Igualdade e Progresso
Agora que já tivemos o gostinho de quão longe podemos ir com uma sociedade menos desigual, as engrenagens de luta pela igualdade não vão mais parar.
Guerra, crise ambiental, exploração humana desavergonhada, desigualdade, discriminação, el niños malditos que fazem com que não pare de chover nunca mais na minha cidade. Para o observador desalentado do século XXI, é fácil olhar em volta e sentir vontade de se enrolar em posição fetal para nunca mais sair de casa. Basta, no entanto, voltar o olhar para não muito longe no passado para querer se desenrolar imediatamente e dar um duplo twist carpado de felicidade por vivermos na época em que vivemos.
São vários os indicadores que mostram como o mundo nunca foi melhor do que é hoje. De modo geral, vivemos melhor e por mais tempo. Não morremos mais de gripe. Temos menos guerras e menos pobreza extrema. A mortalidade infantil está em queda livre em todo o mundo. A tecnologia poupa nossos corpos de tantas formas que não dá nem para contar.
Todas essas conquistas em qualidade de vida são relativamente recentes. Em 1900, por exemplo, a expectativa de vida média mundial era de 32 anos. Vou escrever por extenso e em letras garrafais para você absorver bem essa informação: TRINTA E DOIS ANOS DE IDADE. E não é só isso. Em 1970 – apenas quarenta e cinco anos atrás! – somente 5% das crianças eram vacinadas contra doenças como sarampo, tétano, poliomelite, coqueluche e difteria. Hoje em dia, esse número já subiu para 85%.
Curiosamente, todos esses avanços aconteceram lado a lado com o avanço de ideais democráticos e igualitários em todo o mundo. Há apenas dois séculos, por exemplo, gênios que mudaram o mundo teriam sido ignorados em nome da escravidão e da opressão feminina. A física Shirley Ann Jackson, uma mulher negra, não teria realizado as pesquisas que possibilitaram a invenção do fax, de células solares, dos cabos de fibra ótica e do identificador de chamadas. Frederick Jones, homem negro, não teria inventado o ar-condicionado. A biofísica Rosalind Franklin não nos teria revelado a estrutura do DNA. Chuck Berry não teria inventado o rock’n’roll.
Beyoncé não iluminaria nossas vidas.
Tivessem eles nascido dois séculos antes, quando negros eram escravizados e mulheres eram confinadas em casa em estado de submissão eterna, sua genialidade não teria contribuído para o avanço da humanidade. Felizmente, tivemos a resistência dos escravos. Tivemos a luta das sufragistas. Tivemos a revolução sexual. E com cada nova barreira derrubada rumo à igualdade, a humanidade avançou velozmente na ciência, na saúde, na educação, na paz.
Nada disso deveria ser surpreendente. Até pouco tempo atrás nós estávamos destinando 80%, 90% dos nossos grandes talentos para a troca de fraldas e o trabalho braçal só porque eles não eram homens brancos heterossexuais e cristãos. Obviamente, sem igualdade, estávamos perdendo muita coisa. E assim que percebemos exatamente o quanto estávamos perdendo, as barreiras começaram a ficar mais baixas e mais frágeis. Tivemos a segunda onda feminista. A força do movimento negro. Os movimentos LGBTs.
Agora, eu sei que só porque as coisas melhoraram muito, isso não significa que elas estão perfeitas. Longe disso. Muita gente ainda morre em guerra, muita gente ainda passa fome e o ebola ainda está por aí tocando o terror. Da mesma forma, não é porque temos igualdade no papel, que ela existe plenamente na prática. Embora vergonhosamente anacrônicos, o racismo, o machismo, a homofobia ainda estão bem vivos e muito bem, obrigada. Ainda continuam impondo barreiras debilitantes na vida de milhões de indivíduos. E não ajuda em nada o fato de vivermos em um sistema que se beneficia enormemente desses anacronismos, ao mesmo tempo em que nega a existência deles através de uma democracia de fachada.
Mesmo assim, sou otimista. Agora que já tivemos um gostinho do que podemos alcançar com mais igualdade, as engrenagens não vão mais parar. A discriminação e a opressão se utilizam de muita sutileza para não se fazer notar, mas muitos de nós as enxergamos com clareza cristalina. E estamos prontos para desconstruir práticas, crenças e discursos até que todos consigam enxergar o quão feias são as suas caras. Oh, os opressores, os preconceituosos e os intolerantes espernearão, é verdade. Mas não passarão.
Alguém duvida?
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