Mulheres na Geladeira (e por que insistem em nos colocar lá)
Sabe quando personagens femininas sofrem todo tipo de violência apenas para motivar a história dos personagens masculinos? Essa prática tem nome: Mulheres na Geladeira.
Estereótipos são usados com frequência ao se contar uma história, através das mais diversas plataformas. Eles não são necessariamente ruins; muitas vezes é um recurso útil para transmitir alguma idéia ou característica sobre o personagem de forma rápida. A contrapartida é que dificilmente se dá profundidade a um estereótipo, e acaba-se com um personagem raso, clichê e desinteressante.
Em pleno ano de 2016, podemos olhar em volta e analisar a representação da mulher na mídia e encontrar o quê? Exato! Baldes e mais baldes de estereótipos… A Mulher-que-trocou-família-por-carreira, a Manic Pixie Dream Girl, a Mulher-troféu, a Mulher-que-usa-sexualidade-como-arma e por aí vai… E uma vez que a mídia é um reflexo da sociedade, a análise aprofundada de cada um desses estereótipos acaba mostrando pra gente uma faceta de como a sociedade realmente enxerga a mulher.
Alguns desses estereótipos já foram discutidos em outros textos aqui mesmo no Nó de Oito, mas o meu objetivo hoje é falar apenas de um: o da Mulher na Geladeira.
Mulher na Geladeira (Woman in Refrigerator) refere-se a prática de matar, estuprar, mutilar, desempoderar, etc., uma personagem feminina, única e exclusivamente para motivar e colocar em andamento a história de um personagem masculino com quem ela se relaciona.
O termo veio do mundo das HQs e refere-se à história do Lanterna Verde #54 (1994), escrita por Ron Marz. Na história, Kyle Rayner (o Lanterna pós Hal Jordan) volta para casa um belo dia e encontra a namorada, Alexandra Dewitt, morta e enfiada dentro da geladeira. Ele surta de dor e ódio, vai atrás do responsável, o Major Força, tortura e quase mata o cara. Claro que a morte da Alex tem todo um papel importante no desenvolvimento dele como super-herói…Porque né? De que outra maneira um personagem poderia se desenvolver, que não tendo a namorada brutalmente assassinada?
Pois é, em 1999 a escritora de HQs Gail Simone se fez a mesma pergunta, e notou que existia uma tendência no mundo das HQs de matar ou violentar personagens femininas para causar o desenvolvimento de personagens masculinos. Foi então que ela e alguns colegas começaram a usar o termo Mulheres na Geladeira (Women in Refrigerators) e criaram um site com esse nome, contendo uma compilação de todas as personagens femininas importantes de HQ (veja bem, não contaram personagem pequeno) que eles conseguiam lembrar e que se encaixavam nessa descrição.
Logo de cara ficou claro que: (1) personagens femininos morriam mais e sofriam mais violência, às vezes apenas para servir de impulso para a história de um personagem masculino; (2) personagens femininos não se recuperavam como seus “equivalentes-heróis-homens”.
A lista teve uma repercussão muito maior do que Gail esperava. O site está um pouco desatualizado, mas lá ela conta que o objetivo era discutir se não deveria haver uma maior preocupação com um público feminino de HQs. Ela relata que chegou a enviar e-mails com esses questionamentos e com a lista para vários colegas, e nem todo mundo aceitou como um convite à discussão…Quando o site saiu, choveram críticas, não só de profissionais do ramo, como de fãs de HQs. Mas felizmente, também apareceram novos colaboradores, e leitoras de HQs que se sentiram representadas.
Ainda nesse mundo de HQ, o exemplo que mais me dói de Mulher na Geladeira é a Bárbara Gordon. Para quem não sabe, nas histórias do Batman, da DC Comics, a Bárbara Gordon era a Batgirl, além de ser filha do Comissário Gordon.
Em 1988, a DC lançou A Piada Mortal, do Alan Moore; a Graphic Novel que viria a se tornar o clássico dos clássicos, tida como uma das melhores histórias do Batman já publicadas. Nessa história, o Coringa quer provar para o Batman que qualquer homem pode ser levado à loucura dadas às devidas circunstâncias. Só é preciso um dia ruim. O Coringa, então, sequestra o Comissário e a Bárbara Gordon. Ele atira na Bárbara, deixando-a paralítica, a estupra, fotografa ela nua e sangrando e usa as fotos para tentar enlouquecer o Comissário. O Batman aparece e resgata o Comissário.
A história gira em torno do Batman e do Coringa. Existe um flashback que conta a história que levou um homem comum à loucura, fazendo ele se tornar o Coringa, e é uma tentativa de mostrar que há um paralelo entre os dois personagens; o Batman sendo uma imagem espelhada do Coringa, um cara que teve um outro tipo de resposta a esse “dia ruim”.
E a Bárbara? Pois é… Ela é um recurso da narração. A violência e o trauma que ela sofre servem apenas para motivar o Batman a salvar o Comissário Gordon (é ELE que o Batman vai salvar, o resto é lucro). O peso dela na história é ZERO!
Usei A Piada Mortal como exemplo porque é muito marcante pra mim, mas o estereótipo da Mulher na Geladeira é amplamente difundido. Se formos falar de filmes, tem mais um milhão de exemplos de histórias que já começam com esposa/namorada/filha morrendo pra embasar as ações do herói: Mad Max, Código de Conduta, O Corvo, Desejo de Matar, Gladiador, A Balada do Pistoleiro, Efeito Colateral, O Justiceiro (olha HQ de novo), e acho que 70% do Lattes do Bruce Willis e do Steven Seagal.
E é aí que está o problema! É nesse ponto que fica assustador parar e analisar a “Mulher na Geladeira” como um reflexo da sociedade.
Já foi discutido aqui, mais de uma vez, que representação na mídia importa, e nós estamos sendo representadas de maneira tão rasa que já é natural que os personagens femininos sofram todo tipo de violência só pra motivar os personagens masculinos. Tão natural, que até quando se trata de um personagem forte, marcante e querido como a Batgirl, os roteiristas não veem problema nenhum em destruí-la só pelo arco da história, pelo choque da cena e para mostrar o quanto o Coringa é degenerado!
Personagens femininos merecem dedicação, merecem que sua história seja contada e merecem ser desenvolvidos com cuidado e atenção, e não ser usados como recurso narrativo, uma muleta na qual o herói se apoia, ou um simples trauma do passado.
Existe uma mudança acontecendo, e nos últimos anos tem sido mais comum encontrarmos personagens femininas bem construídas e com personalidades complexas, mas confesso que pra mim ainda é pouco. Como foi muito bem colocado pela atriz Jen Richards em um tweet mês passado:
“Eu raramente conheço homens na vida real que são tão extraordinários quanto os dos filmes, e raramente vejo mulheres nos filmes tão extraordinárias quanto as que eu conheço na vida real”.
Saiba mais:
- Avaliação interessante para quem quiser saber mais sobre A Piada Mortal, em The Guardian.
- Site: Women in Refrigerators
- Geek Feminism Wiki
Leia também 6 Estereótipos Femininos que Hollywood Precisa Parar de Usar; e 7 Estereótipos Femininos que Hollywood Precisa Parar de Usar (parte 2).
Eduardo Marzna
December 9, 2016 @ 3:00 am
Senhorita Tita Antunes, gostaria de te pedir, talvez implorar para ler essas obras que foram citadas, pois acho que vc se quer leu ou procurou saber do que se trata, saia dessa bolha e veja o esses personagens citados cresceram dentro da trama( menos os que morreram lógico), veja e reflita o que acarretou todos os eventos para cada um deles, saiba quem são cada um e reflita como isso mudou o intimo de cada um deles. Não seja tão rasa e não procure tantos problemas onde não existe, seja feliz e quem sabe essa sua felicidade mude algumas pessoas ao seu redor.
Obrigado, Att Eduardo Marzana
P.S. Conheço muitas pessoas melhores que as que vejo em filmes, sendo homens e mulheres, e se vc tb não acha talvez vc esteja procurando no lugar errado.
Lara Vascouto
December 9, 2016 @ 12:18 pm
Oi Eduardo! Gostaria de te pedir, talvez implorar, que você leia (ou releia) o texto com atenção, pois acho que você não entendeu muito bem do que se trata. 🙂
Eduardo Marzna
December 9, 2016 @ 7:46 pm
Olá Lara li novamente, e novamente vi, um texto fora de contesto com as obras citadas, que se focam muito mais em achar uma desculpa para um estereótipo do que de fato ver analisar o que são essas obras, ver o resultado e como os personagens crescem depois de durante as mesmas, principalmente a Barbara Gordon. Acho que a visão desse post é como ver uma linda canção e se focar no instrumento dela, e não ver a canção como um todo. Novamente peço, não imploro para que agora não só a Tita Antunes mas tb Lara Vascouto, leiam as obras citadas. 🙂 Uma pergunta senhorita Lara Vascouto, vc já leu essas obras citadas?
Obrigado novamente e espero resposta.
P.S. Acho que se vcs mulheres tem todo o meu respeito e admiração, de fato 3 entre 6 pessoas que eu amo são mulheres e por isso acho que vcs são iguais e quem sabe ate melhores que eu e muito homens por ai.
Victor Zanellato
January 10, 2017 @ 2:56 pm
Texto maravilhoso! Parabéns Tita, ótimo trabalho.
Infelizmente acabei caindo no post, pois recentemente encontraram material pornográfico infantil no computador do roteirista que deu seguimento as histórias do Lanterna Verde.
Ana
June 27, 2017 @ 4:31 pm
Adoro seus textos! Sempre me abrem os olhos e a mente. Conheci o site só agora, tenho lido um pouco por dia e gostando cada vez mais. Parabéns!
Julia
June 5, 2018 @ 3:35 am
Como e estranho o mundo.. alguem organiza dados, cria um pensamento questionador sobre esses e deixa uma parada de “sera que a gente ta tao acostumado que nem mais liga para esse tipo de coisa e fica achando que ta tudo certo com isso?”
ai nesse exercicio de deixar de lado a vontade de rebater, de exercitar isso de ler e se conscientizar, talvez ate refletir e mudar a visão…. vemos o amigo surtando por achar que as referencias foram pessimas e equivocadas.
Pô, texto fantastico viu Tite! Obrigada por trazer essa visao ai!
Alyce
June 9, 2023 @ 10:28 pm
eu amei o seu texto! Vim pela recomendação de um dos comentários do vídeo “Você é tão madura para a sua idade” do canal “oi, Juvi”. Concordo com tudo oq vc falou