Beleza Interior? A Misteriosa Síndrome dos Caras “Feios” com Minas Gatas na Cultura Pop

O problema não é a presença de caras “feinhos” ou de aparência normal na mídia, mas a ausência quase que absoluta de mulheres assim na frente das câmeras.

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Desde pequenos, todos aprendemos algumas regrinhas sobre como se relacionar e tratar outras pessoas. Uma delas diz respeito à clássica mensagem da “beleza interior” e sobre como é ruim julgar alguém pela aparência.

A cultura pop adora nos lembrar dessa mensagem. Só durante a minha infância e adolescência, por exemplo, tivemos três animações de sucesso estrondoso que se baseiam precisamente nessa temática: A Bela e a Fera, O Corcunda de Notre Dame e Shrek. Além disso, a minha adolescência foi recheada de comédias românticas com protagonistas “feinhas” e desajeitadas que quase sempre acabavam o filme com o cara mais gato da escola.

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Por algum motivo, no entanto, essas histórias nunca apaziguavam as minhas ansiedades em relação à minha própria aparência. E só agora acho que consigo entender o porquê.

Em primeiro lugar, nos grandes clássicos de animação mencionados, os personagens cuja aparência questionável teríamos que relevar são todos homens. As protagonistas femininas desses filmes, com as quais eu teria que me identificar, eram todas lindas e perfeitas (com exceção de Fiona, que no final vira um ogro, como Shrek).

Já nas comédias românticas, a suposta feiura das protagonistas era frequentemente apenas um embuste, cuidadosamente criado com óculos, aparelho nos dentes, mau gosto para se vestir e cabelos desgrenhados. No final de todos esses filmes, sem exceção, essas meninas provavam que nunca foram feias de verdade, bastando uma makeover para resolver todos os problemas de suas vidas.

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Ou seja, para mim, uma criança e adolescente feinha e desengonçada, esses filmes não contribuíram em nada para o meu bem-estar psicológico. Uma porque reforçavam ainda mais a ideia de que beleza é a coisa mais importante na vida de uma mulher. E outra porque os padrões de beleza a que somos sujeitadas são extremamente rígidos, fazendo com que “ficar bonita” não seja apenas uma questão de tirar os óculos, soltar os cabelos e colocar um vestido bonito.

Como ficar bonita, de acordo com a cultura pop:

belezaTira seus óculos.
belezaPera, pera – solta seu cabelo

 

Dessa forma, nos poucos filmes que talvez tivessem o poder de fazer com que mulheres sentissem que são mais do que suas aparências, os roteiristas estragavam tudo no final, fazendo com que as protagonistas só conseguissem o que queriam depois de ficarem lindas.

E isso é algo com o que homens não precisam lidar. Além dos clássicos da beleza interior tratarem quase que unicamente sobre como é feio julgar homens (apenas) pela aparência, a cultura pop repete essa lição diariamente, com a criação constante de casais formados por minas incrivelmente gatas e caras absolutamente normais, ou até meio “feinhos”.

belezaTipo esses dois.
belezaE esses.
belezaAqui ó.
belezaTe adoro, Tom Hanks, mas né.
belezaSeguindo a tendência de sitcom “marido gordinho / esposa gostosa”.
belezaNesse caso nem a personalidade dele salva, mas ainda assim ele ganha a Emma Stone no final.
belezaUma tendência que se observa também nos filmes do Adam Sandler.
belezaEm todos os filmes do Adam Sandler.
belezaE nos do Seth Rogen.
belezaE, claro, aqui também.
belezaAnimação também não escapa da síndrome.
belezaPor exemplo.
belezaQué dizê.

 

Essa dinâmica se repete incessantemente, principalmente porque a sociedade coloca tanta importância na necessidade de mulheres serem “bonitas” (lembrando que esse “bonitas” atende a um padrão misógino, racista, gordofóbico, etc), que dificilmente uma mulher “normal” ou fora do padrão de beleza sequer consegue aparecer na frente das câmeras. É uma exigência de conhecimento geral: se uma mulher pretende aparecer na mídia, o pré-requisito principal é ser bonita.

Com isso, a vasta maioria das mulheres que vemos todos os dias nas artes e na cultura pop – e que consequentemente se tornam modelos a serem seguidos – representam apenas uma minoria da população feminina em termos de aparência. Cria-se e reforça-se, assim, um padrão de beleza e uma ideia de como mulheres devem ser na qual pouquíssimas se encaixam. E com isso, nenhuma de nós jamais tem o benefício de se sentir bem consigo mesma tendo uma aparência simplesmente normal ou fora do padrão.

E esse é um privilégio que homens têm, embora muitos digam que a ditadura da beleza os afeta tanto quanto afeta as mulheres. A síndrome dos caras “feios” com as minas gatas na cultura pop é apenas uma entre muitas provas incontestáveis de que isso simplesmente não é verdade. Como muito bem disse William Leith, em um artigo do The Telegraph três anos atrás:

“Se você é mulher, uma enorme proporção das mulheres que são seus exemplos são lindas. Então, se você tem uma aparência normal, você se sente feia. E se você é meramente bonitinha, os homens se sentem no direito de comentar sobre como você não é linda.

Como um homem de aparência normal, eu me encontro em uma posição completamente diferente. Ser normal faz com que eu me sinta, bem, normal. Totalmente bem. Como se a minha aparência não fosse uma questão. Isso porque não é mesmo.

Como um cara de aparência normal, estou em boa companhia. Claro, alguns atores homens e celebridades são muito bonitos. Brad Pitt. George Clooney. Russell Brand. Mas muitos dos principais atores de Hollywood, assim como eu, são como os caras que você vê todo dia, na vida real. Russell Crowe, Kevin Spacey, Bruce Willis, Jack Black, Seth Rogen, Martin Freeman, Tom Hanks, Steve Carrell, Jim Carey, Will Ferrell, Vince Vaughn, Brendan Fraser…Na verdade, dá até para dizer que a maioria dos protagonistas são caras com aparência normal. (…)

Quando eu assisto o noticiário, em qualquer canal, ele é apresentado pela clássica parceria formada por um cara de aparência normal e uma mulher deslumbrante. Depois das notícias, assisto a previsão do tempo. Apresentador homem tem aparência normal, como outros homens. Apresentadoras mulheres parecem modelos. (…)

A mensagem pra mim, como homem, é: é o que você faz que importa, não a sua aparência. Mas como as mulheres se sentem? Posso apenas imaginar.”

Que fique bem claro que essa crítica não é uma questão de “realismo”, do tipo “até parece que essa mulher ficaria com esse cara na vida real”. O problema não é a presença de caras “feinhos” ou de aparência normal na mídia, mas a ausência quase que absoluta de mulheres assim na frente das câmeras.

A mídia e a cultura pop tem muito poder nas mãos. Como bem disse Nanette Braun, da ONU Mulheres, “a mídia cria uma visão de mundo que se entranha profundamente na percepção das pessoas de como as coisas são”. Rejeitemos, portanto, essa visão deformada da realidade que nos é vendida todos os dias. 

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