Personagens Femininas em Stranger Things 2 – O Princípio Smurfette Ataca Novamente

Embora tenha melhorado a representação feminina em alguns aspectos, Stranger Things 2 não desafiou a lógica do Princípio Smurfette.

stranger things

Contém spoilers.

Sim, senhoras e senhores. Stranger Things está de volta, levantando nuvens de nostalgia novamente e alvoroçando até os mais inalvoroçáveis (eu tenho quase certeza que essa palavra não existe, mas ok, vocês entenderam). No encalço de sua primeira temporada, Stranger Things 2 nos levou de volta a Hawkins, onde nossos personagens favoritos descobrem que o mundo invertido continua assombrando o pequeno Will, que nas últimas cenas da última temporada já deu sinais de que não estava nada bem.

Dessa vez, no entanto, ao invés de ficar desaparecido a maior parte do tempo, Will toma um papel de protagonismo na série, o que se provou uma escolha muito acertada, porque 1) O personagem é um amorzinho; e 2) O ator que o interpreta, Noah Schnapp, deu um show, minha gente.

Aplausos pra ele, por favor.

 

Muito já foi dito sobre a trama dessa segunda temporada em si (recomendo o completíssimo texto da Rebeca Puig no Collant), por isso optei por focar naquilo que mais nos toca aqui no Nó de Oito: representação feminina e quebras de padrões de gênero. E, oh boy, pode apostar que eu tenho bastante coisa pra falar.

Começando com as coisas boas, devo dizer que a série melhorou, sim, em alguns aspectos. A primeira delas foi Joyce. Na primeira temporada, apesar de brilhante, a personagem cai muitas vezes no estereótipo da mãe histérica e descontrolada, e toda a sua caracterização tem a ver com a fato de ela ser mãe de Will, o garoto desaparecido. Isso não seria um problema se a série não tivesse optado por incluir tão poucas personagens femininas na trama, o que tornou mais destacada a representação caricata e unidimensional da personagem.

Já na segunda temporada, no entanto, tivemos alguns episódios de calmaria, que nos deram a oportunidade de conhecer um pouco mais de Joyce fora de sua persona de mãe. Sim, essa nova faceta ainda está atrelada a um relacionamento com um homem, mas eu vou dar pontos positivos aos roteiristas por terem criado um interesse amoroso saudável para a personagem, contrariando o clássico estereótipo da mãe solteira que só se envolve com bad boys abusivos ou desinteressados. Bob foi uma adição valiosa à trama e eu fiquei feliz que ele foi pareado com a Joyce. Mesmo que tenha durado pouco.

stranger thingsVocê merecia mais, doce alma gentil.

 

Outro ponto positivo, muito reconhecido pelos fãs, foi Steve com as crianças. Inúmeras piadas e memes carinhosos foram feitos desse grupo muito doido formado por um adolescente tomando conta dessas crianças em suas aventuras – o que prova, queridos amigos, o poder da inversão de gênero. Porque ao atribuir a Steve o papel de cuidador e protetor das crianças (um clichê tradicionalmente feminino conhecido como Team Mom), Stranger Things 2 subverteu estereótipos de gênero e, consequentemente, as nossas expectativas.

stranger thingsE não há nada melhor do que ser surpreendido.

 

Outra inversão digna de nota que ocorreu nessa temporada foi nas trajetórias do Mike e da Eleven. Na narrativa tradicional, a mulher costuma ficar em casa guardando o forte enquanto o homem sai em sua jornada de crescimento e autoconhecimento. Em Stranger Things 2, isso foi invertido ao relegar Mike ao segundo plano, como companheiro de Will, e enviar Eleven em uma viagem para descobrir sobre o seu passado. No entanto, essa inversão não foi tão bem acatada pelo público, principalmente porque os roteiristas acabaram transformando a jornada da Eleven em uma espécie de spin-off bem mais ou menos dentro da série.   

E com isso chegamos, inevitavelmente, aos pontos negativos que Stranger Things não conseguiu superar.

Vamos lá! 

 

Nessa temporada, tivemos um total de quatro personagens femininas centrais – uma a mais do que na temporada passada (não incluo a Kali porque ela só aparece em um episódio, além da abertura). Joyce, como já mencionamos, volta esse ano com alguns nuances a mais além da mãe que faz de tudo para salvar o filho. Nancy se sente culpada pela perda de Barb e embarca em uma aventura própria junto com Jonathan para trazer justiça à amiga. Eleven é mantida afastada de todos por Hopper e acaba fugindo em busca de respostas sobre o seu passado. E Max, a novidade no grupo, desperta o interesse dos meninos e acaba participando de suas aventuras.

Por si só, as personagens femininas nessa temporada se tornaram um pouco mais complexas e interessantes do que na temporada passada. Max pode ser algo a ser discutido, já foi apresentada inicialmente como uma Cool Girl – a clássica “ela não é como as outras garotas” -, mas eu senti que a personagem é aprofundada o suficiente em vários momentos para escapar desse destino. No entanto, para além dos problemas com a representação individual de cada personagem, há um problema maior com a representação feminina na série como um todo: cada uma das personagens está isolada das outras, em núcleos separados.

stranger thingsJoyce, a adulta, é a única mulher em seu núcleo.

 

stranger thingsNancy continua sendo a única garota no seu núcleo.

 

 E Max e Eleven se alternam como a única menina entre as crianças.

 

O nome disso é Princípio Smurfette, a prática de manter uma única personagem feminina em um grupo variado de homens. Essa configuração de gênero é um repeteco da primeira temporada, e de muitas formas se acentuou ainda mais na segunda por causa da hostilidade sem sentido de Eleven em relação à Max, e da resistência do Mike em aceitá-la no grupo. Com isso, a série acaba reforçando essa crença generalizada de que só pode haver uma garota e que, se tiver mais de uma, elas vão brigar (muito provavelmente por causa de um cara).

Toda a hostilidade de Eleven em relação à Max foi provavelmente o que me deixou mais desanimada em Stranger Things 2, não só porque reforça o cansativo clichê da rivalidade feminina, mas porque além de tudo não faz sentido nenhum dentro da própria história. Eleven foi concebida pelos roteiristas para ser literalmente algo parecido com um alienígena – eles, inclusive, pediram à Millie Bobby Brown para se inspirar em E.T. em sua interpretação. Essa é uma personagem que cresceu longe das normas sociais e padrões de gênero tradicionais, e mesmo assim os roteiristas acham normal fazer com que ela se preocupe em “ser bonita” (na primeira temporada) e reconheça imediatamente como ameaça uma menina falando de boas com o seu boy (na segunda).

Wtf, Eleven.

 

De certa forma, a hostilidade de Eleven revela tanto o quanto os roteiristas são influenciados por concepções machistas de gênero, como a sua incapacidade de escrever bem uma personagem como Eleven. Embora essa temporada tenha se esforçado para humanizá-la em diversos momentos, a personagem ainda tem um quê de massinha de modelar, se adequando ao que o roteiro pede dela – ora meio alienígena, ora profundamente obediente a estereótipos de gênero com os quais ela supostamente nunca teve contato.

Por outro lado, Eleven foi a única personagem que teve uma interação mais significativa com outra personagem feminina – sua “irmã perdida”, Kali. É com ela, inclusive, que Eleven se torna um pouco mais complexa e pode verdadeiramente exercer sua autonomia ao escolher não participar dos planos de vingança da irmã. Infelizmente, no entanto, o episódio spin-off das duas pareceu jogado de qualquer jeito no meio da trama principal, mais como uma oportunidade para a série dar uma makeover badass a Eleven do que qualquer outra coisa. E pior, trouxe à tona um imaginário bem problemático ao nos apresentar uma garota não-branca que escolheu a vingança e a violência ao lado de uma garota branca que faz a escolha certa e rejeita esse caminho.

stranger thingsCansativo.

 

Enquanto isso, na trama principal, as personagens femininas nunca chegam a interagir umas com as outras, sendo que única interação que temos é fortemente fundamentada em rivalidade feminina. Enquanto não faltam cenas significativas entre homens e garotos – Will com Mike, Steve com Dustin, Dustin com Lucas, Jonathan com Will, Bob com Will, até Hopper com o médico -, as mulheres e garotas só interagem com homens e garotos e, não raro, acabam caindo nas amarras clássicas de personagens femininas ao serem disputadas por eles.  

stranger thingsEmbora Lucas e Max sejam um amorzinho.

 

Existe uma crença machista generalizada de que mulheres são incapazes de trabalhar juntas e sempre vão rivalizar umas com as outras. Então é muito raro ver mulheres ajudando e tendo relações significativas com outras mulheres na cultura pop. Infelizmente, não foi dessa vez que Stranger Things desafiou essa lógica, mas fica a esperança para uma amizade entre Max e Eleven na próxima temporada – além de, claro, mais personagens femininas, por favor.

stranger thingsPensamento positivo.

 


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