O Doutor virou Doutora

Doctor Who vai ter sua personagem título interpretada por uma mulher pela primeira vez em mais de 50 anos. E isso é muito importante.

doctor who

Aconteceu. Depois de meses de especulação sobre quem substituiria Peter Capaldi como o Doutor, no domingo (16) anunciaram que a décima terceira encarnação da personagem título da série Doctor Who será interpretada pela atriz Jodie Whittaker. Essa é a primeira vez que o Doctor será uma mulher nos mais de 50 anos em que a série é exibida. E é claro que vários machistas estão ofendidos o assunto está gerando polêmica. Como o Nó de Oito nunca falou sobre Doctor Who, você pode estar achando toda essa conversa muito estranha e não tá entendendo a história de encarnação. Mas calma, que vou dar uma rápida explicação.  

Vou te levar pra viajar por todo o espaço e tempo.

 

Doctor Who conta as histórias de um alienígena que se auto intitula “The Doctor” (perceba que na língua inglesa não tem flexão de gênero aqui). A sua espécie é a dos Senhores do Tempo, do planeta Gallifrey. Ele tem uma nave espacial que se chama TARDIS (Time And Relative Dimension(s) In Space) que é capaz de viajar todo o espaço e tempo. Por fora ela tem a aparência de uma cabine de polícia londrina de 1963, mas ela é muito maior por dentro. O Doutor sempre viaja pelo tempo e espaço acompanhado de amigos, chamados de “companheiros” (geralmente terráqueos, principalmente mulheres) e tem vários inimigos espalhados pelo o universo, incluindo “O Mestre”, que é um Senhor do Tempo também (guarde essa informação, vou te mostrar por que ela é importante já já). Os Senhores do Tempo podem parecer humanos por fora, mas eles não são. Inclusive, eles têm dois corações:

Cuidado, isso pode ser uma metáfora.

 

A série foi ao ar em 1963 e permaneceu na TV britânica até 1989, período  chamado de “Clássico”. Um filme para TV foi ao ar em 1996, mas apenas em 2005 a série voltou definitivamente para a BBC no chamado “Modern Who”, e segue até hoje com 10 temporadas contadas em 2017.  

O personagem que pode durar pra sempre

O Doctor é imortal. Vou usar do jeito que a Wikipedia explica aqui: “o Doutor tem a capacidade de se regenerar quando seu corpo é mortalmente danificado, ganhando uma nova aparência e personalidade”. Assim a série foi capaz de sobreviver tanto tempo, já que seu protagonista pode ser mudado de diversas maneiras. A série começou em 1963 e todas as doze vezes que o personagem se regenerou, ele se tornou outro homem – até agora. Hoje, o personagem tem mais ou menos dois mil e poucos anos de idade.

“Vou te bater tão forte que você vai regenerar”.

 

Com diferentes visuais, figurinos, faixas-etárias e até nacionalidades britânicas, os 13 atores* que até então interpretaram o Doutor geralmente refletem como o personagem se sente. O último, Peter Capaldi, é bem mais velho que o seu antecessor por conta de uma versão mais “cansada do mundo” e um pouco mais rabugenta do Doctor.  

Com mais de 50 anos de história e sendo uma obra inerente a cultura da Grã-Bretanha, interpretar o Doutor é uma honra para todos os escolhidos. Capaldi e David Tennant sempre falaram sobre crescer assistindo as aventuras do Doutor e como parecia irreal quando eles conseguiram o papel. John Hurt, indicado duas vezes ao Oscar, também interpretou o Doutor no especial de 50 anos e disse “Eu não tinha ideia de como Doctor Who era grande. Eu virei “trending topic” no Twitter!”. E Jodie Whittaker também sabe o tamanho do impacto que um papel como esse tem na sua carreira. Muito mais, inclusive, do que para os seus 13 companheiros homens. “Ser chamada para interpretar o personagem definitivo: foi por isso que eu me tornei atriz”, disse a nova Doutora. (Me dá um calorzinho no coração toda vez que escrevo “Doutora”.)

Parecido com a situação atual, em 2013, a escolha de Peter Capaldi para o papel também gerou um certo burburinho, já que os atores anteriores desde que a série voltou à TV em 2005 foram jovens e frequentemente com um quê de galã. A diferença era que com atores mais novos, a trama muitas vezes incluía algum tipo de envolvimento romântico do Doutor com a sua companheira, o que ficou claro que não aconteceria dessa vez. Mas assim como todas as outras mudanças da série, esse sentimento acabou sendo superado.

Capaldão, nós te amamos <3

 

“Não aprendi a dizer adeus”

Quando assisti à minha primeira mudança de Dr. – na segunda temporada da série moderna, quando Christopher Eccleston foi substituído por David Tennant – foi muito sofrido. Rose Tyler, a então companheira do Doutor, fica bastante desnorteada com a troca. Imagine que você conhece alguém, ele vira um amigo com quem você vive um monte de aventuras. De repente, ele aparece com outro rosto, outro corpo, por mais que seja a mesma pessoa que você conheceu. Gera um estranhamento, no mínimo.

Rose Tyler e Clara Oswald foram as duas companheiras que presenciaram a mudança do Doutor, e a reação das personagens na tela geralmente era parecida com a minha na frente da TV. “Você está diferente. Você não é o Doutor”. Só que como a troca é sempre certa – nenhum fã espera que um ator dure muito mais do que três temporadas – como espectador, você se acostuma. E no caso da minha primeira mudança, que de começo pareceu traumática, Tennant acabou se tornando meu intérprete favorito. Pergunte a qualquer fã de Doctor Who quem é o “seu” Doutor, e todos vão ter uma resposta na ponta da língua – e imagina que incrível que uma das opções dessa resposta agora é uma mulher.

Toda arrepiada quando vi essa imagem a primeira vez.

 

Depois de três anos de Capaldi como o Doutor, o ator anunciou no começo do ano que sairia do papel e que a temporada 10 seria a sua última. Esse anúncio veio quase junto do que contava que Steven Moffat, que foi showrunner da série desde 2010, deixaria o comando da mesma. Com essas mudanças, começaram os burburinhos sobre quem seriam seus respectivos substitutos. E como a diversidade vem sendo menos ignorada (baby steps) pelos produtos de entretenimento, foram levantadas hipóteses sobre um intérprete negro, ou uma mulher.

Mulheres viajando pelo espaço

Doctor Who criou um precedente na oitava temporada, quando o Mestre, inimigo do Doutor desde o início da série, reapareceu como Missy (Michele Gomez). Lembra que eu te falei que era um personagem importante? Assim, Who mostrou que a encarnação de um Senhor do Tempo poderia mudar de gênero, assim como muda de aparência e personalidade. A diferença foi que Missy foi apresentada como se fosse uma nova vilã e apenas posteriormente foi identificada como uma nova encarnação do Mestre. Por isso, mesmo trocando o gênero de uma personagem importante, não aconteceu uma grande revolta como agora. Até porque, Gomez faz um trabalho tão brilhante como “o Mestre” que deixa pouco espaço para qualquer crítica. Mas, o burburinho menor também pode estar ligado ao machismo nosso de cada dia, que aceita que a mulher seja a vilã, mas não que ela salve o dia.

Missy, uma das coisas mais maravilhosas que já aconteceram nessa série.

 

Nas palavras do próprio Capaldi, “Doctor Who assim como o tempo, não pode ficar parado. Sempre deve se mover e mudar”. Como uma obra que tenta prever (e mostrar) o futuro, Who muitas vezes esteve “à frente do seu tempo”. Beijo gay em 2005, personagens aliens e lésbicas, negras e lésbicas, personagens de sexualidade “fluida”, e até um deles que ganhou spinoff próprio (alô, Capt. Jack Harkness).

Falando de mim?

 

E as companheiras do Doutor, como já falei antes, são quase sempre mulheres. E elas são maravilhosas! Independentes, cheias de personalidade e várias coisas que a gente gosta de ver. (Você pode ler mais sobre elas nesse texto maravilhoso do Valkirias.) Mas por mais que tenha dado muitos quotes maravilhosos por e sobre mulheres, a série sempre foi, afinal, protagonizada por homens. Então a escolha de Jodie Whittaker representa muito, mesmo em uma série que já abre espaço para o feminino.

“Estamos bilhões de anos à frente da sua obsessão humana com gênero e estereótipos associados a ele”.

 

13 rostos, um personagem

O Doutor pode mudar de rosto, mas ele sempre vai manter algumas de suas principais qualidades e princípios. Ele é um herói, mas não luta com armas. Por mais que ele tenha um passado violento, tenha sido um soldado do seu planeta e inclusive já confessou ter matado, ele quer distância de quem se torna quando colocado em uma situação de guerra. Seu principal “instrumento de trabalho” é uma chave de fenda sônica, que serve para abrir portas e descobrir informação. Ele sempre vai tentar resolver os problemas pela diplomacia. Seus grandes poderes (além da nave espacial, de ser imortal, viagem no tempo e tudo mais) são a inteligência e uma capacidade analítica sem igual.

Parece bem simples quando explicado assim.

 

Ele respeita as diferentes espécies do universo, viaja para proteger diferentes galáxias e povos. É apaixonado pela Terra e pelos terráqueos. Ele não vê gênero, cor, classe social, idade. Ele poderia viajar sozinho, mas sempre escolhe companheiros para compartilhar as maravilhas do universo, e quando ele apresenta um novo cenário para uma companheira, ele o faz com a empolgação de quem está vendo aquilo pela primeira vez.

Agora imagine tudo isso retratado na tela por uma mulher. Uma grande representação de poder e empatia, nas falas que estarão agora com Jodie Whittaker. É um passo gigantesco para a representatividade, numa série que é um fenômeno global.

Ansiedade define

Gerando opiniões divididas, o vídeo da 13ª Doutora passou de 16 milhões de visualizações online. E o anúncio no Twitter foi o conteúdo mais bem-sucedido em toda a história do perfil do Doctor Who nessa plataforma. Tem um monte de gente revoltadinha? Tem. Mas também tem várias pessoas dizendo que tinham largado a série e querem voltar. Tem vídeo de reação de menininhas emocionadíssimas que o Doutor agora é Doutora. Tem um mundo inteiro de gente querendo muito a chegada de Jodie Whitakker.

Jodie só deve assumir o controle da Tardis em dezembro, no episódio especial de Natal, quando geralmente acontece a passada do bastão. Até lá, resta segurar a vontade de ver uma mulher, à frente das aventuras, salvando pessoas de todo o tipo de ameaça, fazendo discursos incríveis sobre paz e igualdade. Mal posso esperar.

*John Hurt interpretou a versão “de Guerra” do Doutor no episódio especial “The Day of The Doctor”, que foi exibido em cinemas ao redor do mundo como comemoração aos 50 anos da série. Como não se regenerou de nenhuma das outras versões, ele não é contado


Leia também O Homem como Padrão: Os Efeitos do Androcentrismo no Cinema e na Televisão.

Comentários do Facebook