4 Estereótipos de Mães que a Publicidade Precisa Parar de Usar
Super-mãe, mãe-mágica, mãe-mártir. Todo ano nos deparamos com os mesmos e ultrapassados estereótipos nos comerciais de Dia das Mães.
Todo ano é a mesma coisa. Junto com maio chega também aquela enxurrada de comerciais de Dia das Mães que nos lembram como nossas progenitoras são seres celestiais, dotadas de habilidades inimagináveis e de um altruísmo quase mágico em relação a nós, a razão de ser de suas vidas.
Agora, não me entenda mal. Eu sei que apesar de toda essa idealização a celebração das mães é, em geral, mais do que justificada. Muitas mães realmente se sacrificam para conseguir dar uma vida digna aos filhos. São elas que costumam abandonar a carreira para cuidar deles, e também são elas que arcam com a maior parte do trabalho doméstico (de acordo com o IBGE, mulheres gastam, em média, 24 horas e 8 minutos por semana com trabalhos domésticos – mais do que o dobro das 10 horas e 32 minutos que os homens se dedicam a essas tarefas). Em suma, mesmo quando os pais estão lá, mães ainda são as principais responsáveis pela criação dos filhos (e quando eles não estão, adivinha sobre quem a culpa recai).
Vou só deixar isso aqui.
É assim porque existe uma expectativa de que seja assim. Apesar de terrivelmente anacrônica, a cobrança em cima das mulheres pela manutenção do cotidiano – que vai desde os trabalhos domésticos até a criação dos filhos – persiste ainda muito forte no século XXI. E ao invés de questionar essas desigualdades (que não fazem favor nenhum para a sociedade como um todo, diga-se de passagem), os emotivos e celebratórios comerciais de Dia das Mães tentam convencer que toda essa palhaçada vale a pena, porque olha, nós até te compramos um presente uma vez por ano!
Além disso, se por um lado existe a intenção de celebrá-las, por outro reforça-se essa expectativa torturante de que mães têm que ser esse ser celestial-dotado-de-habilidades-inimagináveis-e-de-um-altruísmo-mágico-em-relação-aos -filhos. Não é a toa que “culpa” é um sentimento praticamente inerente da experiência de ser mãe – enquanto que muitos pais abandonam seus filhos sem sofrer nenhuma consequência (social ou psicológica) por isso.
Vou largar mais isso aqui também.
A desigualdade de expectativas para pais e para mães pode ser observada inclusive nos comerciais de Dia dos Pais. Enquanto os comerciais de Dia das Mães costumam retratá-las cuidando de seus filhos (dando banho, alimentando, trocando fralda, levando na escola), os pais dos comerciais de Dia dos Pais raramente são vistos realizando as mesmas atividades que elas, restando a eles as horas de brincadeira e de lazer.
Um ótimo exemplo disso são as propagandas do Shopping Iguatemi de Salvador. Para o Dia das Mães, foi gravado um daqueles clássicos comerciais em que o pai (no caso, o Fabio Porchat) é deixado sozinho em casa com o filho e passa um cortado para fazer coisas simples como trocar fraldas e alimentar a criança.
Aqui ó.
Esse tipo de comercial é complexo porque se por um lado ele agrada ao reconhecer que cuidar de uma criança não é fácil, por outro ele causa um embrulho no estômago ao sugerir que mães têm um dom nato para fazer essas coisas – e por isso são elas que têm que fazê-las, e não os pais.
Clássico machismo disfarçado de elogio.
Usando a mesma fórmula, o comercial de Dia das Mães do Iguatemi coloca uma mãe numa função que supostamente apenas um pai teria como exercer: acompanhar o filho no treino de judô.
Então vamos lá. De acordo com essas propagandas, mães são insubstituíveis porque elas alimentam, dão banho e protegem a criança. Já pais são insubstituíveis porque…mantém o sangue frio durante o treino de judô do menino?
É sério isso?
Esses comerciais são apenas dois exemplos entre milhares que refletem muito bem a importância que damos à paternidade em comparação com a maternidade. Assistindo-os não há como ter dúvidas do porquê de as mães serem tão sobrecarregadas (e, numa hipocrisia incomparável da nossa sociedade, tão valorizadas nos comerciais de Dia das Mães): tem muito pouco pai exercendo, de fato, a paternidade.
A variedade de arquétipos de pais e mães nos comerciais também é outra coisa que reflete a desigualdade de cobranças para cada um deles. Para o pai – papel tratado de forma rasa e desinteressada – costumamos ter apenas uma representação nos comerciais: o do Pai Presente (no sentido de simplesmente estar lá, não de realmente fazer coisas). Já para a mãe…ahh, nesse caso temos…
A Super-Mãe
Nos primórdios da publicidade no século XX, as mulheres eram retratadas como seres subservientes, com habilidades rigidamente restritas a cuidar do lar, dos filhos e do marido. As coisas mudaram consideravelmente, no entanto, nas décadas de 1970 e 1980. Nessa época, muitas mulheres já haviam assumido outras funções fora de casa e, com a segunda onda feminista, passaram a exigir o reconhecimento de habilidades que antes eram atribuídas apenas a homens. Infelizmente, como era de se esperar, a homarada preferiu entender que as mulheres queriam trabalhar fora e ainda ser responsáveis pelos filhos e pela casa, iniciando aí o nosso injusto acúmulo de funções e toda uma série de piadinhas cretinas e machistas do tipo “Eu não ligo que ela trabalhe fora…desde que o jantar esteja pronto quando eu chegar! Eh, eh, eh!”.
Bem, desde aquela época até os dias de hoje a publicidade aproveita essa deixa da mulher que dá conta de tudo – do trabalho, da casa e da família (dá uma olhada nesse comercial da década de 1980, por exemplo). Atualmente, vemos com a frequência a mulher-que-dá-conta-de-tudo na figura da Super-Mãe.
A Mãe-Mulher
A figura da Mãe-Mulher aparece com mais frequência em comerciais de Dia das Mães de produtos cosméticos e relacionados à beleza. Basicamente, a Mãe-Mulher é aquela que na loucura do dia-a-dia ainda encontra tempo pra passar batom; escolher perfume; ir na ginástica. Porque não se esqueça – toda mãe é uma mulher. Toda mãe sabe que é possível refazer o pacto com a beleza. Pra que ela nunca deixe de aparecer.
Por incrível que pareça, não estou sendo irônica. A partir do itálico no parágrafo acima eu simplesmente transcrevi a propaganda de Dia das Mães da Natura de 2016.
Sim, mães, apesar de tudo, vocês têm que ser bonitas também, hein! Não esqueçam!
A Mãe-Mártir
A Mãe-Mártir é a mãe guerreira, abnegada, que se sacrifica por seus filhos. O melhor exemplo é a campanha O Trabalho Mais Difícil do Mundo, da American Greetings, que basicamente fala que para ser mãe é preciso abrir mão da própria vida e depois sugere que, por causa disso, sua mãe merece um cartão nesse Dia das Mães. Yay, cartão! #sqn
A Mãe-Mágica
A Mãe-Mágica é aquela que possui poderes sobrenaturais que fazem com que só ela tenha a capacidade de realizar atividades que são, sem surpresa nenhuma, aquelas que a sociedade machista cobra das mães. Isto é, criar e cuidar dos filhos. A propaganda do Shopping Iguatemi com o Fabio Porchat que eu coloquei lá em cima é um bom exemplo.
Também vi circular bastante o vídeo abaixo nesse Dia das Mães. Não é um comercial, mas também traz a clássica figura da Mãe-Mágica.
A Mãe-Real
Finalmente: esse não é um estereótipo. Apesar de os estereótipos acima ainda predominarem nos comerciais de Dia das Mães, algumas marcas parecem estar dispostas a mostrar um retrato mais realista do que é a maternidade (o que talvez tenha a ver com a recente descoberta de que a maioria das mães ao redor do mundo não se identificam com as mães retratadas em propagandas). Elas estão fazendo isso, basicamente, colocando mães reais para falar de suas experiências.
A Avon é um bom exemplo de 2016, com os vídeos de sua campanha #MãeSemCulpa – uma mudança certamente bem-vinda na publicidade de Dia das Mães.
Imagino que se uma marca pretende ser responsável e contribuir para mudanças positivas na sociedade (ao invés de reforçar padrões cretinos), e ainda vender seus produtos, retratar mães deve ser um desafio. Mas campanhas como a da Avon e outras provam que é, sim, possível sair do padrão e ainda assim ter sucesso.
Que venham muitas mais.
Leia também sobre 5 Situações Idênticas que Geram Elogios a Homens e Críticas a Mulheres; e sobre os “elogios” que nos fazem que reforçam o machismo.
Lara Vascouto
May 13, 2016 @ 2:24 pm
Atenção: comentários com linguagem ofensiva não serão aprovados.
Tarantino
June 5, 2016 @ 9:32 pm
A mulher tem mais empatia natural com os filhos. É algo perfeitamente natural, até entre os animais. O ser humano não é um animal racional, é um animal raciocinante.
Lola
May 19, 2017 @ 12:15 pm
Meu marido é homem, hétero, cis e tem a mesma empatia natural com os filhos que eu como mulher. Nao dá pra achar que criar filho é coisa de mulher. Excelente texto!!!
José
May 16, 2018 @ 5:05 pm
Interessante a reflexão.
Compartilho uma experiência minha, propondo uma reflexão complementar.
Eu sou pai de um menino.
Durante sua gestação, comprei dois livros sobre gravidez. E li vários artigos em sites, como o “Pais e Filhos”, entre outros. Notei que, tanto nos livros como nos sites, o texto é escrito como se fosse uma conversa para a mãe, com frases do tipo “Quando você estiver amamentando…”, “Você sentirá dor nos seios…”, “A decisão de escolha do parto é sua…”
E eu, lendo, me perguntava: um pai não pode ler esse livro? não pode ler esse site ?
Parece que o pai nem participa do processo.
Uns talvez não queiram. Mas eu queria.
Como deve ser de conhecimento geral, a licença paternidade há pouco tempo era de ridículos 5 dias. Que passaram para irrisórios 20 dias. Ao passo que a licença maternidade pode alcançar até 180 dias.
Eu, juntando a licença paternidade, feriado de carnaval, banco de horas regular, banco de horas do recesso, e férias, consegui ficar quase 60 dias afastado do trabalho, tudo acertado com minha chefia, bem antes do parto, é claro. Nesse período, fiquei em casa, dividindo, com minha esposa, as tarefas de cuidar do meu filho. Reparem que usei o verbo “dividir”, e não “ajudar”. Eu não estava “ajudando minha esposa”. “Ajudar” pode fazer parecer que a obrigação de cuidar do filho é da mãe, e o pai apenas “dá o apoio”.
Quando retornei ao trabalho, ouvi vários comentários sobre esse “enorme” tempo que fiquei longe. Longe entre aspas, porque durante esse período participei de videoconferencias, lia e-mails, mas isso não vem ao caso. Uma das coisas que não esqueço é o fato de ter ouvido de um colega a seguinte frase: “pensei que tu tinhas tirado licença MATERNIDADE”, em tom irônico, é claro.
Muitos devem estar pensando: “Pai não amamenta. 20 dias tá bom”. Também ouvi uma frase similar a essa.
Mas será que essa diferença de 160 dias não é a sociedade (e/ou a lei) empurrando para as mães a responsabilidade de criar os filhos ? E, ao mesmo tempo, dizendo aos homens: “o papel de vocês é trabalhar! Ora bolas, quer ficar em casa vendo Netflix, é?”.
Eu, como pai, me senti discriminado. Concordem ou não. Mas senti. Ponto.
Levando a reflexão a outro tema…
Em média, os homens vivem menos que as mulheres. É estatística “pacificada”, não inventei da minha cabeça. Vão dizer que “homens não gostam de ir ao médico”, “bebem mais”, “não se cuidam”. E é verdade, em muitos casos. Mas será que são os únicos motivos ? Será que isso também não é um estereótipo? Eu realmente não gosto de ir ao médico. Mas, ontem mesmo, fui fazer o exame periódico de saúde que está sendo implantando. Com dispensa do trabalho (ressalte-se).
Fui liberado do trabalho, para cuidar da saúde. Eu poderia me recusar a fazer o exame. Mas não recusei.
Seguindo o raciocínio… os homens trabalham 5 anos a mais para se aposentar. O projeto de reforma da previdência tentou igualar, mas isso repercutiu mal, e o projeto foi alterado para manter a diferença (salvo engano… não estou acompanhando de perto).
Então, os homens morrem antes, e trabalham 5 anos a mais. Ou seja, homens: “Trabalhem. Morram trabalhando. Homem que é homem tem que trabalhar.”. É mais uma vez a sociedade atribuindo o dever do trabalho ao homem. A mulher que não trabalha não é julgada do mesmo jeito que o homem que não trabalha. “A mulher que trabalha é uma heroína”, como nas propagandas do dia das mães. Do outro lado, se o homem trabalha, não fez mais que sua obrigação.
Considerando profissões das chamadas “atividades intelectuais” (outro termo perigosamente polêmico), que não dependem de esforço físico, por que as mulheres trabalham 5 anos a menos ? Qual o argumento? Tentar compensar, para igualar os desiguais ? Numa profissão de advogado? Ou contabilista? Técnico de informática ?
Será um círculo vicioso? Um sistema retroalimentado? A sociedade cria estereótipos. E estereótipos criam a sociedade. Homens também sofrem com os estereótipos. Não chorar. Não sentir dor. Aguentar a dor. Ser durão. Não levar desaforo pra casa.
Na maternidade, a primeira fralda do meu filho foi trocada por mim. Não houve cunhada, vó ou amiga para ajudar (motivo de espanto para as enfermeiras). E depois da primeira, a segunda foi uns 20 minutos depois. E depois troquei muitas outras, até hoje.
Pelo menos a minha mãe, garanto se sentir elogiada com qualquer propaganda que venda a ideia de “super-mãe”. Ter que parar com isso, acho exagero. Propagandas sempre venderão ideias. É pra isso que elas servem: vender. Será que alguma mulher se sentiu discriminada com uma propaganda de “super-mãe”? Pelo menos uma, sim: a escritora do blog “Nó de oito”.