Atômica nos Trouxe uma Heroína de Ação não só Extraordinária, como Real

Apesar de tropeçar em alguns elementos, Atômica deu passos significativos para a representatividade feminina em filmes de ação.

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*Contém spoilers.

A primeira impressão que tive quando vi uma parte do trailer de Atômica  é que o filme mostraria uma personagem boa de luta, muito bonita (considerando os padrões de beleza atuais), elegante, feminina e só – encaixando-se bem dentro do conceito Mary Sue, que é quando uma personagem é rasa e possui apenas características positivas e irreais. Bom, nada como assistir o filme, né? Assisti o trailer inteiro depois de terminar de ver o longa e achei muito melhor não ter recebido spoilers do que me aguardava.

Bem, caso você ainda não tenha visto, o filme é baseado na história em quadrinhos Atômica. A Cidade Mais Fria, de Antony Johnston, e se passa no final da década de 1980, em uma Alemanha ainda dividida entre os lados oriental e ocidental. A queda do muro de Berlim está iminente e Lorraine Broughton, uma agente da MI6, é convocada para ir à cidade disfarçada, a fim de recuperar um relógio que contém informações confidenciais de muito valor para os países de alguma forma envolvidos na Guerra Fria.

Se você não quiser receber spoilers do filme, sugiro que pare a leitura por aqui e vá comprar seu ingresso. Se você não se importa em saber detalhes importantes ou já assistiu o filme, vamos lá!

OBS: Minhas considerações são apenas em relação ao filme e desconsideram possíveis abordagens nos quadrinhos, pois não tive a oportunidade de ler A Cidade Mais Fria. 

Lorraine Broughton: plena ou maravilhosa? Os dois.

Em primeiro lugar, é preciso dizer: a atuação de Charlize foi de tirar o fôlego. Para além da personalidade da Lorraine, a maioria das cenas que mostram seu corpo são justas, demonstrando sua sensualidade e beleza sem (muita) objetificação e reforço (excessivo) dos padrões de beleza, visto que a atriz, apesar de ser branca e magra, tem 42 anos, idade na qual mulheres passam a ser valorizadas de maneira diferente por estarem se afastando da juventude. A Lara fala sobre isso nesse texto aqui.

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Certamente você já começa o filme gostando da agente renomada e ótima lutadora  (ainda que exista o potencial de ela cair em diversos estereótipos), tendo em vista que ela está exausta, curtindo uma banheira de gelo (sim, é isso mesmo) e, principalmente, aparenta estar em um processo de luto. Então, descobrimos que a cena se passa alguns dias depois da viagem de Lorraine e a história começa.

Pessoalmente, eu não esperava menos que uma mulher segura de si a caminho de Berlim e me surpreendi positivamente por ela não ter apresentado interesse em adquirir um par romântico logo de cara, já que nenhuma mulher precisa de um príncipe encantado para ter um final feliz – ou melhor, para ser feliz, não é mesmo? Claro que depois temos a relação de Lorraine com Delphine, romance que tem sua relevância em termos de representatividade LGBT, mas infelizmente apresenta mais pontos negativos do que positivos (vou comentar sobre eles mais adiante).

Mas enfim, minha experiência foi de admirar cada vez mais a complexidade da personagem, dados os arranjos tramados por e para Lorraine e, ao final do filme, fica clara a sua inteligência, força, imprevisibilidade e sagacidade. Isso, é claro, sem deixar de comentar o quão boa é sua representação no sentido de mostrar uma certa fragilidade em alguém que efetivamente coloca a mão na massa, desce a porrada em geral, é gravemente ferida e, mais importante que isso, têm a aparência de uma pessoa que está gravemente ferida mesmo – diferente de diversos filmes e séries nos quais a protagonista passa por vários percalços e continua com a aparência impecável.

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Representatividade: uma boa tentativa

Infelizmente, com exceção da protagonista (que se afasta cada vez mais de estereótipos no decorrer do filme e acaba sendo, consequentemente, bem explorada), a grande maioria dos personagens pode ser descrita em duas palavras: homens brancos.

(Não abandonei a interpretação de que a escolha dos atores simbolizaria a distribuição do poder no ocidente, e que Lorraine representaria as mulheres que têm de lidar diariamente com uma estrutura social masculina e branca.  Mas, no fundo, eu sei que a realidade foi outra, então vamos a ela.)

Bem, em função da existência de Delphine, o filme pode ser aprovado no Teste de Bechdel, visto que as conversas entre ela e a personagem principal possuem outros temas que não foram homens. Além disso, considerando os grupos étnicos da Europa, Sofia Boutella é a única atriz não branca no elenco, o que poderia soar como uma tentativa de amenizar a falta de diversidade no longa.

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Somado a isso, a agente francesa, que parecia ter tanto potencial, foi apresentada de maneira um tanto rasa e ouso a dizer que foi resumida à sua sexualidade, o que fez com que eu tenha a interpretado como um totem que estava ali apenas para acrescentar diversidade à obra. Outro argumento que corrobora com isso é o próprio romance entre as personagens, pois ele serve muito mais como artifício para agradar o público masculino (considerando o quão fetichizado é o relacionamento sexual entre duas mulheres), do que como recurso que agrega à representatividade LGBT – principalmente se considerarmos os focos que as cenas sexuais entre elas receberam. Resumidamente, Delphine é apresentada implicitamente como um ser exótico, já que é a única personagem não branca e LGBT ao mesmo tempo, o que acaba reforçando diversos estereótipos orientalistas, já que a atriz tem origem argelina.

Infelizmente, os produtores perderam a oportunidade de mostrar (ao menos) uma segunda mulher em um papel mais relevante para a trama sem cair em estereótipos, algo que teria sido facilmente resolvido com a inversão de algum papel (ou mais). Ao invés disso, além do romance entre Lorraine e Delphine – que não consegue passar no Teste Russo – temos apenas mais duas mulheres (ambas em papel decorativo, como esposa e filha do Spyglass) e quase nenhum personagem gordo (salvo pessoas com mais de 50 anos) ou que pertençam a alguma etnia minoritária.

Mas vamos falar de coisa boa

Se você curte boas cenas de luta, com certeza vai ficar entusiasmado com os momentos nos quais a pancadaria rola solta, principalmente quando Lorraine enfrenta vários inimigos em uma sequência sensacional, enquanto tenta proteger Spyglass. Tudo isso acontecendo junto às espetaculares fotografia e trilha sonora, que fazem jus ao energizado final da década de 80.

Outro ponto que se destaca é a complexidade dos personagens, o que se acentua ainda mais no final do filme, já que nos minutos finais ocorrem diversas reviravoltas que dão um nó na cabeça até chegarmos à conclusão de que Lorraine arquitetou um plano extremamente convincente, enganando tanto a ingleses quanto os russos a favor (adivinhe) dos Estados Unidos. Não posso negar que por esse clichê eu não estava esperando, mas acabei encontrando algo de positivo nesse desfecho no que tange à representatividade, exatamente porque indivíduos reais vivem num espectro de atitudes e decisões que não cabem em ser uma pessoa mocinha ou vilã.

No fim das contas, a produção acertou com um filme protagonizado por  uma mulher badass e ao mesmo tempo tão humana, com atributos fortes e vulnerabilidades reais. Isso é extremamente relevante pelo que representa em produções audiovisuais da cultura pop e pode ser positivo de várias formas diferentes. Por outro lado, o tiro poderia ter sido ainda mais certeiro no caso de uma melhor abordagem de Delphine ou da alteração do gênero de alguns personagens.


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Leia também 7 Clichês e Estereótipos Subvertidos em Mulher-Maravilha (e outros 4 que nem tanto assim).

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