Rory Gilmore e as Campanhas Feministas Atuais

Gilmore Girls é um marco para a representatividade feminina na televisão norte-americana, mas falhou em mostrar os desafios de ser uma mulher empoderada.

Rory Gilmore lendo

Todo muito tem sua comfort serie. Sabe, aquela série que você já terminou de assistir mas que quando quer sentir aquele quentinho no coração, resolve rever uns episódios aleatórios. Uma série que se encaixa muito nesse quesito e que, no geral, passa uma mensagem bacana é Gilmore Girls. Afinal, temos nela duas protagonistas inspiradoras que, na maior parte das vezes, nos passam uma mensagem de empoderamento. Sucesso dos anos 2000, a série nos trouxe várias mensagens feministas ao longo dos anos em que esteve no ar e não é de se estranhar que até hoje Lorelai mãe e Lorelai filha sigam inspirando mulheres ao redor do mundo. Principalmente a Rory.

Se você quiser saber mais sobre os acertos e falhas da série, pode ler esse texto aqui.

 

Longe de mim querer menosprezar a inspiração que é a Lorelai, mas por se tratar de uma série cujo público era/é, em grande parte, adolescente, a Rory se destaca, porque é justamente com ela que a maior parte do público se identifica. E Rory é, na maioria esmagadora das vezes, um exemplo e tanto para as adolescentes justamente porque ela destrói os principais estereótipos de meninas adolescentes (não estou contando o revival). Eu, que comecei a ver Gilmore Girls já saindo da adolescência, nunca tinha me identificado tanto com uma personagem desde a Hermione.

A personagem Rory, em Gilmore Girls“Quem liga se eu sou bonita se eu reprovar nas minhas provas?”

 

Porém, apesar de ser inovadora em certos aspectos, Gilmore Girls também é uma obra dos anos 2000 e, como a maioria delas, não escapa ilesa do raio problematizador. A Rory, para mim, é uma daquelas personagens que se encaixam no rótulo de garota extraordinária e isso leva a um outro problema: apesar de trazer muitos diálogos que questionam os valores patriarcais, a vida de Rory na série me parece muito livre disso. Explico: A Rory é uma menina padrão, com uma vida confortável, querida por todos e, ainda por cima, extremamente inteligente. E qual o problema disso?, você leitor deve estar me perguntando.

Nenhum problema com as qualidades da Rory em si. Mas nós, mulheres, mesmo que sejamos criadas como seres especiais tal como a Rory, sabemos que na vida temos problemas que ela simplesmente não enfrenta na série. Rory parece não saber o que é se sentir feia, o que é se sentir indesejada – tanto no campo das amizades quanto no campo amoroso porque, mesmo que a Rory seja um pouco solitária (principalmente no ensino médio) ela é segura o suficiente para não se importar nem um pouco com isso, o que é estranho para uma adolescente – e principalmente, parece não saber o que é lidar com o machismo diário. Sendo uma personagem extremamente inteligente e esforçada – e com a série valorizando bastante o discurso meritocrático – Rory consegue desde entrar e se destacar na Chilton até se formar em Yale e ser selecionada para cobrir a campanha do Barack Obama. E durante toda essa trajetória de 7 temporadas, somente em dois momentos da série ela topa com alguém que não acredita nela.

A personagem Rory almoçando sozinha na escola enquanto lê um livro, na série Gilmore Girls. Rory almoçando em ótima companhia, obrigada.

 

É claro que, durante todas essas temporadas, Rory passa por muitos desafios e duvida de si mesma (sem motivo) várias vezes, principalmente por ter sido criada como um ser especial e, ao ir descobrindo como o mundo funciona, perceber que as coisas não são bem assim. Isso não é um problema – aliás, é um dilema com o qual muitas pessoas podem se identificar. E também é claro que, ao longo da série, os personagens apresentam comportamentos machistas (principalmente o machismo benevolente). No entanto, nós mulheres sabemos que principalmente ao ocupar os espaços públicos somos expostas à diversas formas de violência de gênero. E isso nunca chega a ser retratado em Gilmore Girls.

Apesar de todos os conflitos internos de Rory, apesar dela até mesmo ter largado Yale por um semestre depois da crítica de Mitchum, apesar de não ter conseguido a bolsa do New York Times, apesar do relacionamento dela com certos personagens serem problemáticos (olá, Dean e Jess, estou falando com vocês) o mundo foi bem mais justo com ela do que é com as mulheres da vida real. E aqui, chegamos ao outro ponto do texto: Qual a importância das campanhas feministas de atualmente?

Gilmore Girls, por si só, já é uma espécie de campanha feminista, pois mesmo hoje ela é capaz de ajudar na formação de mulheres empoderadas. Mas ela falha em mostrar os desafios de ser uma mulher empoderada. É extremamente utópico que Rory não tenha sofrido pressão estética em toda a sua vida. E aqui começa a se desfazer nossa identificação com a personagem, pois infelizmente, por mais lindas, inteligentes e competentes que sejamos, o mundo não é tão gentil conosco. E se lá nos anos 2000 não havia espaço para falar dessas questões, em 2018 é fundamental falar delas.

Imagens do Masterchef, de assédio na cobertura da Copa 2018 e da entrevista da candidata Manuela D'Ávila no programa Roda Viva.Da direita para a esquerda: Valentina Schutz, participante do Masterchef Kids 2015, foi alvo de comentários pedófilos com apenas 12 anos de idade. A jornalista Júlia Guimarães, assediada durante sua transmissão ao vivo na copa da Rússia. Manuea D’Ávila, pré-candidata, interrompida 62 vezes durante uma entrevista de 90 minutos.

 

Além do objetivo claro de discutir o machismo e promover mudanças, campanhas como a #MeToo, #MeuPrimeiroAssédio e #DeixaElaTrabalhar são importantes no sentido de mostrar para as nossas meninas como o mundo trata as mulheres, como ele pode ser cruel e quais desafios elas terão de enfrentar para mudar essa realidade. Muitas meninas, assim como Rory, são criadas como seres especiais numa redoma de vidro, estimuladas a serem mulheres extraordinárias, porém sem ter a mínima noção do que uma mulher enfrenta.

Pessoas criadas como a Rory são pessoas criadas para viver num mundo mais igualitário, menos patriarcal, mais justo. Em geral, um mundo mais privilegiado, o qual não existe do lado de cá da tela. Sim, o mundo precisa de mulheres criadas tal como Rory: protegidas, amadas e incentivadas durante toda sua formação (e também é válido ressaltar que muito da segurança da Rory vem dessa criação). Mas se quisermos de fato construir esse mundo, é preciso ter certeza que o vidro dessa redoma permita que essas meninas reconheçam seus privilégios e vejam o mundo sem filtros para ter condições de enfrentá-lo. Porque, infelizmente, essa luta pede um preparo muito maior do que apenas saber que o mundo é machista. É preciso conscientizar as meninas de como o machismo funciona, como reconhecê-lo, como combatê-lo e sobre como ele afeta mulheres com perfis diversos dos delas próprias. Algo que faz muita falta em Gilmore Girls, que traz um elenco quase que inteiramente branco, cis, hetero e privilegiado financeiramente.

Frase de Audre Lorde que diz: "Eu não serei livre enquanto houver mulheres que não são, mesmo que suas algemas sejam muito diferentes das minhas"

Essa é a luta feminista. E,  para além da luta, essas campanhas têm o papel fundamental de nos mostrar que precisamos de doses iguais de empoderamento e empatia, pois temos de  acolher umas às outras. Porque para encarar o machismo é preciso mais do que preparo: é preciso de apoio, pois a cereja desse bolo é o silenciamento, o ataque e a culpabilização da vítima. Estamos diante de um exército de gigantes, e precisamos nos agigantar também, de todas as formas possíveis.

Imagens de Carol Moreira e de assédio em cobertura de futebol.À direita: a youtuber Carol Moreira, vítima de diversos ataques em 2016 depois de ter dito não ter se sentido confortável com o comportamento de seu entrevistado, Vin Diesel. À esquerda,  a jornalista mexicana Maria Fernanda Mora foi também vítima de assédio diante das câmeras, reagiu e sofreu diversos ataques na internet.

 

Um dia, talvez, poderemos formar meninas como Rory que irão, de fato, viver nesse mundo mais igualitário. Infelizmente, esse dia não é hoje e está longe de ser amanhã. Portanto, é preciso que estejamos prontas não só para lidar com o mundo, mas para lutar contra ele; pois ele segue resistindo às nossas tentativas de transformá-lo. É preciso discutir todas as formas de violência – simbólica, psicológica, sexual – para que nosso empoderamento seja o bastante não apenas para discursamos sobre, mas para enfrentá-las também. De preferência, juntas. Precisamos, tal como Rory, inspirar as mulheres que nos assistem. E não apenas isso: temos de fazer de tudo para que elas, com suas histórias tão diferentes ou tão similares às da Rory, também sejam protagonistas.


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