos e participarmos da discussão? Pensar criticamente e promover mudanças positivas naquilo que a gente ama: não é esse o caminho para um entretenimento de melhor qualidade?
Acredito que sim. E é diferente de permanecer na audiência quando o ofensor/crime contra mulher(es) são possivelmente reais. Isso eu realmente não consigo fazer.
Estou falando desses caras:
Bill Cosby, Roman Polanski e Woody Allen.
Woody Allen e Roman Polanski são dois poderosos escritores e diretores de Hollywood que possuem muitos admiradores dentro e fora da indústria cinematográfica e, juntos, são detentores de 5 Oscars. O primeiro foi acusado por uma de suas filhas adotivas de tê-la estuprada quando criança e é casado com sua outra filha adotiva (quer dizer, acho que agora ela não é mais sua filha, não sei ao certo como funciona quando pessoas casam com seus filhos).
Roman Polanski, por sua vez, foi condenado nos Estados Unidos de estuprar uma garota menor de idade nos anos 70. Desde então, o diretor nunca mais voltou para o país para evitar a prisão.
Por último temos Bill Cosby, famoso ator e comediante, acusado de drogar e estuprar mais de 35 mulheres. A New York Magazine recentemente publicou um artigo sobre o assunto, incluindo fotos de muitas delas. Cosby permanece livre para fazer o que quiser, e durante um bom tempo chamou as vítimas de mentirosas.
Todos os três foram ou estão envolvidos em escândalos sobre violência sexual contra mulheres. E mesmo assim, seus produtos e reputações permanecem relativamente intactos, e encontrar financiamento e audiência para seus filmes continua sendo fácil, fácil. Não existe boicote significativo contra esses artistas. Falar mal de Woody Allen é praticamente um sacrilégio em alguns círculos cult. Seu constante pareamento de atrizes em seus 20 e poucos anos com atores de meia idade em seus filmes também não parece perturbar muitas pessoas.
Então minha dúvida permanece: estamos lidando corretamente com o assunto de violência contra a mulher no mundo das artes? O que vale mais, afinal: o boicote ou discutir sobre isso e botar a boca no trombone?