Betty: Série sobre mulheres skatistas retrata assédio sexual e machismo
“Betty”, da HBO, estreou em maio e pode ser um alívio nesta quarentena entre tantas séries protagonizadas por homens ou só centradas em romance.
*Contém spoilers da primeira temporada*
Quando eu tinha 13-15 anos, fiquei com uma baita vontade de ser skatista, principalmente porque achava todo mundo que andava nesta prancha com rodinhas muito descolado, bonito e bacana.
Eu, então, comprei um skate num supermercado e fui praticar. Pratiquei com uma amiga (não deu muito certo) e sozinha, o que também não deu muito certo. Ralei-me toda e não consegui pegar o jeito da coisa. Acho que, num geral, curtia realmente a estética. E, vendo “Betty”, tudo isso voltou aos meus pensamentos.
A série de Crystal Moselle, baseada em seu filme, “Skate Kitchen” (2018), se passa em Nova York e é centrada em um grupo de cinco amigas – na verdade, algumas se tornam amigas com o passar dos episódios. Tudo começa com Kirt (Nina Moran) e Janay (Dede Lovelace) organizando um “all-girl skate sesh” ou “encontro de garotas do skate”. Lá elas conhecem Honeybear (Kabrina Adams) e Camille (Rachelle Vinberg), esta que, na verdade, não estava ali para o encontro de moças skatistas.
Eis que poucas mulheres aparecem – quase ninguém – e começa a chover. Camille, quando refugiada na parte coberta de uma loja, percebe que deixou sua mochila no parque. Volta ao local, não encontra seus pertences e então chega à conclusão de que foi furtada.
A galera sai procurando por toda parte com o Find My iPhone (o celular de Camille ficou na bolsa) e parece um beco sem saída. Após horas seguindo a localização na tela, Honeybear descobre quem furtou através de sua câmera – lado positivo de filmar tudo o tempo todo. Até aí ainda não sabemos muitos das personagens, além de que Kirt é lésbica pois flerta brevemente com Indigo (Ajani Russel), mas o flerte não decola e ela acaba ensinando a nova amiga a andar de skate.
Com apenas seis episódios de meia hora, vemos os dilemas dessas jovens que passam a maior parte do tempo na rua, se divertindo. Dá até uma certa agonia assistir durante a quarentena da Covid-19, porque dá vontade de fazer tudo que elas estão fazendo! Traz, todavia, um alívio, como se pudéssemos respirar o ar livre há tanto tempo privado de nós.
A história perpassa pelos momentos explosivos e imaturos de Kirt (ela é o estereótipo da pessoa que vive chapada), a complexidade de Honeybear, que também é lésbica e não se assume à família, tampouco consegue ter liberdade de se expressar dentro de casa; a busca de Camille por pertencimento em meio aos homens e Indigo, que é uma das mais privilegiadas financeiramente e que vende canetas vaporizadas de THC.
Um mundo masculino
Gostei muito que a série mostra como as pistas de skate são dominadas por homens, e como são as poucas mulheres que as ocupam. Indigo, que começa a aprender no primeiro episódio, sente-se extremamente desconfortável com a ideia de que homens irão ficar olhando para ela, quase envergonhada. Desta forma, treina com Kirt em outros lugares, como parques e calçadas, e quando chegam à pista local, ela vê como as brigas com skatistas são facilmente incitadas. Kirt fala que, na verdade, os homens se irritam se as mulheres esbarram neles, mas se outros homens esbarram, não é visto como nada de mais.
Em determinado momento, Camille é convidada para uma espécie de festa exclusiva de skatistas, na qual colam majoritariamente homens. Ela não tenta fazer com que as colegas entrem ao seu lado, fazendo, assim, com que Janay e cia fiquem de fora. Neste ponto, podemos ver o machismo no mundo do skate e como uma mulher já “aceita” acaba não querendo comprar briga com os caras.
Violência sexual e privilégio branco
Além disso, assuntos como assédio e estupro são retratados. Janay, que tem um canal no Youtube com o melhor amigo e ex-namorado, Donald, percebe que os comentários do último vídeo foram desativados. Ao perguntar ao colega o porquê, ele responde que eram comentários maldosos direcionados a ela. Depois, vendo um print tirado por Honeybear, ela descobre que Donald está sendo acusado de estupro.
Ao confrontá-lo, o amigo não explica a história e dá algumas desculpas esfarrapadas. Janay, então, pesquisa no Instagram a Celia (Brenn Lorenzo), nome da moça que fez as acusações, e segue seus passos pelas postagens que faz dos lugares que está indo. Janay a confronta em uma festa, o que gera briga: Kirt se descontrola e joga o skate numa vidraça, quebrando-a. A polícia chega e Camille, Honeybear e Janay são presas.
Nesta parte é discutido o privilégio branco, como as duas mulheres negras foram presas e não podiam nem correr da polícia da forma que Kirt e outros fizeram, uma vez que correr pode significar ser violentada devido à cor da pele.
Passado algum tempo, Janay resolve conversar de maneira mais polida com Celia e acredita em sua palavra, pois o ex fez a mesma coisa com ela. Aí que entra um ponto interessante: Janay vai confrontar Donald e ele fica bravo, falando que ela está agindo feito “louca” e deixando a palavra de outra “doida” entrar na cabeça dela. Janay fica sem reação, sendo culpabilizada e colocada contra a parede. Donald dá aquele típico argumento: “Se eu te violentei enquanto namorávamos, por que você não falou antes? E a gente namorava, você esperava o que?”, dando a entender que se você namora alguém, logo, essa pessoa não pode te estuprar também. O que é falso.
Janay resolve apagar os vídeos do canal do Youtube dos dois e se posiciona firmemente passados alguns dias. Donald vai encontrá-la (ela nem sabe como ele a achou) e fica falando que está quebrado, que precisa de ajuda. Janay deixa claro que ela não irá ajudá-lo, não é responsabilidade da mulher salvar/consertar homens. Se ele quer mudar, ele que procure ajuda profissional e assuma os erros. Assuma que violentou uma moça. Essa parte é extremamente necessária, uma vez em que vivemos numa sociedade que coloca a mulher num papel de mãe, e que precisa maternar os homens que fazem coisas ruins, sem que eles assumam responsabilidade por tais atos.
Representatividade Lésbica
Enquanto tudo isso está rolando, Honeybear se apaixona por outra skatista, Ash (Katerina Tannenbaum). Elas vivem um casal super fofo, mas incerto. Honeybear, a mais tímida do grupo, parece passar por um conflito interno. Em um momento, seu pai quase a vê com Ash. Honey fica desconcertada com a possibilidade de a família descobrir que é lésbica e termina tudo com a crush.
Este é o único casal mais oficial da temporada, e dá um aperto quando elas terminam. Depois, Honeybear, aspirante a cineasta, manda um vídeo com gravações das duas, pedindo perdão pelo vacilo. O diferente de algumas séries é que ambas têm certeza de suas sexualidades, apesar de Honey ficar receosa com a possibilidade do pai e avó descobrirem.
Não sabemos muito da história da família das personagens além da rigidez do ambiente familiar de Honeybear. Em nenhum momento a trama mostra lesbofobia, o que é outro diferencial de histórias lésbicas que só focam no sofrimento. Desta vez, desfrutamos o relacionamento delas, com altos e baixos, sem ficar com medo de que algo as ataque (mesmo ainda sendo possível). As amigas não-lésbicas de Honey também não hostilizam ou fazem comentários insensatos.
Mais um espaço conquistado
O grande fechamento dos episódios foi, então, elas recriando a “all-girl skate sesh” e mostrando essa necessidade de um espaço 100% feminino. Quando estão apenas com outras meninas, elas se sentem livres. Foi uma cena bem orgânica e bonita de se assistir.
A série executa de forma muito melhor a profundidade das personagens do que o filme que a inspirou, “Skate Kitchen”, e mesmo tratando de assuntos pesados e importantes, tem um jeito tênue em mostrá-los. Ela é focada no dia-a-dia dessas mulheres, sem protagonismo para romance, pelo menos não héterossexual como estamos acostumadas a ver. É representativa e, na verdade, como já foi renovada para a segunda temporada, esperamos que o potencial seja ainda muito mais explorado.
Afinal, betty é gíria para uma mulher que esbanja autoconfiança, que é atlética, incrível no surfe ou skate. E, de fato, temos sorte de ter um pouco dessas “betties” em nossas vidas.
Confira o trailer.