O Que Acontece Quando Mulheres se Recusam a Servir de Enfeite?
A reação indignada aos olhares vexatórios que Jenny Beavan recebeu no Oscar passou o recado: mulheres não são enfeites.
No começo do ano tivemos o Oscar, aquele evento hollywoodiano anual para o qual mulheres passam o mesmo tanto de horas para se arrumar que o Steve Carrell levou no set de Foxcatcher para ter próteses de nariz, papada e sobrancelha coladas na cara.
“O visual de Steve Carrell no filme Foxcatcher – Uma História que Mudou o Mundo demorava duas horas para montar, incluindo cabelo e maquiagem. Só como comparação, eu levei três horas hoje para me arrumar para o meu papel de mulher humana” – Tina Fey, no Globo de Ouro do ano passado.
Uma mulher, porém, preferiu não aderir a esse processo. Seus motivos são simples. Ela não gosta de usar vestidos, sente que salto alto é tortura para as costas e gosta de roupas confortáveis. Por isso, ela vestiu calças e uma jaqueta de couro com cristais Swarovski nas costas, em uma estampa que homenageia o filme que lhe rendeu uma indicação ao Oscar desse ano – Mad Max: Estrada da Fúria. Estou falando, é claro, da figurinista Jenny Beavan, responsável pelo figurino memorável não só de Mad Max, como de filmes como Uma Janela para o Amor, Razão e Sensibilidade, Anna e o Rei, Gosford Park e O Discurso do Rei.
A não-adesão de Beavan a rituais de beleza e vestimenta que transformam mulheres em ornamentos vem de longa data. Quando ganhou o Oscar em 1986, por exemplo, ela usou calças, um smoking e um cachecol dourado – um look que perdurou ao longo dos anos e de outras oito indicações que recebeu depois disso.
Esse ano, no entanto, Beavan ganhou novamente. Tal conquista colocou em destaque, obviamente, uma profissional que normalmente não vemos na frente das câmeras. Mas não só isso. Estou falando, é claro, da reação já famosa de uma fileira inteira de pessoas ao ver Beavan passando para receber seu Oscar:
Muito foi dito do fato de todas essas pessoas – que incluem profissionais de peso da indústria como Tom McCarthy, Louis Gossett Jr., Alejandro G. Iñárritu e Quincy Jones – não estarem aplaudindo uma vencedora do Oscar. Mas é claro que eles aplaudiram. Basta continuar assistindo a cena para ver que os aplausos vieram, sim, mesmo que um pouco atrasados.
O que me deixou pensativa não é se as pessoas em um Vine de dez segundos aplaudiram ou não, mas sim as expressões em seus rostos. Beavan estava indo receber um Oscar por seu trabalho, mas mesmo assim foi recebida com olhares de cima a baixo, carrancas descontentes e risadinhas debochadas. Não dá para tentar justificar essas expressões. Elas são o que são e refletem algo com o que todas as mulheres têm de lidar diariamente, desde a infância: a ideia de que valemos menos se não nos encaixamos em um determinado padrão, independente de quão talentosas ou bem-sucedidas formos.
Não é à toa que esse clipe viralizou. Metade da população passa por situações como essa o tempo todo (ou é atormentada pela ideia de passar por isso um dia) e não teve dificuldade nenhuma de se colocar no lugar de Beavan. Existe um porquê de sermos tão obcecadas e atormentadas por tratamentos estéticos, cirurgias plásticas e distúrbios alimentares. E ele não tem nada a ver com fraqueza ou futilidade, mas sim com o fato de sermos alimentadas diariamente com discursos terroristas que condicionam o nosso valor como seres humanos à aparência que temos. Tal associação é tão martelada em nossas mentes, que passamos a acreditar nisso.
Não é a toa que nos sentimos bem/confiantes/poderosas quando cuidamos da aparência, como sugere a nova propaganda do Boticário (e tantas outras).
No entanto, se adequação ao padrão de beleza oferece algum conforto ou alívio, ele é momentâneo. Uma porque beleza é efêmera e o padrão, além de mudar o tempo todo, costuma ser propositalmente inatingível para a grande maioria das mulheres. E outra porque mesmo quando estamos dentro do padrão somos frequentemente julgadas negativamente justamente por causa de nossa beleza.
Oras, essa moça bonita! Não pode ser competente/inteligente/profissional.
Porque no ideal feminino machista, ou a mulher é “inteligente, mas feia” ou “burra, mas bonita” (nessa ordem, ambos). Não dá pra ser os dois.
É uma eterna dicotomia machista, que reforça a ideia de mulheres como seres unidimensionais, e na qual se baseia, em parte, a nossa objetificação e desumanização.
Tais noções machistas, que atrelam a essência de uma mulher à sua aparência de forma indissociável, são reforçadas incansavelmente na mídia. O que pensar, por exemplo, sobre o código de vestimenta do Festival de Cannes, que ano passado impediu várias mulheres de entrarem em projeções porque cometeram o “terrível erro” de não usar sapatos de salto no tapete vermelho?
E quanto a programas como o “Esquadrão da Moda” (e muitos outros similares), que vive da premissa de que mulheres que não ligam para roupas/cabelos/maquiagem não podem ser levadas a sério em suas respectivas profissões e certamente sofrem de baixa autoestima?
Há há, lembra aquela vez que eles tentaram convencer a Mayim Bialik que ela não podia ser feliz e confiante sem uma maquiagem, cabelos escovados e roupas que destacassem ‘seus melhores atributos’, mesmo ela sendo uma atriz e neurocientista bem-sucedida? Hilário! #sqn
E o que pensar ainda da situação da surfista Silvana Lima – vice-campeã mundial e oito vezes melhor surfista do Brasil – que não consegue patrocínio porque não está dentro do padrão “modelo roxy”.
“Me sinto excluída. Sinto preconceito pelo fato de ser mulher. De vez em quando, me pego pensando que até entenderia ficar para trás se meu surf fosse menor, se eu fosse um motivo de vergonha, mas estou na minha melhor fase de surf, estou apresentando manobras super modernas.
(…) Muitos patrocinadores não querem apenas uma boa atleta, e sim uma menina que faça dois trabalhos: o de modelo e o de surfista.
(…) Eu vejo o suporte que os meninos têm com grandes patrocinadores. É uma estrutura tão boa que eles só pensam em surfar, em aprimorar a técnica. Eu tenho que pensar no cartão que vai chegar no final do mês e em como eu vou fazer para comprar passagem para a próxima etapa.”
– Trechos da entrevista de Silvana a Hardcore.
É desalentador, mas há esperança. Silvana se recusa a fazer as vezes de surfistinha sensual, e seu desabafo ecoa, se espalha, perdura e nos fortalece. Da mesma forma, Beavan pode ter recebido olhares vexatórios, mas ainda assim recebeu seu Oscar sem se deixar intimidar. E não só isso: foi amplamente ovacionada e admirada por isso em todo o mundo.
É um caminho sem volta. Não mais aceitaremos uma sociedade que determina o nosso valor de acordo com a nossa aparência. Pois o que acontece quando uma mulher se recusa a servir de enfeite? Outras tantas se levantam e se recusam também.
Beavan lembra: “Você não precisa parecer uma supermodelo para ter sucesso. Se pudermos lembrar disso, seria uma coisa ótima.”
Lembraremos, Bev. Esse é só o começo.
Leia também O Grande Erro do Novo Comercial do Boticário.
Júlia
March 5, 2016 @ 12:03 am
Texto INCRÍVEL!! Parabéns!
Caroline
March 5, 2016 @ 2:49 am
Uma coisa que eu acho super contraditório é:
De um lado eles dizem que pra ser alguém de sucesso devemos ser bonitas, contudo do outro lado eles dizem que mulher bonita é burra e uma distração. Ou seja, no final nunca dá pra agradar ninguém não importa o que faça e honestamente, por ser algo tão falho nem vale a pena ficar se preocupando xDDDDDD
Pandora
March 6, 2016 @ 5:39 pm
Gostei muito da resposta otimista que vc deu à pergunta do título. Confesso que fiquei bastante desanimada ao longo do texto, mas o final aponta pra uma esperança, uma luz no fim desse túnel absurdamente opressor.
Danielle
March 6, 2016 @ 6:40 pm
Gostei muito. Só não concordo ao dizer que algo que pode realmente levar a um ataque cardíaco (corpo de pera x corpo de mação, pra ser beeeem simplificadora) possa ser exaltado como ideal alternativo, ou algo parecido. Isso é errado. Assim como é errado eu fumar (e eu sei disso, e admito sem nenhum problema). Não concordo com essa exaltação dessas meninas obesas (sim estou falando das adolescentes, porque as adultas deveriam pensar por si próprias já) porque a obesidade na adolescência é um dos fatores sérios de uma vida cheia de limitações e doenças no futuro (pense só, por exemplo, em diabetes e suas complicações). Então menos, menos. Diversidade é OK, é legal, deveria ser exaltado. Mas as garotas deveriam pensar que se sua cintura é do tamanho do seu quadril, você corre um seríssimo risco de diabetes em menos de 20 anos.
Nádia
March 7, 2016 @ 9:51 pm
Tem gente que não leu o texto. Só acho.
Adorei…É realmente isso que acontece, se vc não está usando calçaX pq tá na moda vc não é bacana….Alisa cabelo, corta, deixa longo, usa isso, não usa aquilo. Um saco…
Laura
May 5, 2016 @ 2:56 am
Mas magreza também não é comprovação de saúde, uma coisa bem séria que acontece é de contratarem apenas as modelos mais magrérrimas possíveis, muitas com corpos que só podem ser alcançados tendo sérios disturbios alimentares, promovendo e incentivando a bulimia (por exemplo). E gordura tbm não é sinônimo de doença, existem muitas pessoas gordas com toda a saúde em dia. Então não acho que é ruim existirem modelos plus size ganhando espaço, até porque nunca vi uma menina de 11 anos se entupindo compulsivamente de comida, quase rasgando o estomago, pra parecer com as moças da tv e os colegas pararem de fazer chacota dela. O que eu vejo seguido são garotas de 11 anos ficando de jejum por uma semana inteira, desmaiando, vomitando propositalmente, anorexicas, muitas até morrem nesse processo, porque acham nunca estão magras o suficiente, porque só exaltam as mulheres se elas forem magras e bonitas. Então acho que só temos a ganhar exaltando as gordas também, isso evita/reduz que as garotas danifiquem sua saúde pra ficarem magras (como a gente já sabe que acontece muito)
Denise
March 11, 2016 @ 5:23 pm
Li tanta coisa a respeito desse episódio que nem sei mais.
Acredito que ninguém desmereceu a criatura por ser feia ou bonita.
Ela é uma pessoa extremamente talentosa em sua profissão. Ponto.
É reconhecida pelo seu talento e isso é certo.
Acredito que se ela estivesse em uma convenção de motoqueiros não chamaria a atenção, mas estava em uma festa de GALA.
Quando ia de Smoking era excêntrica mas estava adequada à festa.
E se ela fosse ao seu casamento com aquela roupa?
Não gosta de salto? Não use!
Não quer mudar de penteado? Não mude!
Mas usar figurino de filme em festa de gala só fica bonito no R2D2!
Carla
April 9, 2016 @ 11:04 pm
Sério Lara Vascouto estou a alguns minutos lendo uns posts seus e já te amo kkk, seus textos falam comigo kkk
Lara Vascouto
April 10, 2016 @ 6:55 pm
Que ótimo, Carla! Obrigada pelo carinho! <3 <3 <3
Carol
May 6, 2016 @ 1:03 pm
Ótimo texto. Adorei quando a vi daquele modo, mas me senti muito mal, muito mesmo, ao ver aquela senhora talentosa, simpática e corajosa passando por isso.
jacqueline
June 19, 2016 @ 1:45 pm
Gostei muito do texto, mas confesso que vim até aqui achando que ia ler outra coisa. Quando vc diz sobre acessório, imagino uma mulher linda enfeitando um homem, sabe? Tipo a famosa e icônica bela, recatada e do lar. Acho que é um tema que também dá bastante pano pra manga e que tem como explorar bastante! Felicidades querida!
É o fim. – Leve Escrita
September 14, 2016 @ 1:40 am
[…] É o fim quando não nos importamos em fazer com que todos gostem de nós. http://www.nodeoito.com/jenny-beavan-se-recusa/ […]
alicia
October 11, 2016 @ 1:37 am
“E outra porque mesmo quando estamos dentro do padrão somos frequentemente julgadas negativamente justamente por causa de nossa beleza.
Oras, essa moça bonita não pode ser competente/inteligente/profissional.” isso define exatamente pelo o que eu passava quando tinha meus 15 anos eu era bastante vaidosa e insegura de mim para tentar corresponder ao padrão da beleza e era julgada por estar “muito bonita” lembro me deu comentario que ouvi de um homem que era da minha familia que eu nao devia me preucupar em mea arrumar tanto pois nao tinha que ser todo tempo a princesinha arrumada e nao devia me importar tanto com beleza como se eu estivesse sendo futil e nao era bem assim quando eu nao me arrumava tambem reclamavam. enfim hje aos 18 mudei com tudo isso eu prezo a beleza natural e tento me sentir bem sem as pressoes da beleza e da estetica. pois querendo ou nao isso pesa hje me sinto bem mais confiante e vivo quem eu sou e não o que a sociedade quer de mim. mais ainda tem um longo caminho pela frente.. ótimo texto!
Suzana
March 17, 2017 @ 5:38 pm
É um caminho sem volta rsrsr… Tem que aceitar gente!!
efim… é a vida né
Lara Vascouto
March 31, 2017 @ 12:17 pm
Sim!
DELIRIUM NERD - Cultura sob um viés feminista
August 21, 2018 @ 2:53 pm
[…] O Que Acontece Quando Mulheres se Recusam a Servir de Enfeite? […]